Ao desobedecer, Antígona ensina sobre a liberdade

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Antígona desafia o poder injusto do Estado. Fotos: Matheus José Maria / Divulgação

Os garotos que estavam sentados na fileira da frente saíram eufóricos. O casal mais intelectual reclamou do procedimento que entendeu como didático da encenação de Antígona, com Andrea Beltrão e direção de Amir Haddad. Fiapos de conversas, trechos de comentários davam conta do talento e da versatilidade da atriz, da simplicidade dos dispositivos cênicos, da facilidade de entender o emaranhado de maldições, desditas entre deuses e homens. O meu amigo reclama porque a tragédia Antígona está esburacada e outros mitos entram no mote. É mesmo, para injetar gás nessa saga temporal da heroína, Haddad /Beltrão também foram buscar ingredientes em As Bacantes, de Eurípedes, nas peças da Trilogia Tebana de Sófocles – Édipo Rei e Édipo em Colono, além da tradução que dá título ao espetáculo, feita por Millôr Fernandes (1923–2012).

Andando pelo Paulista para pegar o metrô fui recolhendo esses vestígios de recepção. Todos têm razão. A razão de cada um. A interpretação de cada um. A curta temporada gratuita da tragédia de Sófocles, na sede do Itaú Cultural dava o que o falar para um público diversificado, mas já versado no exercício da cidadania cultural.

Antígona é uma das belas a atuais tragédias gregas. Escrita há 2.500 é aberta a leituras contemporâneas. Qualquer calouro de Direito é convidado a se inteirar da peça para refletir sobre o embate entre direito natural e direito positivo, entre o que é moral e legal, a legitimidade do poder soberano, o decreto tirânico de Creonte.

Esse rei dá a ordem de que ninguém pode sepultar Polinices, na visão régia, o traidor da pátria. Ocorre que Antígona, filha do incesto de Édipo e Jocasta, é irmã de Polinices e Etéocles, que se mataram na briga pelo trono de Tebas. Antígona se posiciona contra a leis injustas do estado. A personagem é inspiração feminista por combater o patriarcado. Essa obra clássica e aberta a múltiplas interpretações aponta desde sempre para o futuro.

Haddad mago do teatro popular, envolvido há quase 30 anos com o grupo Tá na Rua, sintonizou suas antenas de comunicação direta com plateias diversas para o espírito da peça, que chega despojada e repleta de uma língua prosaica do mundo contemporâneo.

Andrea Beltrão

Andrea Beltrão interpreta Antígona e todos os personagens do espetáculo.

Um varal genealógico dá conta da linhagem de deuses e mortais, seus destinos trágicos, pelejas, martírios, tiranias, vícios e virtudes. Essa quadro materializa os recuos e avanços temporais das relações da personagem-título até Zeus, e expõe a ascensão e queda da cidade de Tebas.

Nessa saga interpretativa, Andrea salta de um a outro personagem, assume a voz do coro e encarna Édipo, Ismênia, Jocasta, Creonte, e os outros… A partir de poucos acessórios – echarpe, sapatos, cadeira e microfone – e recursos poderosos de corpo e voz a atriz constrói todas as figuras dessa tragédia, bem como comenta.

Nesse percurso e alternância de figuras a carga trágica do texto primeiro se dilui, mas é abastecido pela pulsação desse mundo contemporâneo que nos chega vorazmente em telinhas e telões. De violências, tensões e guerras, intolerâncias de todas as ordens, machismo e todas as políticas com os seus podres poderes.

Não esqueçamos dos avisos de Sófocles: “Apenas o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém a sua força, porque mantém a sua medida humana”. Remédio para aplicar direto na ferida.

Se esbarrarem com Antígona por aí não hesitem em abraçá-la. Ela pode estimular sua coragem adormecida.

Ficha Técnica

Autoria: Sófocles
Tradução: Millôr Fernandes
Dramaturgia: Amir Haddad e Andrea Beltrão
Direção: Amir Haddad
Com: Andrea Beltrão
Iluminação: Aurélio De Simoni
Figurino: Antônio Medeiros
Direção de Movimento: Marina Salomon
Cenário e Projeto Gráfico: Fabio Arruda e Rodrigo Bleque
Desenho de Som: Raul Teixeira
Operação de luz: Diego Diener
Camareira: Conceição Telles
Administração: Laura Gonsalves
Mídias Sociais: Nicolle Meirelles
Produção Executiva: Ricardo Rodrigues
Direção de Produção: Carmen Mello
Produção: Boa Vida Produções
Realização Turnê: Trigonos Produções Culturais

SERVIÇO
Antígona
Com Andréa Beltrão
1º de abril (domingo), às 19h. Último dia da temporada que começou em 23 de março
Duração: 60 minutos
Classificação Indicativa: 16 anos 
Sala Itaú Cultural (224 lugares)

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Paixão obstinada

Cena da Crucificação. Foto Ivana Moura

Montagem dirigida por José Pimentel sai na marra em 2018. Cena da Crucificação. Fotos: Ivana Moura

Apóstolos

O ator Hemerson Moura estreia como Jesus no lugar de Pimentel. Cena com os Apóstolos

Após a primeira sessão da Paixão de Cristo do Recife, na sexta-feira 30/03, o elenco e a produção comemoraram a realização do evento, bradando como o espetáculo da resistência, da bravura, da determinação. Foram muitos problemas superados. Eles têm o que festejar. Fazer acontecer. E isso vai para a conta da tenacidade do ator, diretor e produtor José Pimentel, seu carisma junto ao público, sua liderança junto aos artistas. Afinal, são mais de quatro décadas envolvido nessa via-crúcis.

Na temporada 2018 da Paixão de Cristo do Recife, Pimentel não está no palco, mas sua obstinação ocupa mais espaço no Marco Zero, região central da capital pernambucana.

Mais duas sessões ocorrem hoje, 31 de março e amanhã, domingo, 1° de abril, sempre às 20h.

Em dezembro ator potiguar Hemerson Moura, de 39 anos, nascido em Caicó e com 21 anos de carreira, conquistou o papel de Cristo, após disputar a substituição do posto de Pimentel com mais outros 27 atores.

No início de março foi anunciado pelos produtores associados (Pimentel, Paulo de Castro e Antônio Pires) o cancelamento da encenação por falta de verba, captação insuficiente de recursos, tempo escasso para os ajustes técnicos (cenários, figurinos, gravação de áudio, estrutura do palco). 

Mas houve uma marcha-ré. A divergência entre os produtores associados sobre não fazer ou levantar a encenação de todo o jeito falou mais alto e fraturou a equipe. Alguns integrantes caíram fora do barco, mas outros participam pela primeira vez, como são os casos de Augusta Ferraz e Jomeri Pontes.

Pimentel garante que o que o convenceu a manter a peça foi a mobilização popular (do elenco, inclusive) após o aviso de suspensão do programa, no início deste mês de março. Foi um bombardeio pedindo a realização da Paixão do Recife nas redes sociais. Pelo menos foi esse o entendimento do diretor, que também sofreu críticas por desfazer o cancelamento. Isso tudo mexeu com os brios desse leonino obstinado. Ele ainda não sabe se foi a melhor decisão, mas ontem estava contente.

Paixão recife

Paixão Recife chega à 22ª edição

O evento cultural, que tem também um apelo religioso, já chegou a juntar um público de 30 mil pessoas a cada sessão. Na estreia dessa temporada não chegou a tanto, mas tinha muita gente na Praça do Marco Zero, no Bairro do Recife. O elenco de 100 atores e 300 figurantes habituais também me pareceu um pouco mais reduzido.

A produção ficou nas mãos do próprio diretor, sua filha, Lilian Pimentel, Mísia Coutinho e da empresa Refletores Produções. Os recursos, segundo eles, são os mesmos de quando foi anunciado o cancelamento: R$ 400 mil (de um orçamento de R$ 700 mil), verbas da Prefeitura e do Governo do Estado de Pernambuco.

Houve mudança considerável do elenco. Atores saíram por discordâncias com a produtora Lilian, filha de Pimentel. Alguns intérpretes, inclusive, não autorizaram a utilização de suas vozes, já que o áudio é o mesmo de anos anteriores e a equipe da peça teve que fazer alguns malabarismos.

Foto Ivana Moura

Garra do elenco e da equipe técnica foi fundamental para a realização do espetáculo

A Paixão de Cristo do Recife é importante por suas qualidades e também por seus defeitos. José Pimentel que acompanhou na beira do palco toda a encenação sabe melhor do que qualquer crítico das falhas técnicas e humanas da estreia. Atrasou meia hora por problemas de iluminação, que também falhou em outros momentos. Alguns efeitos especiais não funcionaram.

Pimentel também tem convicção que a estrutura não é ideal, que o cenário está corroído por cupins e que os figurinos já passaram da hora de serem renovados. Mas garantiu que contou com a boa-vontade de alguns fornecedores.

Ao final da apresentação ele lembrou do sacrifício feito por toda equipe para erguer a montagem neste ano. “Teve todo tipo de problema”, desabafou, mas preferiu destacar o espírito aguerrido da equipe. “Vocês não imaginam o sacrifício que a gente impôs a gente mesmo, de passar a noite sem dormir, para que esse espetáculo ficasse pronto”, contabilizou Pimentel.

Mas nada disso é o mais importante. A cumplicidade com o público, a liga emocional que se estabelece com a plateia, o clamor popular pesam mais. Pimentel é um artista pernambucano que sabe dialogar bem com plateias populares, acionar os afetos até às lagrimas. Mesmo que o figurino não tenha sido trocado, o cenário reformado, os cachês ajustados, vale mais a fé no jogo, dos integrantes e do público.

E se entra na trilha sonora música de Roberto Caros ou padres cantores e isso parece destoar do que se pensa de via-crúcis, isso pouco importa. É estabelecida uma sintonia e isso faz circular uma energia do poder do teatro. No final da estreia, uma rápida chuvarada para purificar. 

Paixão do Recife

Paixão do Recife

O desempenho de Hemerson Moura deu mais agilidade e leveza às cenas. Ele imprimiu  suavidade aos gestos do personagem e outra disposição nos movimentos. E também se adequou a voz de Pimentel como Jesus. Nos últimos anos a atuação de Pimentel despertava uma tensão, devido à sua condição física de saúde. Então, HM evolui com segurança nas plataformas do cenário.

Além da chegada do protagonista, que pode dar um novo fôlego ao espetáculo, os destaques foram as cenas do Diabo (Roberto Vasconcelos), da morte Judas (Ivo Barreto), em que o público gritava traidor; a Santa Ceia, a festança de Herodes (Luciano Lucas), com a participação de Augusta Ferraz. No elenco também estão Renato Phaelante, Angelica Zenith (Maria) e Gabriela Quental (Madalena).

Augusta Ferraz

Augusta Ferraz atua na festa de Herodes

A Paixão de Cristo do Recife foi criada em 1997, como reação à saída de José Pimentel do papel principal e direção da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém. Nos primeiros anos ficou conhecida como “A Paixão de Todos”. Foi encenada no estádio do Arruda durante cinco anos. Migrou para o Marco Zero, com apresentações entre 2002 e 2005. Com as reforças no espaço em 2006, o espetáculo foi apresentado em frente ao Forte do Brum. Desde 2007 ocupa o Marco Zero nesta época do ano.

Desde o primeiro ano é luta. No início foi uma questão de honra para Pimentel e muitos artistas pernambucanos que se engajaram à ideia de garantir a reserva de mercado para os profissionais do estado, numa clara oposição às decisões da Paixão de Nova Jerusalém de contar com elenco televisivo.

SERVIÇO
Paixão de Cristo do Recife
Quando: Sábado, 31/03 e domingo, 1º/04, as 20h
Onde: Marco Zero
Quanto: Gratuito

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O cirurgião do Teatro de Amadores de Pernambuco

Espetáculo Um Sábado em 30, com Reinaldo de Oliveira ao centro. Foto: Acervo TAP / Divulgação

Espetáculo Um Sábado em 30, com Reinaldo de Oliveira ao centro. Fotos: Acervo TAP / Divulgação

Cena de Um Sábado em 30

Cena de Um Sábado em 30, dramaturgia de Luiz Marinho, com direção original de Valdemar de Oliveira

Cena de Onde canta o Sabiá

Cena de Onde canta o Sabiá, montagem de 1958, com direção de Hermilo Borba Filho

Uma das mais notáveis figuras das artes cênicas pernambucanas ganha um perfil biográfico com o lançamento do livro Reinaldo De Oliveira: Do Bisturi ao Palco (260 páginas, R$ 80). Assinado pelo encenador Antonio Edson Cadengue, o volume integra a coleção Memórias, da Cepe Editora, com lançamento nesta sexta-feira (23), às 19h, na Academia Pernambucana de Letras.

Desde meados do século 20, a medicina e o teatro convivem em harmonia na vida do ator, diretor, escritor e médico de 87 anos, admirado e aplaudido nos dois campos. Filho e herdeiro artístico do fundador do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), o teatrólogo Valdemar de Oliveira e da atriz Diná de Oliveira, Reinaldo domina a “maquinaria” teatral com a destreza de cirurgião. Ator talentoso e versátil, ele atuou em montagens do TAP, a exemplo de Arsênico e alfazema, Vestido de Noiva e Um sábado em 30 e também dirigiu inúmeros espetáculos do grupo criado em 1941.

Cadengue o coloca no mesmo patamar de atores brasileiros consagrados, como Paulo Autran e Sebastião Vasconcelos. O biógrafo faz a comparação com a autoridade de quem estudou no mestrado e no doutorado da USP a trajetória do TAP, que resultou na publicação TAP sua cena & sua sombra: O teatro de amadores de Pernambuco, em dois tomos.

O perfil biográfico, como o autor prefere chamar, foi erguido a partir de entrevistas realizadas com Reinaldo de Oliveira, e outras fontes como artigos de jornal. “Tentei conhecê-lo o mais que pude em suas facetas, ao longo de sua trajetória de vida: afinal, Reinaldo completou 87 anos e eu não teria o menor direito de julgar suas qualidades e seus defeitos. Estive mais interessado no que ele me revelava”, explica Cadengue.

A narrativa que avança em várias direções busca ressaltar os marcos na vida de Reinado, dos antepassados, da infância à maturidade; formação; relacionamentos amorosos e casamentos; amizades e especialmente o talento artístico.

Cadengue destaca nesse itinerário o pensamento e sentimento desse homem de teatro, que deu prosseguimento ao trabalho do pai, Valdemar de Oliveira, e “que soube honrar os princípios que nortearam até hoje o Teatro de Amadores de Pernambuco, sem descuidar-se dos aspectos éticos e estéticos”.

Reinaldo, que reconstruiu o Teatro Valdemar de Oliveira depois do incêndio de outubro de 1980, encara atualmente o desafio de recuperar e reabrir o teatro da família Oliveira, situado no bairro da Boa Vista, região central do Recife.

Capa do livro

Capa do livro

SERVIÇO

Lançamento do livro Reinaldo de Oliveira – Do bisturi ao palco, de Antonio Edson Cadengue
(Cepe Editora) 260 páginas, R$ 80 o exemplar
Quando: Nesta sexta-feira (23), às 19h
Onde: Academia Pernambucana de Letras (Avenida Rui Barbosa, 1596, Graças)
Informações: (81) 3268-2211

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Vamos fugir? Do Recife a Portugal

foto: Maíra Arrais

Alguém pra fugir comigo. Foto: Maíra Arrais / Divulgação

O título é sugestivo. Alguém pra fugir comigo. E nesses tempos de barbárie chega a ser um alento contar com pessoas. Mesmo que seja só uma. Para confiar. Para partilhar. Para sonhar. Com a sensação de que estamos cada vez mais vulneráveis diante das políticas públicas (e da falta delas), frente à impunidade com os verdadeiros poderosos deste país (o espetáculo rasga o manto: desde sempre), com a constatação de que somos presas fáceis quando lutamos por direitos ou criticamos, é bom ir ao teatro.

Ficar junto, conectar forças talvez seja uma saída. Sempre o talvez. Alguém para fugir comigo é a primeira montagem profissional do Coletivo Resta 1 de Teatro, grupo recifense egresso de um Curso de Formação do Sesc e que segue adiante. Esses verbos são importantes: caminhar, insistir, tentar. A peça dirigida por Analice Croccia e Quiercles Santana trabalha no campo da incerteza e isso cria potências.

A história brasileira é uma história de violências. O espetáculo investiga isso também, essa (de)formação econômica e social. A encenação combina cenas justapostas e intercambiáveis. Em comum, a opressão; dos séculos retrasado e passado e dos tempos atuais. De descaramento e cinismo. Entre quadros, os atores exercitam o grito de dor, rebentação.

Canções, provérbios, imagens, quadros isolados, literatura, cinema, história inspiram essa narrativa não-linear. Há frestas de fatos reais contemporâneos e históricos, do Brasil e da Europa. A corrupção, o trabalho escravo, recortes das metrópoles, a solidão em sua porta, os preconceitos de todas as ordens irrompem como temática, carne e movimento.

Corrupções, chantagens, traições estão na base de enriquecimentos, manutenção do status quo. Às custas de vidas silenciadas de fato e metaforicamente.

Mesmo com o gosto amargo de que nada, absolutamente nada sucede após alguns crimes. Sigamos. Mesmo que o sentimento de impotência diante da impunidade por práticas de assassinato e tortura, de que o Estado dentro do Estado mudou quase nada.

Essa montagem trabalha numa perspectiva utópica, para dizer chega de tanta brutalidade, de tanta arbitrariedade, de tanta injustiça. É um espetáculo sobre urgências.

É certo que os quadros têm estaturas diferentes e efeitos variados. Há cenas suaves e outras que rasgam o nervo e fere o osso. Em uma dessas molduras aparece Liberdade, uma negra, escrava, presa, acorrentada. A construção de camadas remete para o racismo declarado e implícito e para tantas questões imprescindíveis de identidades, espaços e pertencimentos. Em outra situação, uma mulher é humilhada até a morte por autoridades policiais. É uma cena dura, por tudo que representa e suscita.

Entre as malas do cenário os atores convidam para essa viagem. Um percurso pela trajetória de dores brasileiras e de subjetividades do elenco. Na década de 1980, Cazuza convidava “Vem comigo, no caminho eu explico”. Não sei se hoje há muito o que detalhar. Talvez sim. Mas é tempo de limpar nossas lentes para as panorâmicas e zoom. E principalmente é premente  fortalecer nossos melhores afetos, com o respeito que o ser humano merece.

Alguém para fugir comigo. Foto: Kleber Santana/Divulgação

Em frente, provoca a peça. Foto: Kleber Santana/Divulgação

Alguém pra fugir comigo
Duração: 1h30min
Classificação indicativa: 14 anos

Encenação: Analice Croccia e Quiercles Santana
Assistência dramatúrgica: Ana Paula Sá
Desenho de luz: Elias Mouret
Direção musical: Katarina Menezes e Kleber Santana
Desenho de som: Kleber Santana
Preparação de corpo e movimento: Patrícia Costa
Cenografia: Flávio Freitas
Adereços: Gorett Cabral
Narração: Zoraide Coleto
Artes digitais e gráficas: Analice Croccia
Direção artística e produção: Resta 1 Coletivo de Teatro
Elenco: Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Claudiane Barros, Luís Bringel, Pollyanna Cabral, Wilamys Rosendo

SERVIÇO
Alguém Pra Fugir Comigo – Rumo À Portugal
Onde: Teatro Marco Camarotti – Recife, PE
Quando: 18 de março de 2018, 17h
Ingressos: R$ 40,00 (+ R$ 4,00 taxa) / R$ 20,00 (+ R$ 2,00 taxa) / R$ 25,00 (+ R$ 2,50 taxa)
Vendas até às 15h no site sympla
https://www.sympla.com.br/alguem-pra-fugir-comigo—rumo-a-portugal__256723
ou no teatro.

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Memórias das Malvinas. Crítica: Campo Minado

Campo Minado. Foto: Guto Muniz / Divulgação

Campo Minado. Foto: Guto Muniz / Divulgação

Esses velhos inimigos eram jovens, muitos não tinham vocação militar. Alguns nem sequer uma ideia precisa do que estavam fazendo naquele conflito armado. Mas foram insuflados ou obrigados por questões nacionalistas dos governantes da ocasião. O espetáculo Campo Minado, da escritora, atriz, performer e encenadora argentina Lola Arias, leva ao palco veteranos das duas frentes da Guerra das Malvinas, 35 anos depois. A peça foi exibida na programação da 5ª MITsp – Mostra Internacional de Teatro .

O teatro documental da criadora argentina já rendeu Chácara Paraíso – em codireção com o suíço Stefan Kaegi, ligado ao grupo Rimini Protokoll – sobre a polícia brasileira; El Año en que Nací, em que 11 jovens, filhos de vencedores e vencidos do golpe de Pinochet no Chile recuperaram a vida de seus pais através de documentos e histórias; Melancolía y Manifestaciones – que atravessa o percurso de Lola e de sua família, com a ditadura militar na Argentina em 1976 e Os Suicidas, a partir de um episódio com adolescentes, no norte da Argentina. Por essa rota dá para perceber que a diretora está interessada em cavoucar os fiapos de gente que ficam desses traumas.

Em Campo Minado, peça representada em inglês e espanhol, com legendas em ambas as línguas (e em português), veteranos e sobreviventes do conflito expõem um pouco de suas vidas. Vale salientar, o que eles se interessam em expor ou conseguem dividir com o público do teatro. O espetáculo confronta visões distintas do conflito. E isso inclui a parcela da vivência real, com a produção ficcional sobre si mesmo, o que produz outra experiência real.

Heranças sentimentais.

Os ensaios para Campo Minado duraram mais tempo do que a Guerra das Malvinas, diz em palco um dos ex-combatentes. Foram 74 dias de batalha e mais de três meses de processo de criação e performance,que geraram uma dramaturgia de autoria compartilhada. 

O mosaico do conflito é traçado a partir de visões antagônicas, dos diários produzidos pelos veteranos ingleses e argentinos, além dos documentos de época e arquivos afetivos dos participantes da montagem e discursos de líderes políticos. 

O então fuzileiro britânico Lou Armour teve sua foto estampada na capa de vários jornais, na ocasião que virou prisioneiro dos argentinos, em 2 de abril de 1982. Para ele uma humilhação difícil de digerir. Armour protagoniza uma das mais cenas mais comoventes da montagem.  Quando ele relembra da morte de um oficial argentino, que confessa em inglês que não sabia porque estava lutando. Atualmente Armour dá aulas para crianças com dificuldades cognitivas.

Ter resistido ao afundamento do navio General Belgrano talvez seja motivo de orgulho do argentino Rubén Otero. Talvez. Ele agora toca numa banda de covers dos Beatles. David Jackson exercita sua escuta no seu consultório de psicologia; na guerra ele ouvia e transcrevia códigos de rádio.

Atualmente advogado de direito penal, Gabriel Sagastume nunca quis disparar qualquer arma. Sukrim Rai Sukrim Rai foi um ‘ghurka’ que manuseava a faca com habilidade, agora trabalha como segurança. Apontador de morteiro durante os dias das Malvinas, Marcelo Vallejo é agora campeão de triatlo.

Un poquito de historia

Lola Arias tinha cinco anos na época da guerra. Ao longo de sua formação percebeu as marcas das feridas deixadas pelo conflito no corpo dos argentinos. A disputa das Malvinas (Falklands, na denominação inglesa), ocorreu em 1982, numa contenda armada entre Reino Unido e a Argentina. O território da peleja é um conjunto de arquipélagos austrais do Atlântico sul, junto à Patagônia, ocupado pelos britânicos desde meados do século 19, e que os argentinos consideravam uma ocupação ilegal.

A Plaza de Mayo, em Buenos Aires, foi palco de um célebre protesto contra a ditadura militar em 30 de Março de 1982. Para desviar o foco, o general e ditador argentino Leopoldo Fortunato Galtieri Castelli (1926 — 2003) armou uma ofensiva para tomar de volta as Malvinas, e em 2 de abril, três dias depois das manifestações contra a ditadura, Galtieri é ovacionado na mesma praça. Pareceu uma jogada de mestre para fazer sobreviver uma ditadura à beira do colapso.

Nem sempre os ditadores acertam nos cálculos. E Galtieri cometeu muitos erros, inclusive de minorar a força de sua adversária, por ser mulher. Margaret Hilda Thatcher, (1925 — 2013), Primeira-Ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, respondeu com uma força-tarefa naval para retomar as ilhas, o que resultou na derrota argentina após 74 dias de combate. O conflito contabilizou 649 mortos do lado argentino, 258 do lado britânico e 3 civis que habitavam as ilhas.

O número de suicídios motivados por stress pós-traumático e depressão profunda de ex-combatentes na Argentina já passa dos 500, de acordo com a Federação de Veteranos de Guerra. Do lado inglês, esse cálculo supera os 260, mais do que as baixas britânicas no conflito, segundo segundo a SAMA82 (South Atlantic Medal Association 82).

Elenco utiliza máscaras de

Elenco utiliza máscaras de Galtieri e Thatcher. Foto: Guto Muniz / Divulgação

As Malvinas entram em pano de fundo para tratar desses seis homens veteranos, ingleses e argentinos, arrebentados / triturados pela experiência da guerra, que transitam no limite da humanidade. O cenário de um estúdio de cinema permite esse mergulho no tempo para reconstruir memórias 35 anos depois do final da disputa. Cada um tem seu momento de fala, até de confrontação de raciocínio. Os dois políticos – Galtieri e Thatcher – aparecem caricaturados por máscaras de borracha e discursos inflamados.

 A ordenação do espetáculo segue uma sequência direta de quadros, que inclui apresentação dos participantes, treinamento e admissão como soldados, diário de guerra, memória/ perspectiva, diferencial de cada um. Em cenas conectadas por músicas tocadas e cantadas ao vivo pelo elenco.

“Até que ponto se é um ser humano, até que ponto se pode matar e morrer por uma ideia”, ecoa no teatro o questionamento da encenadora.

Campo minado nasceu da vídeo-instalação Veteranos, encomendada a Lola Arias para integrar a mostra mundial After the War, pela passagem do centenário da I Guerra Mundial. A criadora juntou uma série de relatos de ex-combatentes argentinos na Guerra das Malvinas. Depois ela convocou os ingleses, para confrontar no palco os antigos rivais.

Em uma das falas, um dos ex-combatentes confessa: “Quando voltei, a guerra tornou-se uma obsessão; a minha mulher chama-me ‘monotema’”. Talvez essa introjeção de personagem de si mesmo justifique performances tão apuradas dessas figuras, selecionadas pela diretora entre 60 veteranos dos dois lados do conflito. Ficaram três argentinos, dois ingleses, um nepalês, do contingente dos gurcas, intimidantes soldados que lutaram ao lado dos britânicos.

Elenco toca ao vivo na peça Campo Minado. Foto Guto Muniz / Divulgação

Elenco toca ao vivo na peça Campo Minado. Foto Guto Muniz / Divulgação

A polifonia deve ter sido mais explosiva durante o processo de construção da peça, até chegar ao formato de gestos, pausas, falas curtas ou entrecortadas digamos mais domesticadas, mais no limite do civilizado. As tensões são traduzidas numa narrativa fragmentada, de perspectiva diversa. Mas para conviveram entre si nessa passagem artística parece-me que cada um deles precisou abdicar da porção mais furiosa, dos sentimentos mais violentos contra os antigos inimigos. Esse limite humano – do que é preciso abster-se para aceitar minimamente o outro – chega conciliatório (até certo ponto) também nos discursos antibélicos. Mas aqueles indivíduos, que passaram pela prática da guerra, da ronda da morte e das dobras de sentido da existência, sabem muito mais do que é preciso abrir mão para sobreviver do que nós, sentados confortavelmente nas poltronas do teatro. 

Por trás de bandeiras de países estavam homens, atingidos em sua juventude por uma batalha menor, e que redirecionaram suas vidas na idade adulta, com essa carga de experiência de matar e ver o companheiro morrer, de sobreviver ao cruzamento de balas, sem talento específico para isso.

Eles se livraram do alvejamento, sobreviveram. Cada qual carrega sua bagagem. Antigos inimigos, toparam construir ou confrontar um relato sobre a mesma luta. E mesmo com toda dificuldade gerada por posições antagônicas, acolheram escutar o outro. Reconhecer o humano no outro.

Pelo que se vê no palco não há convencimentos de parte à parte sobre quem tem razão. Lola Arias aposta no teatro como o lugar do encontro, da experiência. Também da discórdia e do dissenso. Mas com possibilidade de ressignificar o passado e ao atravessar o presente ampliar as perspectivas de futuro. 

O que os aproxima, para além da política, do poder que pende mais para um lado do que para o outro, é que todos eles são homens despedaçados pela guerra. A chance de matar e o perigo de morrer, o ódio sem nexo plantado pelos governantes na manipulação dos destinos, não fizeram deles heróis. Talvez pelo contrário. Eles carregam a culpa do disparo, do choro pelo inimigo e até por ter sobrevivido. Mas a vida segue. Tem que seguir. 

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