Barbara Heliodora deixa um vazio na cena teatral

Barbara Heliodora deixa sua marca na história do teatro brasileiro

Barbara Heliodora deixa sua marca na história do teatro brasileiro

Acabou uma era. A mais sincera, a mais contundente, a mais demolidora e controversa crítica teatral brasileira morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital Samaritano, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde estava internada desde 21 de março. Heliodora Carneiro de Mendonça, a nossa Barbara Heliodora, tinha 91 anos e deixa um vazio enorme. Crítica teatral (os últimos 23 anos no jornal O Globo), ensaísta, professora de história de teatro e tradutora, Barbara Heliodora era uma mulher altiva e de personalidade forte. Dessas criaturas diante de quem é impossível ficar indiferente. Amada e odiada por atores, diretores, enfim pelos artistas e público do teatro.

Barbara Heliodora nasceu em 29 de agosto de 1923, filha da poetisa Anna Amélia Carneiro de Mendonça e do historiador Marcos Carneiro de Mendonça. Ele também foi goleiro, tricampeão pelo Fluminense em 1917, 1918 e 1919.

Uma das autoridades da obra de William Shakespeare no Brasil, ela traduziu 35 das 37 peças do bardo inglês para o português. Sua mãe já havia traduzido para o português Hamlet e Ricardo III. A paixão pelo universo shakespeariano começou na infância, aos 12 anos, quando recebeu de presente da mãe o primeiro volume das obras completas do dramaturgo, época em que ainda não dominava o inglês. Ano passado publicou pelas edições de Janeiro o livro Shakespeare – o que as peças contam: tudo o que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos.

Escreveu vários livros. Sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) foi a primeira a ser publicada, A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare, em 1975.

Formada em literatura inglesa no Connecticut College, nos Estados Unidos, nos anos 1940, Barbara iniciou a carreira no jornalismo, aos 35 anos. Estreou na função de crítica em 1957, na Tribuna da Imprensa, onde atuou entre outubro de 1957 e fevereiro de 1958. Ela contou que começou por acaso, porque sempre discutia sobre os espetáculos com o pessoal do Tablado. Quando vagou a coluna teatral ela foi lá pedir o emprego a Carlos Lacerda. “Fiquei só uns quatro ou cinco meses, porque mudou o chefe de redação e o novo queria que eu escrevesse fofocas teatrais”.

Depois passou a escrever para o Jornal do Brasil, onde trabalhou até 1964. Lá ganhou notoriedade e legitimidade. Era conhecida na classe teatral como a “Dama de Ferro”. Vale ressaltar que sua geração de críticos teatrais no Rio era mais aguerrida, exigente e até hostil. Paulo Francis detonava no Diário Carioca e Henrique Oscar arremetia no Diário de Notícias.

Barbara ocupou a direção do Serviço Nacional do Teatro, nomeada pelo governo Castello Branco, entre 1964 e 1967, em plena ditadura militar. Ensinou no Conservatório Nacional de Teatro e no Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio), onde se aposentou em 1985. Voltou à crítica depois de um longo intervalo, na revista Visão e cinco anos depois seguiu para o jornal O Globo, onde trabalhou até 31 de dezembro de 2013, quando fez 90 anos de idade.

Com Francisco Cuoco e sua filha Patricia Scott Bueno. Foto: Ellen Ferreira / reprodução do Facebook

Com Francisco Cuoco e sua filha Patricia Scott Bueno. Foto: Ellen Ferreira / reprodução do Facebook


Essa senhora de cabelos acinzentados, grandona, sempre bem vestida, dona de uma pena afiadíssima, chegava a assistir até cinco espetáculos por semana. E ela não tinha dó de apontar o joio. Costumava dizer: “Às vezes é um verdadeiro horror, muito pior do que escrevo nos textos. Como é que não percebem que estão apresentando tamanha porcaria?”

Essa postura lhe rendeu alguns confrontos. Foi amaldiçoada nos jornais e nas revistas por Gerald Thomas, foi barrada numa montagem de Ulysses Cruz e despertou a ira de muita gente, como José Celso Martinez Corrêa. A fama de crítica implacável inspirou a comédia Barbara Não Lhe Adora. O meio artística ansiava por uma crítica sua, mas não era uma relação pacífica. Barbara foi questionada pela virulência de seus textos. Ela costumava responder: “A crítica condescendente é uma má crítica”.

Mas do mesmo jeito que escrevia coisas como “meu pobre Shakespeare sofre mais um triste golpe nessa bobajada insana”, era capaz de exaltar uma montagem que admirasse: “Esse espetáculo é maravilhoso!, Não perca”. E Barbara andava entusiasmada com a nova leva de dramaturgos brasileiros. “O tempo vai fazer a seleção, ver quem tem fôlego para seguir carreira”, disse em uma entrevista.

A crítica teatral deixa três filhas de dois casamentos: Priscilla, a mais velha, analista de sistemas, que mora em São Paulo, Patricia, a do meio, atriz, que vive no Rio e a designer Marcia, a caçula, que mora em Belo Horizonte. Deixa quatro netos: Guilherme, Julia, Laura e Sophia. E três bisnetos: Pedro, Isabela e Felipe.

Barbara Heliodora comentou que já tinha visto mais de 3.500 espetáculos teatrais. Uma prova da sua devoção a essa arte tão efêmera.

Homenagem feita por Fernanda Montenegro a Barbara Heliodora no 24 Prêmio Shell de teatro no Rio

Homenagem feita por Fernanda Montenegro a Barbara Heliodora no 24 Prêmio Shell de teatro no Rio


“Eu não conheço ninguém na nossa área que tenha amado tanto o teatro e tenha se entregado tanto ao teatro como ela. Somos amigas muito particulares, muito queridas, cada uma respeitando o espaço da outra. A última grande lembrança de estar com ela foi no meu aniversário de 85 anos em outubro. Minha filha fez uma reunião na casa dela. E meus contemporâneos foram entre os quais ela estava, eu guardo essa lembrança. A morte da Barbara é como se morresse uma rainha. Não é apenas a morte de uma atriz grandiosa em cena, não, é uma crítica, uma escola, uma estudiosa, uma amante de um processo cultural teatral que não recebe os aplausos e as vaias em cena aberta, pelo contrário. É algo muito particular, trabalhado. Barbara foi uma mulher que parou de ir ao teatro porque já não aguentava, com 90 anos. Qualquer coisa que eu possa falar é pouco diante dessa personalidade.”
Fernanda Montenegro
atriz, a GloboNews

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