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Primeira antologia póstuma do vampiro
Crítica de Daqui ninguém sai

Espetáculo do Teatro de Comédia do Paraná comemora centenário de Dalton Trevisan, que morreu em dezembro de 2024, aos 99 anos. Foto: Annelize Tozetto

 

Se fossem ambientados no Recife, os contos de Dalton Trevisan poderiam ter como cenário a Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. Imagino o contista morando em alguma casa antiga em Santo Amaro e saindo anônimo para colher histórias de personagens no bairro de São José. A Conde da Boa Vista talvez seja o equivalente à XV de Novembro em Curitiba. Será? Mas Recife tem outro ar. É fétida, dá pra sentir de pronto. O cheiro do mangue que se mistura ao calor escaldante. As cores estouradas. Os personagens suariam bicas, é verdade. No entanto, continuariam pervertidos, degenerados e escrotos. As mulheres ainda seriam agredidas por seus companheiros, homens bêbados, que batem sem dó, arrastam pelo cabelo, cospem na cara, tiram sangue, matam. Os pivetes na rua cheirando cola. As putas na praça.

Curitiba engana. Parece coisa fina, moderna. Trevisan descasca: “enjoadinha, narcisista, toda de acrílico para turista ver”. Fico pensando que nós, pernambucanos bairristas declarados que somos, só falamos mal do Recife entre os nossos. Não me venha ninguém dizer um ai da Veneza pernambucana – contém ironia – que vai ouvir poucas e boas. Dalton Trevisan teria produzido mais de 700 contos e, nessa trajetória, há uma dualidade transbordante relacionada à cidade – ódio declarado e amor que transpira. Curitiba é “província, cárcere, lar”. Foi nesta cidade que o autor viveu e morreu, em dezembro do ano passado, aos 99 anos, quando já aconteciam os ensaios de Daqui ninguém sai, obra assinada pelo Teatro de Comédia do Paraná (TCP). O espetáculo estreou no Teatro Guairinha, na Rua XV de Novembro, no Festival de Curitiba, nos dias 26 e 27 de março, em duas sessões lotadas. No dia 23 de maio, volta em cartaz de sexta a domingo, no mesmo teatro, cumprindo temporada até 15 de junho.

A direção é de Nena Inoue, que também é atriz e esteve na primeira peça que levou a obra de Trevisan ao teatro: Mistérios de Curitiba, com direção de Ademar Guerra, em 1990. Nena conta que foi a primeira vez que o público curitibano se viu representado no palco. Era de certa forma uma homenagem à cidade e aos curitibanos. Em 1992, Nena voltou a trabalhar com Guerra em O Vampiro e a Polaquinha, que ficou seis anos em cartaz, mas apresentando uma realidade mais crua e sórdida.

Em Daqui ninguém sai, havia a intenção de homenagear o centenário do autor, comemorado em junho deste ano. Para essa tarefa, Nena chamou o dramaturgo Henrique Fontes, potiguar, que escreveu e dirigiu Sobrevivente, peça em que a atriz atua com o filho, Pedro Inoue, e que estreou no Festival de Curitiba de 2023. Na nova montagem, Fontes assina dramaturgia e assistência de direção. Em cena, estão os atores Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywe, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales.

A peça, dividida em nove movimentos, um prólogo (o Movimento 0) e um epílogo, explicita em sua encenação a dificuldade do processo. No “Movimento 1 – Dalton”, os atores contam que houve uma seleção pública de elenco e que, a princípio, o trabalho seria uma ocupação num casarão abandonado no alto da XV. A ideia não foi adiante. Então, o que ficou foi uma encenação que incorpora o processo de trabalho à cena: é basicamente uma trupe de atores dramatizando contos de Dalton Trevisan num exercício de metateatro. Parece ter sido a saída possível. Não é inventiva, embora funcione ao propósito da peça.

Direção é de Nena Inoue e dramaturgia e assistência de direção são de Henrique Fontes. Foto: Annelize Tozetto

Espetáculo lida com a tensão de representar o que não podemos mais aceitar. Foto: Annelize Tozetto

Neste mesmo movimento, um questionamento expõe a dúvida que ronda obras de autores que carregam um realismo repugnante, como Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan: “Fazer uma peça sobre esse cara em 2025. Para quê?”, levanta um dos atores. Essa pergunta não é pouca coisa, nem tem resposta fácil ou direta. Na literatura, as palavras explicitam a violência, mas as imagens se materializam apenas na nossa cabeça. Não é fácil de ler, às vezes pode ser enojante, inclusive pela aparência de normalidade na desumanização dos personagens. No entanto, a linguagem nos desconcerta e nos preenche, o que o autor faz com as palavras, a forma como aquilo nos atinge, nos deixa com tesão ou com ânsia de vômito, ou as duas coisas, é fascinante. De qualquer modo, não tem materialidade. Mas levar ao palco? Como representar no teatro a forma como a mulher é tratada nos contos de Trevisan? Estupros, erotismo incestuoso, pedofilia? “Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder?”, escreve no conto O vampiro de Curitiba.

Lidar com essa tensão de representar o que não podemos mais aceitar como sociedade marca a experiência de montagem da obra de Trevisan em Daqui ninguém sai desde o início da encenação, inclusive pelas escolhas do que levar ao palco e do que ressaltar. O “Movimento 0 – Maria Bueno”, prólogo do espetáculo, é um número musical a partir do conto Maria Bueno. Nele, Trevisan conta a história real de Maria da Conceição Bueno, morta em 29 de janeiro de 1893, na provinciana Curitiba.

A mulher foi degolada por Ignácio José Diniz, que prestava serviço ao Exército. O homem não queria que Maria fosse a um baile. Na encenação, um dos versos ganha potência, cantado pelo coro: “Ninguém é dono de Maria”. Esse trecho ecoa e diz, simbolicamente, logo de início, que a obra pode ser lida de muitas maneiras. E isso é eficaz, evitando a repulsa do espectador à peça à primeira vista. Mais adiante, o anúncio da “inocência”: “no júri popular do anspeçada Inácio | o doutor brada retumbante | crime passional! defesa da honra! já livre sem culpa nem pena| à desvalida Maria quem defendeu? | ó vergonha! ó justiça indigna!”.

As escolhas da encenação vão sendo amparadas por um trabalho dramatúrgico que evidencia a realidade dos escritos de Trevisan, muito mais do que a sua suposta perversão. Tem menos pus. Não se trata de uma justificativa de montagem, porque a obra do contista diz por si do seu valor, não precisa disso, mas de uma estratégia dramatúrgica que propõe um recorte de leitura, alcançando de modo menos virulento os espectadores que não necessariamente tiveram contato prévio com a literatura dele. O texto da peça acentua que os jovens não conhecem o escritor e que nem em Curitiba o contista é, de fato, lido. Então a peça é esse passeio pela obra, tirando o acelerador da repugnância e propondo visadas que nos deixam com menos incômodo, porque é como se houvesse um contraponto. A mulher ainda é espancada, degolada, morta com tiro. A mãe ainda é estuprada pelo filho. Mas há modos e modos de nos apresentar a tudo isso.

 A frase “Todas as tristezas podem ser suportadas se você as transformar em história”, por exemplo, é dita no “Movimento 3 – Maria”. No “Movimento 5 – João e Maria”, o gozo feminino ganha primeiro plano, mesmo que isso custe a vida da mulher. Maria é debochada e diz que nunca teve prazer com João. É morta. E um dos atores pergunta: “Será que não teria outro fim para essa cena?”. Uma das atrizes contesta: “Dalton escrevia o fim real das coisas. Ele não mentia e segue atual”. No “Movimento 6 – Ministórias”, temos a história de um casal que decide se matar, mas o homem faz isso primeiro e a mulher desiste, porque a vida é boa. No “Movimento 9 – Cartas”, um dos atores reproduz a defesa de Trevisan: “Quem matou Maria não fui eu”.

Há uma curadoria afiada, numa tarefa dificílima de fazer essa primeira antologia póstuma de Dalton Trevisan e não no suporte do livro, no teatro. A dramaturgia da peça teve 27 versões. De acordo com o programa, são mais de 50 contos e trechos de cartas inéditas do autor levadas à cena. É um trabalho hercúleo, não só pela dimensão da obra de Dalton Trevisan, mas pelo fato de que o autor nunca permitiu que os seus textos fossem alterados no palco: todas as vírgulas de cada conto estão lá. É literatura levada ao teatro. Então o que os criadores fizeram, numa troca que se explicita bonita entre dramaturgia e direção, foi curar esses textos num universo gigantesco e montá-los como um quebra-cabeças que tenha sentido, alinhavando dramaturgicamente a cena com as interferências de textos criados para além da obra de Dalton. Nesse processo, o espetáculo se estende, fica longo, inclusive porque são 12 atores em cena e cada um deles têm o seu momento de maior protagonismo.

Elenco tem 12 atores. Foto: Annelize Tozetto

O elenco é todo muito competente na tarefa de materializar literatura. Uma das atrizes, Paula Roque, fala em Libras e é traduzida pelos colegas em cena, como poderia sempre acontecer. Como são muitos atores, é difícil fazer destaques, mas Simone Spoladore tem a densidade que o texto de Dalton Trevisan solicita a uma atriz. E há uma cena impagável, a que mais engaja o público, que transforma o erótico em humor com maestria, o “Movimento 7 – Noite da Paixão”, um encontro amoroso entre Nelsinho (Zeca Salles) e uma puta (Carol Mascarenhas). Eles se jogam com tanto prazer e liberdade que o gozo da puta – que com  Carol Mascarenhas é gostosa e não decrépita – é aplaudido durante a cena e a imagem do combalido Nelsinho, magricelo, exausto, joelhos colados vira um deleite.

Paula Roque fala em Libras na peça e os colegas fazem a tradução para o público. Foto: Annelize Tozetto

Simone Spoladore. Foto: Annelize Tozetto

Carol Mascarenhas e Zeca Salles. Foto: Annelize Tozetto

A imagem do combalido Nelsinho. Foto: Annelize Tozetto

Depois dos contos, há ainda um Movimento com trechos das cartas trocadas entre Dalton Trevisan e muitos intelectuais e artistas da época, como Ademar Guerra, que dirigiu sua obra no teatro em duas ocasiões, e o escritor Otto Lara Rezende. Sentados em cadeiras postas em meia lua na frente do palco, os atores contam sobre a extensão da correspondência – as que foram lidas foram escolhidas num acervo de mais de 600 cartas – e citam o nome de pessoas com quem ele se correspondeu. O espetáculo talvez prescindisse das cartas. E, novamente, o recurso de encenação não nos instiga a imaginação. Mas, como dito, trata-se de uma antologia que se pretende ampla.

Nesse movimento de antologia, há ainda um resgate simbólico: as ilustrações reproduzidas no telão no fundo do palco são de Poty Lazzarotto, ilustrador das obras do contista por décadas. Se os recursos de encenação não fossem pouco provocativos na forma, essas imagens poderiam explodir de alguma maneira para além da tela estática, expandindo a cenografia por meio das ilustrações.

Dalton Trevisan, pelo que se sabe, era afeito a antologias. Entre 1979 e 2013, organizou sete antologias de sua própria obra. Em 2023, lançou Antologia pessoal, pela Record, e, segundo o professor, tradutor e escritor curitibano Caetano Galindo, no podcast 451 MHZ – O podcast dos livros, da Quatro cinco um, logo depois desse lançamento, Trevisan teria feito outra antologia, que circulou de modo mais restrito, apenas em Curitiba.

É significativo que a primeira antologia desde a morte venha do teatro, espaço privilegiado que confere materialidade às palavras. “Só Curitiba pra ter um escritor apelidado de vampiro. Me dá uma coisa de identidade”, diz Simone Spoladore em cena. Esse vampiro, que “não se alimenta de sangue mas de sonhos, confissões, palavras ao vento”. “Já estou desaparecendo?”, pergunta o personagem Trevisan no epílogo. Não, vampiro. Não há adeus para vampiros. Nem redenção.

O espetáculo Daqui ninguém sai foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Contos: Dalton Trevisan
Direção: Nena Inoue
Dramaturgia e assistência de direção: Henrique Fontes
Pesquisa literária: Fabiana Faversani
Elenco: Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywer, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales
Composição musical: Grace Torres e Lilian Nakahodo
Composição Maria Bueno: Grace Torres, Lilian Nakahodo e colaboração do elenco
Composição Balada das mocinhas do Passeio: Paulo Chierentini
Composição Perdido: Madu Forti e Zeca Sales
Preparação vocal: Babaya
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Verônica Julian
Cenografia: Carila Matzenbacher
Integração somática/Hatha Yoga: Carlos Cavalcante
Preparação coreográfica: Rapha Fernandes
Projeção mapeada: Ivan Soares
Tradução para Libras: PapO Traduções Artísticas e TAÉ Libras e Cultura
Intérpretes de Libras: Beatriz Reni, Elisa Maganhoto, Jamille de Jesus, Kelly Caobianco, Lais Guebur, Letícia Guebur, Nathan Sales, Ravena Abreu e Talita Grunhagen
Tradutores em cena: Talita Grünhagen e Jessica Nascimento
Assistente de figurino: Cristina Rosa
Assistente de iluminação: Anry Aider
Costureira: Doralice Peron
Cenotécnico: Fabiano Hoffmann
Produção geral: Diego Bertazzo
Assistente de produção: Guilherme Jaccon e Daniel Militão
Ilustrações: Poty Lazzarotto
Identidade visual: Marcos Minini
Fotos: Kraw Penas

Daqui ninguém sai. Foto: Annelize Tozetto

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A mesma peça 15 anos depois:
memória, história e atualizações
Crítica de In On It

In On It voltou ao Festival de Curitiba depois de 15 anos. Foto: Lina Sumizono

 

O espetáculo In On It fala de muitos fins em suas narrativas que correm ao mesmo tempo paralelas e entrelaçadas. Mas não quero começar tratando de fins e sim de começos e de retomadas. De movimento, memória e história. Da nossa capacidade de fazer de novo e de novo, igual e diferente. Não só da peça, mas do teatro. Do Brasil e de seus artistas. Da passagem do tempo. Em 2010, Emílio de Mello e Fernando Eiras apresentaram In On It pela primeira vez no Festival de Curitiba, no Guairinha. 15 anos depois, nesta edição 2025 do Festival, estiveram aqui novamente, com a mesma peça, desta vez fazendo duas sessões, cada uma com mais de 700 pessoas na plateia, no Teatro da Reitoria.

No Recife, In On It foi apresentada pela primeira vez no 12º Festival Recife do Teatro Nacional, no segundo semestre de 2009. As sessões foram no Teatro Apolo, o teatro mais antigo da cidade, inaugurado em 1842, no Bairro do Recife. Repórter setorista de artes cênicas do jornal Diario de Pernambuco, eu estava na plateia. Em janeiro de 2011, surgia o Satisfeita, Yolanda?, site de críticas e notícias que edito desde então com Ivana Moura.

 O curador daquela edição do festival era o jornalista e crítico de teatro Kil Abreu. Valmir Santos, também jornalista e crítico, foi convidado a acompanhar a programação e fazer uma avaliação pública da mostra. Ainda hoje, esse é um momento importante para o festival e para a classe artística da cidade, que contribui com essa análise. Sem surpresas, todos os anos, o debate indubitavelmente resvala para a discussão sobre as políticas públicas para o teatro. O festival é realizado pela Prefeitura do Recife e desde então passou por interrupções, sendo retomado há dois anos.

Naquele ano, a edição de In On It, foram 18 espetáculos. A programação abriu na rua, na Praça do Arsenal, também no Bairro do Recife, com Till, a saga de um herói torto, do grupo mineiro Galpão. Vimos Rainhas[(s)] – Duas atrizes em busca de um coração, com Georgette Fadel e Isabel Teixeira, de São Paulo; Meire love – uma tragédia lúdica, do grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza; e peças criadas no Recife, como Carícias, da Remo Produções Artísticas, de Paula de Renor; Encruzilhada Hamlet, da Cia do Ator Nu, com direção de João Denys; e Cordel do amor sem fim, do grupo O Poste Soluções Luminosas. A curadoria de Kil Abreu fazia um recorte do que era produzido no teatro brasileiro naquele período. In On It havia estreado em março de 2009, no Rio de Janeiro. À distância, as escolhas do curador parecem fazer ainda mais sentido. Avisei que seria sobre história, memória e teatro.

Em sua avaliação publicada no site Teatrojornal, Valmir Santos escreveu: “Em montagem paralela a sua Companhia dos Atores, Enrique Diaz (diretor) encontra no texto do canadense Daniel MacIvor as condições ideais para compor uma ode à metalinguagem teatral da qual maneja como poucos no Brasil, basta lembrar suas últimas visitas a Shakespeare e Tchekhov. Somos embriagados pela dança de Fernando Eiras e Emílio de Mello nas várias camadas de uma história de amor entre dois homens. A narrativa transcorre de maneira inusual, é depositária dos atores e dos mínimos recursos, como uma cadeira, um casaco e um desenho de luz fundamental para compor tempos e espaços. Esse trabalho seco não impede que se alcance a espiritualidade de uma ópera e tampouco economizar no humor e na emoção”.

Em 2009, ano das apresentações de In On It no Festival Recife, grupos que ainda hoje são fundamentais para o teatro pernambucano tinham pouco tempo de trajetória. O Poste Soluções Luminosas e o Magiluth foram criados no mesmo ano, em 2004; um ano antes, tinham surgido a Companhia Fiandeiros de Teatro e o Coletivo Angu de Teatro; e, em 2001, a Cênicas Cia de Repertório foi criada.

Ampliando o foco do Recife, em 2008, a Cia Hiato, de São Paulo, estreou o seu primeiro espetáculo, Cachorro morto, com direção de Leonardo Moreira; em 2005, o Espanca!, de Belo Horizonte, estreou Por Elise, com texto e direção de Grace Passô; em 2002, em Curitiba, a companhia brasileira de teatro lançou Volta ao dia, texto e direção de Marcio Abreu; em 2001, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, estreou Hysteria, direção de Luiz Fernando Marques, Lubi.

O texto de Valmir Santos deixa pistas da importância que In On It teria para o movimento de experimentação de linguagem empreendido por esses e tantos outros grupos de teatro contemporâneo recém-formados no país. O que propunha o texto de Daniel MacIvor, traduzido para o português por Daniele Avila Small, era mesmo incomum, três planos distintos na mesma peça, que iam se relacionando e se sobrepondo. Como este texto é sobre memória, no entanto, não nos esqueçamos de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), encenada por Ziembinski (1908-1978) em 1943, com os três planos: a realidade, a alucinação e a memória, e Sortilégio – Mistério Negro, de Abdias Nascimento (1914-2011), com direção de Léo Jusi (1930-2011), que estreou em 1957, e tinha uma estrutura dramatúrgica não-linear. Ainda assim, In On It não era mesmo uma estrutura dramatúrgica corriqueira. Luiz Fernando Ramos, professor, crítico à época da Folha de S.Paulo, escreveu: “É um feito dramatúrgico notável, que coloca esse autor canadense, antes inédito no Brasil, entre os mais inventivos da atualidade”.

Dramaturgia não-linear, em três planos, influenciou teatro brasileiro contemporâneo. Foto: Lina Sumizono

Hoje, os três planos: a montagem da peça que conta a história de Ray, um homem que recebe uma notícia importante e vai compartilhá-la com a família; a discussão de Brian (Fernando Eiras), que está criando a peça, e Brad (Emílio de Mello), sobre a história de Ray e sobre a relação dos dois; e o passado dos dois homens, flui de modo mais fácil. Deixou de ser singular – o recurso da simultaneidade de narrativas foi bastante experimentado, inúmeras vezes, no cinema e, de modo mais significativo para este texto, no teatro. Outro recurso de MacIvor utilizado à exaustão nos anos que se seguiram: os falsos finais nas peças. Que espectador de teatro, nos últimos 15 anos, não viu uma peça que parece que vai acabar, mas ainda não?

 Sobre a agilidade na apreensão do espectador, talvez ela seja influenciada também, como os atores pontuaram no debate pós-espetáculo, no último dia 2 de abril, por nossa vivência com a comunicação nas redes sociais, que se intensificou nos últimos anos, e que se dá rápida, mudando de um tema ao outro em segundos ao arrastar a tela do celular com os dedos. Timelines com muitos assuntos aleatórios e simultâneos.

Ainda assim, 16 anos depois da montagem no Brasil, 25 anos depois de ter estreado fora do país, na Escócia, o texto continua inventivo e surpreendente, se bastando em si mesmo. Claro que, para funcionar, essa peça precisa de dois atores com muita sintonia e uma direção precisa, mas o texto mais do que aponta, carrega os direcionamentos da encenação. Se a forma continua interessante, o conteúdo ainda faz muito sentido, não é anacrônico. É um texto que fala sobre as relações, sobre a nossa falsa sensação de controle, sobre aproveitar a vida enquanto há tempo. 

Os poucos recursos da encenação – duas cadeiras e um casaco – pontuados no texto de Santos, também se multiplicaram no teatro contemporâneo por muitos anos. Seja porque o que importava, naquele momento, era o trabalho dos atores, a concisão, o minimalismo, seja porque isso influenciava categoricamente na circulação dos espetáculos. Era muito mais fácil – talvez ainda seja – circular com um espetáculo que não conta com cenário grande, volumoso, pesado. Cenário que pode ser arranjado em qualquer cidade, duas cadeiras. A iluminação de Maneco Quinderé funciona como esse cenário, preenchendo o palco nu, pontuando com beleza as mudanças de planos nas narrativas do espetáculo.

Fernando Eiras Foto: Lina Sumizono

Emílio de Mello. Foto: Lina Sumizono

É como se, na forma, tanto do texto quanto da cena, estivéssemos agora vendo algo que foi muito importante para o teatro brasileiro. Como assistíamos há alguns anos, por exemplo, aos trabalhos de criadores da década de 1980, chaves na experimentação estética de um tipo de teatro, que foi se transformando em outros ao longo do tempo, como aconteceu com In On It.

Para além dessa forma, o jogo dos atores é a delícia do espetáculo. São dois atores muito bons, com um timing preciso de troca entre eles, inclusive para o humor e para a interação com a plateia, cumplicidade, agilidade. Naquele espaço, entre os dois atores, cabe o mundo todo num segundo de hesitação entre um texto e o próximo, dado pelo parceiro.

Há, porém, um senão que diz respeito à representação: a caricatura na interpretação de alguns personagens, especialmente das mulheres. E sim, isso já estava na encenação lá atrás, há 16 anos. Só que não nos afetava, não a ponto de nos incomodar, não era uma questão com a qual estávamos lidando naquele momento. Mas aparecia, mesmo que de modo ainda incompreendido. Luciana Romagnolli, jornalista e crítica, escreveu para a Gazeta do Povo, jornal curitibano, depois da primeira sessão no Festival de Curitiba, em 2010: “O texto assim se abre em duas camadas, e mais uma terceira que é o passado, enquanto os dois se desdobram em personagens, homens e mulheres diferenciados pela sutileza mesmo quando incorporam o estereótipo. A direção de Enrique Diaz é impecável ao reconhecer cada movimento do texto astucioso e traduzir em um jogo limpo.” A sensação trazida por Luciana Romagnolli era compartilhada por toda uma plateia, inclusive de artistas e críticos. Não nos perturbava e é com pesar que digo isso hoje, mesmo entendendo que essa apreensão da realidade faz parte de um processo histórico. Avisei que o texto seria sobre fazer de novo, igual, mas diferente.

Apesar da liberdade que os atores possuem na interpretação, não cabe mais – nunca deveria ter cabido – a personagem ser caricaturizada e estereotipada, com uma vozinha fina irritante e uma língua presa que nem dá a ouvir o texto direito, e a composição de feminilidade frágil aparente no corpo, mesmo que essa mulher – que no texto não é uma jovem, já tem filho adulto e casado – esteja escolhendo a felicidade dela, abandonando o marido que está doente, porque se apaixonou por outro. Uma personagem incrível, Brenda, feita por Fernando Eiras. Ou assistir à interpretação de Emílio de Mello para Pam Ellis, que surge como uma fútil, louca por homem, que coloca a mão na testa, joga a cabeça para trás, pisca e solta beijinhos. No texto, Pam foi abandonada por um homem que cuidava do filho dela como pai e que sofre com a ausência dele. E, mesmo assim, ela não está chorando, ela está num bar e oferece uma bebida a Ray, que também foi traído e abandonado. Outra personagem incrível. A gente só precisa de uma cena para ver o quanto as duas podem ser complexas. Mas viram caricaturas na construção de um feminino que se ergue apenas pelos estereótipos. Essas interpretações nos afastam de quem são essas personagens, de suas humanidades, que estão lá, na dramaturgia. Inclusive, o próprio texto problematiza como as mulheres são retratadas na história de Ray que os dois atores estão construindo, como duas bêbadas, o que não é o caso. É só para levantar o debate.

Interpretação caricaturizada e estereotipada das mulheres é uma questão na versão atual. Foto: Lina Sumizono

Personagens complexas são reduzidas pela interpretação. Foto: Lina Sumizono

As transformações sociais e as discussões identitárias que tomaram o Brasil e, como consequência, o teatro, não podem mais ser negadas, mesmo que no resgate de uma peça que influenciou o modo de fazer teatro de toda uma geração. Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira mulher presidenta do Brasil. No seu segundo mandato, sofreu um golpe que expôs a misoginia no país. De lá para cá, a extrema direita desgovernou o Brasil durante uma pandemia. 700 mil pessoas morreram. Estamos aqui, agora, nos agarrando a uma esperança de reconstrução de direitos fundamentais, não sem muita disputa de poder e emendas pix e mercado irritado. O mundo se modificou, mesmo que a passos lentos, mesmo que a plateia continue amando o espetáculo. O teatro – que continua contemporâneo – precisa estar alinhado às mudanças se ainda desejar relevância.

O espetáculo In on It foi apresentado nos dias 2 e 3 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha Técnica:

Texto: Daniel MacIvor
Tradução: Daniele Avila Small
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenografia: Domingos de Alcântara
Figurino: Luciana Cardoso
Figurino 2024: Carla Garan e Thiago Gandra
Trilha sonora: Lucas Marcier
Programação visual: Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia
Operador de luz: Lina Kaplan
Operador de som: Gabriel Reis
Direção de produção: Joana D’Aguiar
Produção executiva: Ana Beatriz Figueras
Idealização: Emilio de Mello e Enrique Diaz
Realização: Machenka Produções

Direção de In On It é assinada por Enrique Diaz. Foto: Lina Sumizono

Plateia do Teatro da Reitoria, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

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Manifesto de esperança
Crítica de AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém]

Renata Sorrah em AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo, Rodrigo Bolzan e Rafael Bacelar. Foto: Lina Sumizono

Memória deveria ser verbo. Sim, memorizar é verbo, mas não diz o que eu gostaria. Quando falamos sobre memorizar, o sentido que salta, imediato, é o de decorar, repetir até que saibamos algo de cor. No dicionário, memorizar também pode ser lembrar, recordar, relembrar. Não é isso. Queria pensar neste “verbo-memória” como uma prática expandida, fluida, que não separa corpo e mente, material e imaterial, realidade e imaginação, plantas, animais e humanos, tempos cronológicos ou estelares.

Como seria exercer este verbo-memória relacionado à pandemia de covid-19? Quais imagens permanecem incrustadas em nós, aquelas dilatadas para além dos nossos corpos físicos? Quem continua conosco? O que mudou internamente? E coletivamente? Estamos falando do que aconteceu, do que ainda vai acontecer ou das duas coisas? Não sabemos essas respostas, não racionalmente. Em março de 2023, chegamos ao número de 700 mil pessoas mortas vítimas de covid-19 no Brasil. 700 mil pessoas. SETECENTAS MIL PESSOAS. Não há quem consiga apreender esse número e tudo que ele implica no hoje, no amanhã, no ontem, no tempo que não conhecemos.

AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, com direção de Marcio Abreu, experimenta algo da dimensão do que estou chamando de “verbo-memória”, inclusive na expansão de acontecimentos temporalmente recentes, como a pandemia. A atriz Renata Sorrah, que está no elenco ao lado de Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo, diz que a montagem encara os instantes de suspensão, quando parece que você teve uma epifania e entendeu tudo, com seu corpo, sua mente, sua alma e, logo depois, quase imediatamente, isso se encerra. O portal fecha. Está de modo praticamente literal no título, amplificar, ao vivo, a fração de tempo em que sua cabeça abre, antes dela fechar de novo.

No caso da peça, esse momento acontece quando a personagem está dirigindo, esse hábito que se torna automático, vento no rosto, vontade de fumar um cigarro, música tocando baixinho no rádio a caminho do ensaio da peça. A sensação de liberdade. Essa epifania talvez ocorra para os espectadores em alguma cena específica da montagem, tomara, mas como proponho o verbo que é prática, que se move, neste texto esse instante se desdobra e se esgarça, mesmo que passe como num segundo, ou ao longo de toda uma peça de 1h30min.

Em A crise da narração, Byung-Chul Han escreve que “a memória é uma prática narrativa que constantemente vincula novos acontecimentos e cria uma rede de relações”. A questão é que a nossa interação com o que nos cerca estaria reduzida à causalidade dos fatos e informações, o que significa o “desencantamento do mundo” e a perda da nossa capacidade de narrar. “As coisas existem, mas quedam em silêncio”, diz o filósofo. A peça da cia brasileira de teatro é um contraponto a esse silêncio. Ao esfacelamento da dimensão pública e privada da memória como prática. Os atores deslizam na liberdade da linguagem das artes vivas para que fatos e informações possam ser descritos e narrados e se tornem praticamente palpáveis. O que é falado ganha densidade como imagem, matéria que passa a existir.

Os atores representam a si mesmos e a alguns, muitos, espero que multidões de nós. Fazem isso de um lugar determinado do campo político, que se revela de modo claro pela escolha de quais fatos e memórias vão enovelar, pelo conteúdo do discurso elaborado, e pelos quereres de futuro. O exercício vertiginoso do verbo-memória nos aproxima da ideia de que o tempo inteiro estamos perdendo o mundo como o conhecíamos e outros estão sendo criados concomitantemente, inclusive no palco. Um mundo se desfaz, outro começa. O teatro é suporte de criação para esses mundos que podem se estender para além da sala de espetáculos. No teatro, escrevemos, atuamos, cantamos, dançamos. A música de Gonzaguinha, cantada lindamente por Bianca Manicongo, Bixarte, dá o tom: “Começaria tudo outra vez | Se preciso fosse, meu amor | A chama em meu peito ainda queima | Saiba, nada foi em vão”.

AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém] trabalha com memórias coletivas e individuais. Foto: Lina Sumizono

Rodrigo Bolzan. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki. Foto: Lina Sumizono

Esses mundos que se fazem e se desfazem ao vivo são compostos a partir de experiências de linguagem, em registros que vão se alternando. Ao lado do discurso social e político direto, do autobiográfico, do meme de Nazaré e das citações atribuídas à Clarice Lispector, há camadas de maior abstração na encenação, ligadas à composição das cenas, às imagens em vídeo, à cenografia, à dramaturgia – e aqui, especialmente, à representação de um texto seminal para o teatro ocidental, A gaivota, de Anton Tchékhov.

O texto referência é uma obra encharcada do humano, uma mãe famosa, um namorado mais novo escritor, um filho escritor, uma jovem atriz com muitos sonhos. O texto instaura discussões sobre as relações humanas, o sonho, a vaidade, a melancolia, a desesperança, a depressão, o desespero do fim. Embora a dramaturgia de A Gaivota esteja incorporada à encenação de AO VIVO, e seja visível para quem conhece o texto, a história paira como uma epifania. A composição da cena, como imagem, é quase uma tela, um fim de tarde no jardim. Os nomes dos personagens não são ditos, assim como não há menção ao nome da peça. Isso talvez nos aproxime ainda mais desse duplo, Renata Sorrah e personagem, essa mulher que é uma atriz famosa, muito mais famosa do que o seu namorado, que ao perceber que pode perdê-lo diz que é apenas uma mulher comum, que se ressente da idade quando o homem que ama se encanta por uma mulher mais nova, que não tem certeza se é livre.

A Gaivota é inspiração para a peça da cia brasileira de teatro. Foto: Lina Sumizono

AO VIVO, inclusive, pode ser considerada uma grande, linda e merecida homenagem à Renata Sorrah, essa atriz que marcou a história do teatro, do cinema e da televisão. Que foi Nina em 1974, numa montagem de A Gaivota que tinha no elenco Tereza Rachel como Arkádina, além de nomes como Sergio Britto, Cecil Thiré e Renne de Vielmond. Cuja imagem garota, num tempo que é memória e se expande, é exibida no palco em Matou a família e foi ao cinema, filme de 1969, de Júlio Bressane. O Brasil acompanhou o envelhecimento de Renata Sorrah e isso é muito bonito, uma atriz plena com suas escolhas.

Etarismo, uma das discussões que se desprende de A Gaivota e da própria presença de Renata em cena, e transfobia são tratados no registro do discurso direto, do manifesto, do que precisa ser dito. Renata Sorrah e Bianca Manicongo, travesti, fazem uma cena de espelhamento, uma dando o discurso correspondente à outra. Renata diz, entre outras coisas, que amar e ser amada não é para todas as pessoas, só para as vivas, e a média de vida de uma travesti é de 35 anos. Bianca questiona a pressão sobre as mulheres velhas, associadas às bruxas, enquanto os homens velhos são associados à sabedoria. Os discursos se atravessam no lugar de decisão sobre o próprio corpo e da discussão sobre a empatia: “O problema de falar em nome do outro é que todo mundo acaba sem voz”.

Renata Sorrah e Bianca Manicongo dão voz a discursos uma da outra. Foto: Lina Sumizono

A peça – e a peça dentro da peça – nos lembram que muitos vão sucumbir neste processo de memória-verbo. Morte matada, morte morrida, morte que até parece vida. Rafael Bacelar desabafa: é difícil dizer que todas as esperanças acabaram, assim como está em A Gaivota. Mas AO VIVO explicita a desesperança por meio de Tchékhov para anunciar o contrário: há espaço para esperançar. Espaços. Se você não consegue enxergá-los, vamos abri-los juntos, nesta epifania de 1h30min. Esperançar, na peça, depende do que chamo de resgate da memória-verbo que está, inclusive, no corpo das atrizes e atores. No corpo de Bianca, uma travesti dividindo cena com Renata Sorrah porque é uma atriz ótima, uma cantora maravilhosa. E seu corpo diz por si. Sua voz diz por si. Precisamos de novas formas, afirma o texto do espetáculo. Formas que são ancoradas por corpos. Por vozes. E, ao lado do dito sotaque “neutro” de Renata Sorrah, o sotaque da televisão que aplaina as diferenças, o sotaque nordestino de Bianca explode com força. A frase não é de Clarice, é de Leminski, não está no espetáculo, mas poderia: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”.

Vocalizar e sustentar o discurso que reage à homofobia, à transfobia, ao etarismo, à ascensão da extrema direita no país é uma forma de esperançar novos mundos para plateias diversas. Espectadores muitas vezes atraídos ao teatro pelo nome de Renata Sorrah, e que não necessariamente ouviriam esses discursos de outra forma, senão na plateia de um teatro, um espaço que proporciona essa convivência “forçada” com o outro por um tempo determinado.

A peça cumpre o papel de alcançar e falar diretamente com esse outro: AO VIVO estreou no ano passado, no dia 22 de agosto, e permaneceu em cartaz até 1 de dezembro, com sessões de quinta a domingo, esgotadas, no Sesi-SP, no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. Poucas pessoas abandonaram as sessões no meio. Na porta desse prédio, por anos, as pessoas se reuniam e faziam vigílias para pedir por intervenção militar no país. Um pato inflável de cinco metros criticava a política tributária do governo da presidenta Dilma Rousseff. Então é significativo que, neste lugar, um grupo de teatro que completa 25 anos em 2025 possa falar sobre os desejos de um novo Brasil, como um manifesto lindo e potente que anuncia esses passos, incluindo “banhar o Brasil”, “abraçar a floresta”, “beber água limpa”, “convocar as bichas todas”, “beijar as bocas”, “desbrazilizar para existir Brasil”.

O espetáculo é acolhido – o que não quer dizer que as pessoas concordem com o que está dito ali – porque consegue balancear radicalidade do discurso e humanização. A partir de A Gaivota, da relação entre mãe e filho, por exemplo, Rafael Bacelar protagoniza uma cena em que se transforma em drag queen no palco – se maquia, coloca salto e peruca – e dialoga com um áudio de sua mãe. “Eu me conformei porque eu te vi feliz e ninguém tem o direito de obrigar o outro a ser o que se quer ser”. Que mãe não se identifica? Enquanto dança – propondo uma brincadeira de dançar apenas com o lado esquerdo do corpo – Rafael mistura sua história ao discurso político e à história recente do país: diz que começou a dançar com a esquerda em 2002, saiu da linha da pobreza, entrou na universidade pública. O apelo da cena é flagrante: o público, dividido pelo ator entre direita, esquerda e centrão, entra na brincadeira. Há, no entanto, um discurso sobre esquerda que particulariza, que personaliza na figura do presidente Lula a própria esquerda, e que, a despeito do que estamos vivendo hoje no Brasil, diz textualmente que recuperamos a radicalidade da esquerda. Queríamos que fosse verdade.

Rafael Bacelar se transforma em drag queen no palco e protagoniza cena sobre direita e esquerda no país, Foto: Lina Sumizono

Na memória que é verbo, de tempos entrelaçados, quem sabe isso possa se concretizar. Algum dia, outro tempo, nosso tempo. E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos, como diz a música de Luiz Melodia. O que fica desse tempo que não voltamos a viver? O que queremos guardar? O que queremos fazer novo? AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] é esse vislumbre de esperança, que nos faz pensar quais outros mundos desejamos instituir. “Escutar, correr e agir”. E ser felizes. “Diante de nós, aquilo que formos capazes de construir agora”, anuncia o texto.

O espetáculo AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] foi apresentado nos dias 27 e 28 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Texto e direção: Marcio Abreu
Pesquisa e criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bixarte
Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Direção musical e trilha sonora original: Felipe Storino
Direção de movimento e colaboração criativa: Cristina Moura
Assistência de direção e colaboração criativa: Fábio Osório Monteiro
Direção videográfica: Batman Zavareze
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, Marcio Abreu, Nadja Naira e José Maria
Assistente de arte: Gabriel Silveira
Edição de vídeo: João Oliveira
Captação de imagens para vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de som: Chico Santarosa
Assistência de cenografia: Kauê Mar
Técnica de vídeo, luz e programação videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de luz e som: Dafne Rufino
Cenotécnica e maquinaria: Tinho Viana, Alexander Peixoto, Sasso Campanaro e Douglas Caldas
Fotos: Nana Moraes
Programação visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Criação e produção: companhia brasileira de teatro

Peça é também uma homenagem à Renata Sorrah. Foto: Lina Sumizono

 

 

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