Poética da masculinidade
em movimento
Crítica: Umbigo

Espetáculo Umbigo, da Companhia Ozinformais, de Alagoas,. Foto: João Erisson / Divulgação

Bailarinos-criadores José Marcos Tope e Jal Oliveira. Foto: João Erisson / Divulgação

Umbigo, espetáculo da Companhia Ozinformais, de Alagoas, com os bailarinos Jal Oliveira e José Marcos Topete e direção de Carlos Alberto Barros, foi apresentado no Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, no dia 3 de junho, no Teatro CHC Santa Casa. E circula pelo Palco Giratório por várias cidades brasileiras. Parto da premissa de que esse trabalho se revela como uma contundente reflexão corporal que, ao se inspirar em tradições como o Toré e o Coco de Roda, estabelece um diálogo provocador com as masculinidades contemporâneas. Proponho que sua poética corporal ao celebrar essas manifestações culturais, também as fricciona com as questões de ser homem no século 21.

O espetáculo abraça e reelabora tradições culturais alagoanas, práticas ancestrais que representam elaborados sistemas de conhecimento corporal e cosmovisões. Essas manifestações oferecem um rico repertório de movimentos, ritmos e espacialidades, servindo como base para a exploração de narrativas corporais.

O Toré, ritual dos povos indígenas do Nordeste brasileiro, notadamente os Kariri-Xocó e Xucuru-Kariri de Alagoas, Pankararu, Fulni-ô, Truká, Kambiwá, Pipipã, Pankará e Xukuru (Pernambuco), Potiguara (Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte), Tumbalalá, Kiriri, Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Kaimbé e Kantaruré (Bahia), Xocó (Sergipe), Tremembé, Tapeba, Jenipapo-Kanindé e Anacé (Ceará), Atikum (Pernambuco e Bahia), Tupinambá (Bahia), Kalankó, Koiupanká, Karuazu e Tuxá (Alagoas, Bahia e Pernambuco), manifesta-se como dança circular concebida para estabelecer contato com entidades ancestrais, a espiritualidade da terra e a coesão comunitária. Caracterizado pelo movimento rítmico e contínuo dos pés no chão, gera círculos dinâmicos, acompanhado por cantos e pelo som de maracás.

Na peça de dança Umbigo, a circularidade e a percussão insistente dos pés no solo tornam-se princípios estruturantes da coreografia, ressoando a resistência cultural e a força telúrica desses povos.

Paralelamente, o Coco de Roda alagoano, manifestação cultural de raízes afro-brasileiras
nascida nos quilombos e engenhos açucareiros, apresenta-se como patrimônio cultural de elaborada tecnicidade rítmica e coreográfica, forjado em contextos de resistência e celebração. O trupé – caprichado jogo de batidas dos pés que gera padrões rítmicos intrincados e sincopados – evidencia um refinado sistema de saber corporal. Essa técnica demanda notável destreza, coordenação e sensibilidade rítmica, sendo ressignificada no espetáculo ao transpor sua essência tradicional para uma linguagem coreográfica contemporânea.

Entrelaçando memória, resistência e pertencimento, essas manifestações culturais permitem que Umbigo construa pontes entre temporalidades e contextos diversos, gerando novas energias.

Masculinidades em Transformação: Diálogos Teóricos e Corporais

A proposta cênica estabelece diálogo frutífero com as teorias contemporâneas sobre masculinidades, especialmente com Raewyn Connell e bell hooks. Connell propõe que não existe uma masculinidade singular, mas diversas configurações hierarquicamente organizadas. Seu conceito de “masculinidade hegemônica” refere-se a práticas de gênero que legitimam a posição dominante de alguns homens e a subordinação das mulheres e outros homens.

Connell identifica quatro padrões: hegemônica (forma culturalmente exaltada e dominante), cúmplice (beneficiários dos dividendos patriarcais), subordinada (formas oprimidas pela hegemônica) e marginalizada (relacionada a homens subalternizados por classe, raça ou etnia).

Umbigo contesta o modelo dominante através da corporalidade dançante. Os corpos masculinos manifestam práticas contra-hegemônicas – formas de expressão que desafiam expectativas normativas sobre como homens devem se movimentar, expressar emoções e se relacionar.

bell hooks desenvolve uma crítica incisiva à masculinidade patriarcal, argumentando que esta prejudica mulheres e causa danos profundos aos próprios homens. Sua “ética do amor” defende que homens precisam desenvolver capacidades para intimidade emocional e cuidado mútuo. No espetáculo, isso materializa-se nos gestos de sustentação recíproca, particularmente quando um bailarino abre os botões da camisa do outro – gesto de desarmadura que sugere abertura para intimidade não-dominadora, baseada na confiança e no respeito.

A Reinvenção da Corporalidade Masculina: Gravidade, Essência e Presença. Foto: João Erisson / Divulgação

A batida de pé no chão, elemento nuclear da coreografia, vai além da técnica, convertendo-se em metáfora de uma relação renovada com o mundo e o próprio corpo. O contato percussivo com o solo propõe uma masculinidade enraizada, conectada à terra. No palco desnudado, os corpos revelam sua essência sem artifícios mediadores. 

A exigência física dos 40 minutos constitui uma declaração performática intencional. As técnicas do Toré e do Coco de Roda alagoano demandam excepcional resistência, fazendo com que os intérpretes se entreguem à exaustão como parte integrante da narrativa.

Montagem exercita uma desobediência epistêmica. Foto: João Erisson / Divulgação

A direção de Carlos Alberto Barros revela consciência dos dilemas geopolíticos da criação artística atualmente. Produzir dança contemporânea desde Alagoas implica enfrentar invisibilização e subalternização. O sistema brasileiro historicamente privilegiou produções do eixo Rio-São Paulo, relegando outras regiões à categoria de “regionais” ou “folclóricas”. Tal hierarquia reflete uma lógica colonial que desvaloriza a produção cultural das periferias.

Nesse contexto, a articulação de tradições alagoanas com a dança contemporânea representa “desobediência epistêmica” – conceito de Walter Mignolo que se refere ao ato de desafiar estruturas de conhecimento eurocêntricas dominantes.

Umbigo expressa essa desobediência ao se afirmar simultaneamente como radicalmente alagoano e plenamente contemporâneo, demonstrando a viabilidade de criar dança contemporânea a partir de referências culturais específicas sem resvalar no exotismo, propondo uma nova centralidade para as periferias.

O figurino no espetáculo Umbigo, composto por bermuda e camisa de botão, embora simples, desempenha um papel crucial na narrativa cênica. Essa escolha minimalista facilita a mobilidade dos bailarinos e serve como uma tela neutra que destaca os movimentos e interações corporais, sugerindo uma concentração na expressão física e na dinâmica das relações em cena. O momento em que um bailarino abre os botões da camisa do outro constitui-se como ponto de inflexão dramatúrgica. Como já citado, o gesto de abrir os botões da camisa do outro bailarino pode ser interpretado como um momento de intimidade não mediada por papéis tradicionais masculinos de competição ou dominação, mas baseada em vulnerabilidade compartilhada e cuidado mútuo. 

A trilha sonora original de Iury Limão estabelece um diálogo cúmplice com a coreografia, compartilhando suas raízes no Toré e no Coco de Roda alagoano. A composição se integra à linguagem corporal do espetáculo, acompanhando-a e recriando de forma contemporânea a essência rítmica das danças tradicionais, enquanto cria novas texturas sonoras. Os ritmos percussivos que evocam as batidas dos pés no chão criam camadas de significação que acompanham as transformações coreográficas, iluminando as mudanças de dinâmica e intensidade ao longo do espetáculo. 

Peça contesta o modelo dominante e sugere o umbigo como ponto de conexão e antídoto ao falocentrismo

O umbigo, como elemento central, condensa significados que remetem à nossa conexão primordial com a mãe e a Terra. Ele evoca conceitos como a Pachamama andina, símbolo de fertilidade e interconexão. Como cicatriz vital, é um lembrete contínuo de nossa interdependência.

Cabe aqui uma importante distinção: longe de evocar a visão popular e excludente do “olhar para o próprio umbigo” como centro do mundo e sinônimo de egoísmo, a simbologia do umbigo explorada nesta análise aponta, ao contrário, para uma dimensão de profunda conexão, sensibilidade e interdependência mútua. Ele se torna o ponto de origem de um vínculo essencial, que remete à formação e à sustentação da vida, sublinhando a natureza inerentemente relacional do ser humano.

A psicanalista feminista Luce Irigaray, em Speculum of the Other Woman, critica a centralidade do falo na psicanálise, argumentando que tal centralidade reforça uma ordem patriarcal. Enquanto o falo encarna separação e dominação, outros elementos corporais poderiam fundar uma ordem alternativa baseada em conexão e reciprocidade.

Embora Irigaray não discuta especificamente o umbigo, sua crítica ao falocentrismo oferece subsídios essenciais para compreender o potencial desestabilizador deste elemento no espetáculo. O umbigo evidencia nossa origem compartilhada, desafiando narrativas de autonomia absoluta associadas à masculinidade hegemônica. Funciona como lembrete ontológico de que todo ser humano provém de outro corpo e carrega interdependência inscrita em seu ser.

Na coreografia, os corpos traduzem que a força reside na conexão, não no isolamento. O espetáculo propõe uma ordem alternativa – não centrada no falo como separação, mas no umbigo como conexão e origem.

Os corpos que percutem o chão, sustentam-se mutuamente e conectam-se através do umbigo propõem formas de ser homem baseadas na igualdade e vulnerabilidade. Tal proposição ressoa num país marcado por violência de gênero, feminicídio, transfobia e homofobia, ligada a normas de masculinidade tóxica e patriarcal. A performance, portanto, se apresenta como um alerta. Sua estética, ao propor uma força baseada na conexão e no reconhecimento da própria humanidade, sugere a urgência de uma ética de cuidado e reciprocidade.

 

Ficha Técnica

Bailarinos criadores: Jal (Jailton) Oliveira e José Marcos Topete
Encenação e direção: Carlos Alberto Barros
Trilha sonora original: Iury Limão
Fotografia: João Erisson
Figurino: Penelope
Produção executiva: Carlos Alberto Barros

Referências

 

BOLA, JJ. Seja Homem, a Masculinidade Desmascarada. São Paulo: Dublinense, 2020.
CONNELL, Raewyn. Masculinities. Berkeley: University of California Press, 1995.
hooks, bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Londres: Pluto Press, 2000.
hooks, bell. The Will to Change: Men, Masculinity, and Love. New York: Atria Books, 2004.
IRIGARAY, Luce. Speculum of the Other Woman. Trad. Gillian C. Gill. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1985.
GRÜNEWALD, Rodrigo de Azevedo. (Org.). Toré: Regime Encantado do Índio do Nordeste. Recife: Editora Massangana, 2004.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Tradução de Ângela Lopes Norte. Revista Gragoatá, Niterói, n. 22, p. 11-41, 1º sem. 2007.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica, pensamento independente e liberdade decolonial. Tradução de Isabella B. Veiga. Revista X, Curitiba, v. 16, n. 1, p. 24-53, 2021.

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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