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Teatro de Santa Isabel:
175 Anos de Palco,
Resistência e Memória

Tombado pelo IPHAN em 1949, o TSI é um 14 teatros-monumentos do país. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

É impactante sua arquitetura neoclássica. Foto: Andréa Rêgo Barros / PCR

Lançamento de livro e apresentação do Grupo Magiluth na celebração de aniversário. Foto: Andréa Rêgo Barros

Em 2025, o Teatro de Santa Isabel completa 175 giros em sua espiral temporal, entrelaçando passado e presente no coração do Recife. Esse corpo arquitetônico respira memórias e performa histórias que se acumulam em camadas, como uma máquina do tempo em movimento, onde cada apresentação deixa seus rastros invisíveis. Inaugurado em 18 de maio de 1850, o edifício neoclássico é um organismo cultural que pulsa, absorve e reflete as vibrações sociais de quase dois séculos.

Concebido pelo Barão da Boa Vista e materializado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, suas paredes testemunharam momentos da história, desde os debates da Revolução Praieira até os discursos que culminaram na declaração de Joaquim Nabuco: “Aqui vencemos a causa da abolição”. O incêndio de 19 de setembro de 1869, que destruiu quase toda a estrutura do teatro, deixando apenas paredes laterais, alpendre e pórtico, não silenciou sua importância. Em 16 de dezembro de 1876, o teatro ressurgiu para continuar sua missão como palco da efervescência cultural pernambucana.

Desse palco, revoluções saltaram para as ruas. Suas colunas sustentam ideais de liberdade que permeiam gerações. Ao visitá-lo hoje, conectamo-nos diretamente com um capítulo fundamental da história cultural do Brasil, apreciando tanto sua relevância arquitetônica quanto sua contribuição para a formação da identidade pernambucana. Em um país que luta para não esquecer sua memória, esperamos que o Santa Isabel permaneça – resistente, vivo e necessário – como artéria pulsante da cultura que segue reinventando o futuro a partir das lições do passado.

Para a celebração de aniversário, o Santa Isabel recebe no domingo, dia 18 de maio, às 19h, o Grupo Magiluth com o espetáculo Estudo Nº 1: Morte e Vida, uma releitura do poema de João Cabral de Melo Neto. E nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, ocorre o lançamento do livro digital Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, pesquisa minuciosa do jornalista e historiador Leidson Ferraz, que faz uma palestra sobre os primórdios da crítica no Recife.

 

Estudo Nº 1: Morte e Vida

Uma reconfiguração contemporânea do clássico severino

Cena faz alusão à precarização do trabalho, e a Thiago Dias, trabalhador de aplicativo que morreu de exaustão Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Essa cena do canavial, cruza Michael Jacson com maracatu rural, com Bruno Parmera. Foto_Vitor Pessoa

 

Crises climáticas e migrações são discutidas no espetáculo. Foto_Vitor Pessoa/ Divulgação

Como parte das celebrações de 175 anos, o Teatro de Santa Isabel recebe no domingo, 18 de maio, uma das mais instigantes produções do teatro pernambucano contemporâneo. Estudo Nº 1: Morte e Vida, do Magiluth, sob direção de Luiz Fernando Marques (Lubi) e assistência de Rodrigo Mercadante, propõe uma releitura radical do clássico Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Os ingressos  para o espetáculo são distribuídos na bilheteria do teatro, a partir das 18h.

A dramaturgia expandida torna-se um “manifesto-palestra” que entretece o texto original com narrativas urgentes do presente, preservando a força poética cabralina, amplificando-a nas discussões atuais, evidenciando como as questões de migração, precarização do trabalho e crise climática permanecem dolorosamente atuais.

Podemos pensar sobre episódios trágicos do mundo real, que, embora não estejam diretamente em cena, chegam por associação, como a brutalidade sofrida por Moïse Mugenyi Kabagambe – refugiado congolês no Brasil, assassinado em 2022 no Rio de Janeiro após cobrar salários atrasados. Ou em um dos  episódios centrais da encenação, que reflete a precarização do trabalho e o desprezo pela vida, a história de Thiago Dias – trabalhador nordestino que sucumbiu em 2020 por exaustão após jornadas extenuantes como entregador de aplicativo em São Paulo.

Essas tragédias estabelecem pontes temporais que apontam a persistência das desigualdades sociais, que vem muito antes da publicação de Morte e Vida Severina (1955).

A força do texto cabralino não fica aprisionada em uma redoma de contemplação, mas, ao contrário, é potencializada ao ecoar em narrativas urgentes do presente. Quando os atores alternam entre os versos e intervenções performativas que incorporam narrativas atuais, criam um campo dialógico onde passado e presente se interpenetram, expondo as estruturas de poder e as continuidades históricas da exploração no contexto das novas configurações das ordens mundiais.

A encenação rompe radicalmente com a ilusão teatral ao expor deliberadamente seus mecanismos de produção. Microfones, mesas técnicas à vista, projeções em painéis desnudos – todos estes elementos compõem um dispositivo metateatral que transforma o espetáculo em uma “oficina” visível de criação.

A estrutura espiral da montagem sobrepõe camadas temporais através de projeções que justapõem imagens de arquivo, recortes digitais e colagens visuais. Esta fragmentação sensorial reflete a própria natureza caótica da experiência contemporânea, criando uma malha de significados que desafia interpretações lineares. O título “Estudo” não é casual: carrega a natureza investigativa de um teatro que se propõe como pesquisa contínua e menos como produto acabado.

Um dos aspectos mais provocativos da montagem é seu questionamento da própria figura do “Severino”. Ao utilizar ferramentas de busca digital para expor representações estereotipadas do nordestino, o espetáculo desnaturaliza imagens cristalizadas no imaginário nacional. O personagem insiste em dizer que não é uma entidade fixa para mostrar-se como um conceito em constante movimento, atravessado por muitas vozes e experiências.

 

Primórdios da crítica teatral no Recife

Leidson Ferraz lança livro digital e faz palestra. Foto: Léo Mota. Capas do livro. Design: Claudio Lira.

Uma investigação sem precedentes sobre os primórdios da crítica teatral pernambucana será apresentada ao público nesta sexta-feira (16 de maio), às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Fruto de meticuloso trabalho em vários periódicos dos séculos 19 e 20, o livro Ponto de Vista: crítica e cena pernambucana, de Leidson Ferraz, doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, inaugura as celebrações pelos 175 anos da casa de espetáculos. A obra desvenda o universo das primeiras publicações críticas sobre teatro na imprensa recifense, reconstruindo o panorama cultural da época através de documentos raros e análises. O acesso ao evento é gratuito.

Durante a palestra, o pesquisador compartilha curiosidades sobre os embates e polêmicas que marcaram a cena teatral pernambucana, desde os críticos anônimos que usavam pseudônimos como “O Kapla” e “O Sentinela” até a profissionalização da crítica no início do século 20. Entre os destaques da pesquisa está o momento de transição dos gêneros teatrais, quando as operetas e o teatro de revista substituíram o teatro romântico e realista, causando reações intensas como a ocorrida em 1869, quando apresentações de óperas-buffa provocaram tumultos no mesmo ano em que o teatro sofreria um devastador incêndio. A publicação, que contou com incentivo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB/PE), já está disponível gratuitamente em formato digital no link Livro

 

Entrevista – Romildo Moreira – diretor do Teatro de Santa Isabel

Romildo Moreira. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Aproveitando o momento significativo das comemorações dos 175 anos do Teatro de Santa Isabel, realizamos uma entrevista com Romildo Moreira, atual diretor dessa casa histórica das artes pernambucanas. Com experiência na gestão cultural e conhecimento sobre o legado deste patrimônio, Moreira compartilha reflexões sobre os desafios de preservar e administrar um espaço que testemunhou importantes capítulos da história brasileira desde 1850.

– O Teatro de Santa Isabel é um verdadeiro patrimônio cultural e arquitetônico. Quais aspectos da história e da vocação do teatro o senhor destacaria como fundamentais para sua identidade?

Romildo Moreira – O Teatro Santa Isabel é um patrimônio cultural e arquitetônico, sim. Foi tombado pelo IPHAN em 1949, já ressaltando exatamente esse patrimônio com uma ênfase da cultura local, na cidade do Recife, e patrimônio nacional da arte e da cultura, como depois ele foi eleito a esta condição.

Ele participa dos 14 teatros-monumentos do país e hoje ele é considerado pelo próprio IPHAN como um dos teatros antigos do Brasil, um dos mais bem equipados e com programação permanente.

O tanto que a gente aqui fica recebendo solicitações de pauta o tempo inteiro e já está com a pauta para 2025, por exemplo, lotada até o dia 21 de dezembro. Ou seja, tanto a produção local quanto a produção nacional e até produções internacionais, quando vem para o Nordeste, pensa no Recife e no Teatro de Santa Isabel.

De fato, ele é almejado não só pela produção local, mas, como falei, nacional e internacional.

 – Considerando a importância histórica e a relevância na cena cultural do Recife, como o teatro se posiciona para cumprir seu papel frente aos desafios contemporâneos?

Romildo Moreira – Com relação aos desafios contemporâneos, mesmo o teatro sendo muito antigo, com 175 anos de existência, a gente não faz discriminação de espetáculos contemporâneos, de teatro, dança, circo, ópera etc., desde que não haja nenhum prejuízo físico ou moral para casa, a gente tem todo o prazer em receber essas produções aqui no palco do Teatro Santo Isabel. Isso tem ocorrido frequentemente. Inclusive, a nossa comemoração dos 175 anos do Teatro Santo Isabel é com o Grupo Magiluth, que tem um espetáculo muito contemporâneo, um espetáculo que não tem uma pegada cênica de antigamente, muito pelo contrário, é um espetáculo jovem, atemporal, contemporâneo etc.

Gostaria de entender melhor o que significa “prejuízo físico ou moral para casa”.

Romildo Moreira – Prejuízo físico é que danifique alguma coisa de palco, da plateia, das cadeiras, do gradil que é tombado etc. Então, prejuízo físico seria exatamente danificar algo que caracteriza o patrimônio. E prejuízo moral seria espetáculos de cenas explícitas, de pornografias, de sexo etc.

Só lembrando também que prejuízo moral também seria espetáculos pornográficos. A gente não teria esta condição de recebê-lo pela própria história e relevância do Teatro Santo Isabel.

 O mês de maio reserva uma programação especial para o aniversário do teatro.

Romildo Moreira – Para a celebração dos 175 anos, na programação oficial nossa aqui do Teatro de Santa Isabel, temos o lançamento do livro Ponto de Vista: Crítica e Cena Pernambucana, de Leidson Ferraz,  na sexta-feira, 16/05, (às 19h) e no domingo, 18/05, a apresentação gratuita de Estudo nº1: Morte e Vida, do grupo Magiluth, em comemoração ao aniversário

Quanto à Orquestra Sinfônica do Recife, os concertos (27/05 e 28/05, às 20h) fazem parte da programação mensal. Não está diretamente vinculado ao aniversário do teatro, mas também não deixa de ser uma oportunidade das pessoas estarem aqui nesta semana de comemoração desta data tão importante para um teatro que está permanentemente ativo. Não é verdade?

– O que motivou a escolha dessa programação especial?”

Romildo Moreira – Com relação ao que motivou essa programação que você chama de especial para o aniversário do teatro, é uma coisa muito simples. Primeiro, o lançamento do livro de Leidson Ferraz trata-se de teatro, e nada melhor do que lançar num teatro, como o Teatro de Santa Isabel, porque muita pesquisa ele fez aqui também, no nosso material. E na própria descrição do livro se fala muito no Teatro de Santa Isabel. E quanto ao Grupo Magiluth, a escolha do Grupo Magiluth é porque é um grupo local importantíssimo que faz apresentações aqui esporadicamente por outras questões, por falta de pauta etc., e pela qualidade do grupo, a qualidade dos espetáculos do grupo, inclusive trazendo uma peça baseada em João Cabral, do Melo Neto. Então a pernambucanidade do espetáculo tem tudo a ver também com a pernambucanidade do Teatro de Santa Isabel. Enfim, mas independente dessa coisa bairrista mesmo, é a qualidade artística que o grupo Magiluth tem nos seus espetáculos.

E esta é a razão mais forte que a gente encontra para dizer que este grupo vai entrar nesse aniversário do teatro tranquilamente.

– O teatro possui algum projeto de curadoria específico para contornar questões contemporâneas e potencializar o uso do espaço cultural? Como esse projeto tem influenciado a escolha e a execução dos eventos?”

Romildo Moreira – Bem, não existe uma curadoria para escolhas dos espetáculos a acontecer no Teatro de Santa Isabel. Existe um decreto de número 21-924, de 10 de maio de 2006, que normaliza as pautas que a gente pode oferecer, pode receber aqui. Então, não pode ter excesso de som, som até 95 decibéis, não pode ter abundância de água em cena, não pode ter fogo, não pode ter drone etc., coisas que possam pôr em risco o patrimônio cultural do Teatro de Santa Isabel. Então isso a gente leva em conta quando recebe as propostas de pauta se esse espetáculo pode ser apresentado aqui ou não. Quando não pode ser apresentado aqui, a gente explica o motivo e sugere uma outra casa de espetáculos. Normalmente, a produção local já sabe disso e não traz esse problema para a gente resolver, mas as produções de fora, quando ocorre, a gente explica e eles entendem completamente bem.

Quais são os critérios adotados para escolher as pautas e os eventos executados no teatro ao longo do ano? Há uma linha diretriz definida para a programação?

Gostaria de compreender com mais profundidade como funciona o processo de distribuição de pautas ao longo do ano no Teatro. Poderia descrever, de forma detalhada, o passo a passo desse procedimento? Por exemplo, se uma produtora local tem interesse em reservar uma pauta para maio de 2026, qual seria o período ideal para entrar em contato, e quais os documentos e informações necessários para formalizar a solicitação?

Romildo Moreira – Não há linha definida para a ocupação da pauta, o que há é a não aceitação de eventos artísticos e culturais que não tem perfil para o Teatro de Santa Isabel. Por exemplo: concurso de miss, eventos evangélicos, espetáculo pornográficos…

Se eu, como produtora cultural, precisar de uma pauta, como consigo? Quais os critérios? Não tem critérios?

Romildo Moreira – Se você precisar de uma pauta, é só encaminhar para o nosso e-mail a solicitação de pauta dizendo o que vai ser utilizado nessa pauta, qual é o espetáculo, se é teatro, dança, circo, ópera, como é que ele se porta, mandar fotos, mandar material em geral sobre a peça, para a gente saber o que é etc.

É isso. Se houver alguma impossibilidade de recebê-lo pela data, já é uma coisa óbvia, porque já está ocupado. Ou então porque o espetáculo não se porta dentro do que a gente já falou antes, se é pornográfico, se tem danos físicos ou morais para o teatro.

É isso, não tem outro critério, que a gente não vai fazer censura estética, entendeu?

Há variação também nos valores dos aluguéis e nas condições de contratação nesses casos, ou são uniformes para todos?

Romildo Moreira – O pagamento da pauta do Teatro de Santa Isabel tem uma diferença da produção local para a produção visitante. A produção local paga 10% da bilheteria bruta com o valor mínimo de R$ 2 mil por apresentação. A produção visitante paga 10% da bilheteria bruta com valor mínimo de R$4.000 por cada apresentação. Só isso que difere, é só o valor mesmo, porque a produção local tem esse abatimento de 50% do valor da pauta.

Por fim na questão das pautas, gostaria de saber se existem restrições específicas para espetáculos destinados ao público infantil ou juvenil e como essas particularidades influenciam a distribuição de pautas.

Romildo Moreira – Inclusive, no mês de julho, existe o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, da Metro Produções, e o Teatro de Santa Isabel também recebe esse festival. Então, nós temos o maior prazer também de apresentar espetáculo para criança, que é o público do futuro.

– O Teatro de Santa Isabel, com sua longa trajetória, sempre enfrentou desafios de manutenção e sustentabilidade. Quais estratégias e parcerias têm sido implementadas para garantir sua sobrevivência e modernização sem perder sua essência histórica?

Romildo Moreira – Quanto à manutenção e sustentabilidade, existe uma questão bem presente, como o teatro é da Prefeitura do Recife, a Prefeitura, através da Fundação de Cultura e da Secretaria de Cultura, faz a manutenção permanente através de empresas que são licitadas para tal. Então, a gente tem uma empresa que cuida da manutenção do ar-condicionado, outra que cuida da manutenção estrutural, enfim, e por aí vai. São empresas que permanentemente, como por exemplo os elevadores, têm um problema no elevador, então tem a empresa de manutenção do elevador  que vem e conserta na hora e por aí vai. Isso facilita, porque é um órgão público. Se fosse pela bilheteria do teatro, jamais isso ocorreria, porque a gente não teria disponibilidade financeira para tal. Mas, ao contrário, a gente mantém sempre essas questões em dia por conta dessas parcerias que são com a Fundação de Cultura e Secretaria de Cultura para a manutenção de empresas com esta obrigatoriedade.

– Quantos funcionários compõem a equipe que trabalha no teatro e quais têm sido os principais desafios enfrentados na gestão do espaço atualmente?

Romildo Moreira – 49 funcionários

– Qual tem sido o papel do investimento público no fortalecimento e na manutenção do teatro? De que forma esses recursos têm contribuído para a preservação e renovação do espaço?

Romildo Moreira – Reforçando. Acho importante também falar sobre a manutenção do teatro. Todo mês de fevereiro, anualmente, a gente não abre pautas, não abre para atividades artísticas, a gente faz uma manutenção de equipamento, de som, de luz, de toda parte estrutural do teatro, fazendo também alguns reparos de pintura, etc., para manter o teatro sempre bem quisto e bem visto pela sociedade.

– Como o cidadão, de todas as classes sociais, pode ter acesso ao teatro? Existem projetos ou estratégias que promovem a participação popular e a democratização do espaço?

Romildo Moreira – Quando se trata de sociedade, o teatro tem esse cuidado de não ser uma casa distante da população. Por isso que temos muitos espetáculos gratuitos.

A Orquestra Sinfônica do Recife faz quatro concertos aqui no teatro mensalmente, com sessões gratuitas. Além disso, o teatro tem um projeto chamado Santa Isabel em Cena, que tem duas vertentes. A primeira vertente é que, às terças-feiras, a gente recebe uma média de 300 jovens, entre alunos de escolas públicas, escolas privadas e de ONGs que trabalham com essa faixa etária. Essas pessoas vêm aqui para conhecer o teatro e assistem um espetáculo gratuitamente, um espetáculo local.

E a segunda versão desse Santa Isabel em Cena é que acontece aos domingos, uma vez por mês, um espetáculo direcionado mais à terceira idade, que é uma forma também de a gente trazer e manter este público. Na primeira versão é para os novos frequentadores do teatro, com essa juventude, e nessa segunda versão é para a manutenção desse povo que já acostumou vir ao teatro e assistir a um espetáculo, principalmente de música camerística. Enfim, de forma que a gente tem essa preocupação de um público sempre ampliado e renovado nas apresentações do Teatro de Santa Isabel.

Também temos tido o cuidado de negociar com as produções que vêm para cá, para o Teatro de Santa Isabel, de não fazerem preços muito altos, até mesmo porque o pagamento da pauta é muito pequeno, é 10% da bilheteria bruta, de forma que os ingressos aqui não são de preço tão volumosos exatamente para facilitar uma camada mais ampla de pessoas poderem assistir, já que os ingressos não são tão caros.

– Considerando a situação do entorno do teatro, com calçadas em péssimo estado, a presença de moradores de rua e mendicância, há alguma estratégia integrada ou parceria com órgãos públicos para revitalizar a área?

Romildo Moreira – Com relação a essa questão de moradores de rua, quando o teatro fecha, fica invadido, pessoas dormindo aí, a gente não tem como resolver isso aqui. A prefeitura passa toda quarta-feira aqui, oferece abrigo para essas pessoas, umas já foram, outras já tiveram a família inteira abrigada, mas tem gente que não quer. Então, rua é rua, a gente não tem como fazer. Isso não seria com a Secretaria de Cultura nem com a Fundação de Cultura, muito menos com o teatro. Mas a prefeitura, de um modo geral, tem tido uma ação permanente de fazer com que essas pessoas não agridam o espaço etc. Mas é bem complexo em função disso. Tem gente que não quer sair da rua, enfim. Quando chove, principalmente, eles vão para os lugares onde tem abrigo, como tem aqui no Teatro de Santa Isabel, nessa Dantas Barreto, na Guararapes, é o que mais se vê, como se vê também em outras capitais, Rio de Janeiro, São Paulo etc.

– Que mensagem o senhor deixaria para o público e a comunidade?

Romildo Moreira – A mensagem que deixo para o público e o mundo geral é que não temos aqui a preocupação de fazer censura estética com a utilização do teatro de Santa Isabel. Tanto espetáculo, teatro, dança, circo, ópera, música, enfim, temos só a preocupação prevista no decreto, como já falei anteriormente, porque é para a pluralidade de público mesmo.

Enquanto a gente recebe um espetáculo que requer mais um público jovem, o público jovem vem. Quando requer mais um público mais maduro, terceira idade, etc., esse público vem. E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui quer mais um público mais maduro, terceira idade etc., esse público vem.

E é importante saber que, quando eles vêm, eles veem um bom espetáculo aqui e ficam sempre aguardando novas oportunidades para retornar, porque o Teatro Santa Isabel é a casa do povo do Recife, e o povo do Recife é plural. E essa pluralidade também a gente mantém na programação exatamente para atender todos os desejos e necessidades de uma sociedade tão ampla como é a nossa.

 

 

 

 

 

 

 

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Sinfonia de silêncios e palavras explosivas
Crítica de Apenas o Fim do Mundo

Bruno Parmera (Suzanne) e Pedro Wagner (Louis), em Apenas o fim do mundo. Foto: Ivana Moura

A proximidade do público cria uma intimidade desconfortável. Foto: Ivana Moura

Durante infindáveis cinco minutos (ou foram cinco horas ou cinco anos), um grupo de desconhecidos (ou quase) e eu, aguardamos pela chegada de Louis (ou Luiz, como queiram), o filho que partiu 12 ou 14 anos antes, e muito pouco ou quase nada enviou de notícias e afetos para a família. Essa espera pensativa aciona as memórias de cada pessoa, mas também de uma cidade, o Recife. Mesmo que o texto original seja francês, o corpo do Magiluth é recifense e isso transpira, ainda mais quando o site specific, o lugar da encenação, é o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), que fica na Rua da Aurora, de frente para o Rio Capibaribe, tendo como fundo a Rua do Sol. As portas abertas, os portões de ferro fechados, mas por onde vemos os carros passarem, ônibus e motos também deixam seus rastros nesse quadro. O registro acústico de fora contrasta com o silêncio cúmplice dos que velam. Ouvimos o fluxo do Capibaribe e sentimos a dramaturgia sonora inicial de uma cidade que quase se esquece do seu centro à noite, em contraste com a expectativa de uma plateia pela personagem, que vem anunciar sua morte próxima.

 A volta de Louis não segue o script do filho pródigo bíblico; talvez convoque outro mito, de Caim e Abel, em que as disputas e ciúmes ativam mágoas antigas. Antoine, o irmão do meio, que permaneceu “em casa”, não suporta imaginar a vida vibrante de Louis mundo afora, tão diferente da sua própria. Esse retorno desavisado acende sentimentos de ofensa, de inveja, algo aquebrantado, intensificando o conflito doméstico. Não há celebração nem abraços calorosos na chegada; vinga a mudez dos segredos de emoções íntimas e as palavras que quando surgem são explosiva ou devastadoras.

O francês Jean-Luc Lagarce escreveu Apenas o fim do mundo – uma obra de sutilezas e que verticaliza a pulsação humana – em 1990, período em que já estava ciente de seu diagnóstico de AIDS, uma condição que, na época, era praticamente uma sentença de morte. Ele continuou a refinar o texto até 1995, ano de sua morte aos 38 anos. Sua peça proporciona uma delicada e impiedosa reflexão sobre a finitude, algo inexorável, e joga desde o seu título (o desaparecimento de alguém não é o fim do mundo) com as ironias dessa experiência que é viver.

Almoço ou jantar em família. Foto Ivana Moura

A musicalidade e o ritmo singular do original francês são alimentados na tradução sensível de Giovana Soar, que articula em português as hesitações e repetições, as pausas e frases inacabadas, bem como o embaraço desses titubeios. Essa tradução captura a tempestade de emoções reprimidas e os rancores abafados, sustentados por anos de distância, criando assim uma verdadeira partitura verbal.

A direção de Giovana Soar e Luiz Fernando Marques (Lubi) transforma o texto desafiador de Lagarce em uma experiência teatral imersiva e sensorial que dura aproximadamente duas horas e meia. Como teatro site-specific, a dupla cria um labirinto emocional nos espaços apresentados que equivale à jornada interna das personagens.

No Mamam, o público – limitado a cerca de 60 pessoas por sessão – é convidado a seguir os atores por diferentes ambientes do museu, ajustado para a peça pela direção de arte de Guilherme Luigi e Lubi. A cada nova cena, somos confrontadas com outra faceta do drama familiar. Nessa cenografia dinâmica e reativa, objetos são desarrumados no decorrer da encenação, mesas se partem durante discussões acaloradas, criando um ambiente caótico que reflete o tumulto interno dessas figuras. 

A proximidade do público, nesse contexto, é uma escolha deliberada da direção. Essa estratégia visa criar uma intimidade desconfortável que espelha e intensifica a paleta de sentimentos de abandono e desemparo que cada personagem carrega. Ao reduzir a distância física, a produção busca envolver os espectadores de maneira mais intensa, permitindo que eles experimentem as emoções complexas e muitas vezes dolorosas que permeiam a narrativa. Essa proximidade favorece uma conexão emocional mais intensa, na qual cada gesto, expressão facial e nuance vocal dos atores são amplificados.

A iluminação apresenta momentos que oscilam entre tons amarelo-sépia, evocativos de lembranças empoeiradas, e azuis etéreos, que sugerem uma realidade quase onírica. A trilha sonora aprofunda o rasgo melancólico, com uma suspensão desse clima na performance rock da banda que se instala no meio da sala.

A banda de rock. Foto: Ivana Moura

Tive a oportunidade de assistir a esta obra teatral quatro vezes: duas no SESC Avenida Paulista, onde estreou em 2019, uma no Mamam no mesmo ano, e agora novamente em 2024, na temporada comemorativa. É gratificante observar o amadurecimento do Magiluth, pois, em termos artísticos, parece ser um processo sempre em construção. Com 20 anos de uma trajetória inspiradora, o grupo reafirma seu compromisso com a arte. Esta peça, tristemente bela, me faz pensar e sentir mais a cada sessão.

A discussão antes da despedida. Foto: Ivana Moura

Embora o texto de Lagarce tenha sido escrito no contexto da “epidemia do HIV/AIDS” no mundo, dos anos 1990, sua montagem no Brasil em 2019 pelo Magiluth (e sua continuação em 2024) ganha outras camadas de sentido no contexto sociopolítico atual. A menção à extinção do departamento de AIDS do Ministério da Saúde pelo governo Bolsonaro, citada no início do espetáculo, estabelece uma ponte entre o drama pessoal de Louis e questões mais amplas de saúde pública e política. Esta conexão sublinha a relevância contínua da obra de Lagarce e a habilidade do Grupo Magiluth em fazer pulsar o político no teatro.

 Catherine (Giordano Castro), encarada por Antoine (Mario Sergio), observado por Louis. Foto: Ivana Moura

Apenas o fim do mundo é uma peça que, perturbadoramente, fala de amor, de forma brutal, desenterrando o que ficou escondido, as recordações, mágoas, ressentimentos e culpas. É uma peça densa e triste, uma beleza melancólica que me toca profundamente.

A vivacidade do jogo físico, característica marcante do grupo, é transposta para o jogo de palavras. O percurso, o deslocamento e a apropriação dos ambientes do Mamam impõem sensações únicas. A conexão com o público está intimamente ligada à experiência de ocupar esses ambientes, potencializada pelo incômodo e desconforto do próprio deslocamento. A visão é fragmentada, variando conforme o ponto de observação.

Essa fragmentação do olhar da plateia projeta as perspectivas diferenciadas de cada personagem, motivadas pela partida de Louis. Assim como o público percebe a cena de maneira parcial, dependendo de sua localização, cada personagem também possui uma visão limitada e subjetiva dos eventos, influenciada por suas emoções e experiências pessoais.

Pedro Wagner no papel de Louis. Foto: Ivana Moura

Em Apenas o fim do mundo, o Grupo Magiluth cria um ensemble afinado. Pedro Wagner, no papel de Louis, entrega uma performance de contenção admirável. Há uma gravidade maior na maneira como Pedro Wagner mastiga aquelas palavras em silêncio, para depois cuspi-las. Sua atuação possui uma densidade mais intensa do que em 2019, quando a peça estreou. Naquele ano, estávamos todas assustadas com o pandemônio e sua gangue, que, alguns anos depois, começa a ser desmascarado. A eloquência de Louis é carregada pelo silêncio que pesa fisicamente sobre todos os presentes.

Interpretando a Mãe, Erivaldo Oliveira desafia as convenções de gênero com uma atuação que transmite fragilidade e empoderamento da matriarca. A personagem, única sem nome, conhece profundamente cada um de seus filhos. Sua tentativa de promover a harmonia entre eles é evidente, assim como seu esforço para garantir seu lugar na memória familiar, relembrando os domingos de verões passados nas conversas durante as refeições. Em uma cena delicada, ela explica a Louis que seus irmãos desejam falar e conversar, destacando a justeza de cada um que permaneceu e a necessidade de serem encorajados. O ator navega habilmente entre a aflição e o humor.

Suzanne, a irmã mais nova, é vivida por Bruno Parmera, que a interpreta com uma energia nervosa que beira o frenético. A prosódia do ator traduz a urgência da personagem em conhecer o mundo, na esperança de um dia poder explorá-lo como Louis fez anos antes, e também em expressar sua própria identidade. Seus movimentos são ágeis e entrecortados, refletindo essa inquietação interna. Quando Suzanne encontra o irmão mais velho, ela fala incessantemente, confessando que esse comportamento não é habitual. Essa dinâmica indica tanto sua admiração por Louis quanto seu desejo de se afirmar em um mundo que ainda está descobrindo.

Assumindo o personagem de Antoine, o irmão do meio, Mario Sergio Cabral entrega uma atuação impressionante, um verdadeiro tour de force, onde projeta suas emoções como um vulcão prestes a entrar em erupção. Descrito pela Mãe como um homem de pouca imaginação, Antoine surpreende ao revelar gradualmente seus sentimentos em relação ao irmão. É desconcertante e ao mesmo tempo envolvente observar como ele, com sua rudeza, fala de amor de maneira tão crua e sincera, tornando suas emoções quase palpáveis. Quando Antoine se permite chorar, o público inevitavelmente se comove, derretendo-se diante da vulnerabilidade que ele expõe.

No papel de Catherine, a cunhada, Giordano Castro, fornece uma perspectiva externa vital para a dinâmica familiar. Entre o riso e o escárnio, e sem a memória da infância por não ser parte integrante daquele núcleo desde sempre, o ator investe em pequenos gestos e sutis alterações vocais para expor verdades ditas a meia-voz, revelando as nuances das intimidades daquela família. Casada com Antoine, Catherine navega entre a vergonha dos pequenos escândalos, as explosões temperamentais do marido e a perturbadora presença de Louis, o cunhado cuja chegada abalou o tênue equilíbrio parental. Em meio a esse tumulto, ela se esforça para proteger Antoine, enquanto sugere que guarda cuidadosamente seus próprios segredos.

Mas nessa peça de tantos desafios há sobretudo um domínio impressionante da técnica. Da técnica interpretativa em que os atores, em alguns momentos, saem de suas personagens para cuidar da artesania dos bastidores, à medida que a casa vai se revelando e se distorcendo ao longo do espaço. Este espetáculo exige um rigoroso controle na administração da sequência das cenas. E o maestro dessa operação é o ator Lucas Torres, que atua como contrarregra, garantindo que toda a engrenagem funcione perfeitamente. Há uma camada metateatral, com Lucas Torres dando instruções no início da sessão, percorrendo todas as cenas e aparecendo como o baterista da banda na sala de jantar. Todo o elenco permanece atento ao andamento da encenação e aos seus detalhes, frequentemente oferecendo orientações à equipe de apoio.

A peça se desenrola como uma dança intricada em torno de um vazio central, com cada personagem orbitando em torno da verdade que Louis veio compartilhar, mas que nunca consegue expressar plenamente. Os movimentos se transformam em uma coreografia elaborada de aproximações e afastamentos, espelhando as tentativas frustradas de conexão entre eles. Não há redenção. Com Apenas o fim do mundo, o Magiluth nos incita a ampliar nossas perspectivas de afeto e a ter cuidado com os segredos e com as verdades que criamos.

Mãe conversa com o filho mais velho. Foto: Ivana Moura

Leia outras críticas de Apenas o fim do mundo,
a de Pollyanna Diniz Hello stranger
e outra de Ivana Moura Magiluth vasculha política nos laços afetivos

 

Apenas o fim do mundo
Ficha técnica:

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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Fragmentos da solidão gay
Crítica de Bicha Oca

Rodolfo Lima, como Alceu, em Bicha Oca, Foto: Ivana Moura

A dramaturgia reúne textos de Marcelino Freire

Só conheci a Bicha Oca 15 anos após sua estreia, no Espaço Extranho, situado na rua Barbara Heliodora, na Lapa, São Paulo. Minha curiosidade foi aguçada pela reputação da peça, que  tem como base os textos de Marcelino Freire. Considerando o longo percurso da peça, questionei-me sobre sua relevância em 2024. Afinal, o cenário LGBTQIA+ passou por diversos avanços (e reposicionamentos) desde a estreia do espetáculo. Será que Bicha Oca ainda teria algo a dizer ao público contemporâneo?

A resposta é sim. Bicha Oca mantém sua relevância, trabalhando com franqueza temas cruciais: a dignidade da população LGBTQIA+ idosa e os direitos humanos de indivíduos  em situação de vulnerabilidade econômica. A peça destaca que, mesmo com avanços sociais, a luta por igualdade e respeito continua. Isso é especialmente válido para aqueles que enfrentam uma tríplice vulnerabilidade: idade avançada, orientação sexual divergente da heteronormatividade e situação econômica precária. Em uma sociedade impregnada de preconceitos, Bicha Oca atua como lembrete das batalhas que ainda precisam ser travadas pela comunidade LGBTQIA+.

Criada pelo Núcleo Teatro do Indivíduo e dirigida por Rodolfo Lima, a peça adapta contos homoeróticos de Marcelino Freire, tecendo um relato que explora o universo arredio, impiedoso e aterrorizante da velhice gay. No centro desta trama está Seu Alceu, um homossexual de comportamento arcaico, que revisita seu passado, expondo as crueldades e isolamentos de sua existência.

A adaptação está calcada nos contos A volta da Carmen Miranda, Coração, Meus amigos Coloridos e Os Atores, além do micro conto inédito Seu Alceu. Esta colagem literária reverbera os práticas dos homossexuais, expondo mudanças entre passado e presente.

Alceu emerge como uma figura peculiar e o ator explora com seu físico – calvície incipiente e pelagem esparsa adornando seu torso e abdômen – e gestos as marcas do tempo e das decepções. Sua presença na cena é marcada por um olhar crítico e desencantado sobre a sociedade que o circunda, encarnando a melancolia e a decadência. Sua solidão é amplificada pela ausência deliberada de qualquer trilha sonora reconfortante.

O protagonista cita hábitos da comunidade gay, explorando cenários emblemáticos das rotinas dos encontros furtivos na Praça da República, das interações veladas em salas de cinema e dos contatos efêmeros nos transportes públicos. O conceito da “bicha oca” é personificado de maneira complexa: uma entidade simultaneamente extravagante, cômica e profundamente melancólica.

Como uma ilha de anacronismo, Alceu sustenta o descompasso com o hoje e apresenta um discurso deslocado em uma época onde a comunidade LGBTQ+ conquistou visibilidade e direitos. Sua inadaptação aos novos paradigmas sociais pulsa no confinamento em sua própria casa, que reflete sua alienação do mundo exterior.

Rafael Rudolf, de costas, representa o corpo jovem e desejável. Foto: Ivana Moura

Ao longo de seus 15 anos de trajetória, a peça passou por diversas interações, com Rodolfo Lima trabalhando com vários atores jovens e incorporando suas contribuições à versão final. A atual parceria com Rafael Rudolf traz um teor mais afetivo à produção, explorando a dinâmica complexa entre um corpo jovem e uma “bicha velha”.

A entrada de Rafael – e dos outros atores nas temporadas anteriores – marca um ponto de inflexão crucial no espetáculo. Até então, Alceu havia exposto exaustivamente sua solidão, a nostalgia pelos tempos de juventude e suas críticas mordazes ao comportamento contemporâneo da comunidade gay. Sua miséria existencial e material havia sido esmiuçada a ponto de quase esgotar a paciência do espectador. Neste momento crucial, o jovem Rafael surge como uma aparição quase etérea – uma projeção do desejo de Alceu ou talvez a materialização de um sonho há muito acalentado. Sua presença catalisa uma transformação na narrativa, introduzindo novas camadas à trama.

O relacionamento entre Alceu e Rafael é permeado por contradições que espelham questões profundas do universo LGBTQIA+. Oscila entre momentos de ternura genuína e dinâmicas claramente tóxicas, oferecendo um retrato nuançado das complexidades das relações intergeracionais na comunidade gay. Esse entrosamento poliédrico serve como um microcosmo, refletindo e amplificando diversas questões pertinentes ao mundo LGBTQIA+: o culto à juventude e a marginalização dos mais velhos, a dinâmica de poder em relacionamentos com grande diferença etária, o conflito entre diferentes gerações e suas visões de mundo, e a busca por conexão emocional em um ambiente muitas vezes hostil. Através deste relacionamento contraditório e caleidoscópico, o espetáculo consegue levantar, de forma sutil e impactante, uma miríade de temas relevantes, proporcionando uma reflexão profunda sobre as complexidades e desafios enfrentados pela comunidade LGBTQIA+ em diferentes fases da vida.

Bicha Oca chega ao Recife para apresentações na Escola Pernambucana de Circo nos dias 3 e 4 de outubro, às 20h, em um espaço com capacidade para 80 pessoas. Já no Espaço Cênicas, as apresentações serão nos dias 6 e 7 de outubro, às 18h e 20h, respectivamente, com ingressos a R$50 (inteira) e R$25 (meia), para um público de até 60 pessoas.

Nesses 15 anos de trajetória, Rodolfo Lima já trabalhou com 10 atores jovens. Foto: Ivana Moura

O final dessa versão com Rafael Rudolf tem uma conotação mais afetivas. 

O espetáculo navega por temas como a volatilidade dos relacionamentos, a busca incessante por conexão, o espectro do envelhecimento e as nuances menos glamourosas da experiência homossexual. “Pegação”, encontros casuais, práticas sexuais específicas e a realidade de um corpo em declínio são expostos sem filtros, expondo verdades incômodas, mas necessárias.

Esta produção teatral encara o desconforto, abraça-o, apresentando as mazelas da comunidade gay com coragem. A dramaturgia ousada flerta com o ridículo, com o grotesco.

Em essência, Bicha Oca é um exercício de desconstrução e reconstrução. Desafia percepções, quebra tabus e tece uma narrativa que ressoa profundamente com as experiências vividas e imaginadas da comunidade LGBTQ+. Reflete as camadas mais profundas e por vezes dolorosas da existência gay contemporânea, oferecendo uma experiência teatral que permanece impactante.

Ficha técnica
Bicha Oca a partir do originais de Marcelino Freire
Direção e adaptação: Rodolfo Lima
Elenco: Rafael Rudolf e Rodolfo Lima
Concepção Geral: Núcleo Teatro do Indivíduo
60 minutos
18 anos
Produção local: Rodrigo Dourado
Design Gráfico: Betinho Neto
@teatrodoindividuo

SERVIÇO

Bicha Oca no Recife
Escola Pernambucana de Circo (Avenida José Américo de Almeida, 05 – Macaxeira – Recife)
Quando: 03 e 04 de outubro de 2024, às 20h (ambos os dias)
Ingressos: R$30 (inteira) e R$15 (meia)
Capacidade: 80 pessoas
@escolapecirco
Link para compra antecipada:
03/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-03-10/2633756
04/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-04-10/2633785

Espaço Cênicas Rua Vigário Tenório 199 Edf. Álvaro Silva Oliveira 2º andar 201 – Recife Antigo)
Quando: 06 de outubro: 18h e 07 de outubro: 20h
Ingressos: R$50 (inteira) e R$25 (meia)
Capacidade: 60 pessoas
@espacocenicas Link para compra antecipada:
06/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-06-10/2633760
07/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-07-10/2633801

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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A luta continua
Crítica do espetáculo Antígona na Amazônia
Festival d’Avignon

Antígona na Amazônia. Montagem de Milo Rau. KAy Sara na tela e Frederico Araujo no palco. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Milo Rau, de boné do MST, orienta a reencenação. Foto Philipp Lichterbeck / Divulgação

Pablo Casella ao violão e Frederico Araujo no chão do palco; na tela, Gracinha Donato, Frederico Araujo, Coro e Celia Maracajá. Foto Cristophe Raynaud de Lage / Divulgação

Antigone in the Amazon (Antígona na Amazônia), do diretor suíço Milo Rau, escancara para o mundo a violência extrema praticada contra as populações indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam pelo seu direito à terra no Pará, e no Brasil. A peça reforça, da perspectiva de quem pensa o presente-futuro do planeta, a urgência de ações contra a desflorestação desse “pulmão do mundo”, onde o capitalismo devora a natureza. Ou como pontuou a atriz e ativista Maria Raimunda, numa conversa no Festival d’Avignon, as forças conservadoras matam gente, rio, animais, árvores, floresta, com a mesma crueldade.

Para falar dessa situação brasileira (e é bom que se pontue, ferozmente agravada nos quatro anos do desgoverno Bolsonaro [2018-2022], o pior presidente que o Brasil já teve), Antígona na Amazônia cruza a ficção da tragédia de Sófocles Antígona com o real do  episódio sangrento do Massacre do Eldorado dos Carajás (ocorrido em 1996), a resistência exemplar do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que reúne cerca de 500 mil militantes), a atuação de ativistas indígenas e negros e a questão amazônica com suas implicações. O quadro cênico é impactante, ambicioso e emocionante.

Essa releitura de Antígona se dispõe em resistência, reverberando vozes e fatos. Se faz teatro de carne, sangue, ossos, coração porque adota o ponto de vista da militância, da sabedoria amazônica, da trajetória de lutas. A causa dos trabalhares rurais, dos sufocados pelo capitalismo selvagem ganham o primeiro plano. Com isso, Milo Rau afasta a possibilidade de se projetar como figura do salvador branco, como pareceu pender em outras montagens.    

Coro inclui sobreviventes da chacina (de chapéu, à esquerda Maria Zelzuita que faz um relato comovente na parte gravada da peça) e integrantes do MST de todo o Brasil. Foto Philipp Lichterbeck / NTGent / Divulgação

Foi o MST que fez a proposta do trabalho cênico a Milo Rau em 2019, quando ele esteve no Brasil. Talvez pela trajetória do encenador, do ativismo no teatro, de encarar temas complexos, provocantes ou explosivos. Juntos escolheram conectar Antígona com a chacina de Eldorado dos Carajás. Rau tendo no horizonte um princípio do Manifesto Gent, redigido por ele em 2018, de não apenas imaginar o mundo, mas de mudar esse mundo. Os trabalhadores, os indígenas, carregando no corpo o combate de invasões e colonizações.

Produção de despedida de Rau à frente NTGent, pois ele agora passa a ocupar em Viena a função de diretor artístico do Wiener Festwochen, Antígona na Amazônia estreou em 13 de maio de 2023, no Teatro NTGent, na cidade de Gante [Gent, em holandês], na região de Flandres, a parte da Bélgica que fala holandês. A montagem foi aplaudida efusivamente no Festival d’Avignon e tem apresentações agendadas em vários países europeus até pelo menos junho de 2024. A previsão inicial era de estrear em 2020, mas o mundo parou com a pandemia da Covid 19. E todos nós sabemos bem o que se passou.

O espetáculo fecha a Trilogia dos Mitos Antigos, de Rau, formada por Orestes em Mossul, de 2019 (uma adaptação de fragmentos da Oresteia, de Ésquilo, produzida e filmada no Iraque arrasado pela guerra); e O Novo Evangelho, um filme de 2020, inspirado na vida de Jesus, tendo entre os participantes refugiados de um acampamento na Itália.

Milo tem no currículo a releitura de eventos reais levados ao palco, como fez também com Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie (2020) [nossa crítica das peças] trabalhos em que utiliza como procedimento o relato do processo criativo, filmagens e a convocação para refletir sobre questões controversas.

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie. Foto: kurt van der elst / Divulgação

Os brasileiros Pablo Casella e Frederico Araujo e dois integrantes do Teatro NTGent, da Bélgica, Sara De Bosschere e Arne De Tremerie se ocupam de todos os papeis na cena presencial. O elenco já está no palco quando nós, do público, entramos para Antígona na Amazônia. O músico/ator Casella toca violão. Os três intérpretes estão sentados ou mexem em qualquer coisa. Tem um cabide de roupa de um lado e instrumentos musicais do outro. Os telões não ficam expostos o tempo todo, como em outras peças de Milo Rau, eles são acionados em alguns momentos para exibição do material gravado.

O quarteto enfatiza no prólogo, – e explica em intervalos regulares -, a importância da luta política do MST, o ativismo e a resistência da população indígena do Brasil, o sistema artístico da montagem e traça vínculos com a vida de cada um etc. O palco das apresentações está coberto de terra avermelhada.

O teatro de Milo busca juntar arte e ativismo. Em Antígona na Amazônia recebemos junto com o programa a Declaração de 13 de Maio, um manifesto contra a destruição da floresta amazônica e a “lavagem verde neoliberal”. Seus principais pontos são a auditoria imediata dos selos (“rotulagem fraudulenta que perpetua a ficção neoliberal de uma produção industrial ‘sustentável”); o boicote contra todas as empresas envolvidas (a exemplo da Ferrero, Nestlé, Danone, Unilever, cujos produtos estão impregnados por “violações dos direitos humanos, roubo de terras e destruição do mundo vivo/da natureza na América Latina, mas também na Ásia ou na África”, sendo a Agropalma e seus clientes “os exemplos mais cínicos de um sistema global”); defesa incondicional de uma agricultura independente e a mudança radical do sistema. Aqui link com acesso ao PDF para download de versões da declaração em Inglês, francês, holandês, alemão e português

“O caso de um conglomerado brasileiro de óleo de palma – a Agropalma – mostra, de forma drástica, como funciona o sistema da destruição, da supressão de direitos e da exploração. Já há anos, a Agropalma vem sendo acusada de roubo de terras (grilagem), violação de direitos humanos e de condições de trabalho ruins por pessoas que vivem nas suas áreas de cultivo. Tribunais brasileiros já revogaram mais da metade de títulos de propriedade da Agropalma em virtude de comércio ilegal de terras e estelionato.

Mesmo assim, a Agropalma, até hoje, tem certificação atestada por mais de dez selos internacionais. Dentre os clientes do óleo de palma que ela vende, estão dezenas de conglomerados alimentícios como a Ferrero, a Danone e a Nestlé. Da petição de “Salve a Selva” sobre a enganação dos selos no caso da Agropalma ”Amazônia: Grilagem e violência por causa de óleo de palma orgânico, com comércio justo e sustentável“ já estão participaram mais de 75.000 pessoas.”

Campanha conjunta de “Salve a Selva” contra o greenwashing perpetrado pela indústria agrária e alimentícia.

Com Antígona na Amazônia várias ações já foram iniciadas. São células que amplificam esse teatro e esse ativismo político. Veja o vídeo O amanhã não está à venda.

“Um grito de vingança e salvação: é o que os ativistas de arte da ‘Declaração de 13 de maio’ chamam de sua música entre agitprop, batidas latinas e hip-hop de protesto. A primeira canção dos artistas, unindo músicos e cidadãos da América Latina e da Europa, é um apelo à resistência contra o greenwashing e o desmatamento – uma luta alegre pelo futuro de todos nós! Vamos resistir contra o cinismo sangrento e as doces mentiras das grandes empresas de alimentos: Destrua o que te destrói!”
“O amanhã não está à venda”

O clima de resistência já está instalado no lobby do teatro, com banners com frases-convocação para a luta e imagens da montagem. Esse material exposto na antessala funciona como ativador de emoções.

O espetáculo lança as pontes entre a tragédia antiga e a luta dos trabalhadores. No início da encenação um ator faz analogias entre a guerra civil em Antígona e o que acontece como guerra civil no Brasil. A desobediência civil da protagonista de Sófocles é vinculada à campanha de ocupação do MST e os dados de um passado recente do país são misturados com as experiências pessoais dos atores contadas no palco. Bem, já disse que os artista falam de si, mas é para pontuar o movimento de repetição.

Na tragédia de Sófocles, Polinices e Etéocles, (irmãos de Antígona e Ismene, os quatro filhos de Édipo, rei de Tebas), se matam literalmente pelo poder. Creonte, tio do quarteto – irmão de Jocasta, esposa-mãe de Édipo – toma para si o poder, e com sua autoridade baixa uma ordem para ninguém sepultar o corpo de Polinices, enquanto dá honrarias fúnebres ao outro. Antígona não aceita o que entende por arbitrariedade e desrespeito às leis divinas, e se insurge contra a determinação, mesmo sob a ameaça de morte.

Antígona vibra em resistência. A violência em Antígona ocorre majoritariamente fora do palco. A versão de Milo Rau encena a violência no palco e reconstitui a chacina em vídeo.

Como a “adaptação literal dos clássicos” está proibida como princípio daquele Manifesto de Gent, Antígona sozinha não seria possível.

Mas o diretor toma a forma dramatúrgica do texto original de Sófocles, com um prólogo, cinco atos (Ismene x Antígona, Antígona x Creonte, Hâimon x Creonte, profecia de Tirésias, Morte de Eurídice e sua maldição sobre Creonte) e um epílogo.

A tragédia de Sófocles termina com a morte de Antígona, Hâimon e Eurídice, e a partida de Creonte para o exílio, deixando Tebas em desgraça. Em Antígona na Amazônia há um sexto ato, diferente.

Reencenação da chacina. Foto: Kurt van der Elst – NTGent / Divulgação

Uma das principais cenas da peça Antígona na Amazônia é a reencenação do massacre de Eldorado do Carajás, gravada no dia 17 de abril de 2023, quando a chacina completou 27 anos, na Rodovia PA-150 (atual BR-155), na curva do S, com cerca de 300 militantes do MST e outros colaboradores.

Em 1996, uma marcha pacífica com participação de indígenas e membros do MST seguia por essa estrada quando a força repressiva da polícia do Pará interviu com violência, deixando 21 mortos (oficiais), 19 no local, outros dois nos dias seguintes no hospital em decorrência da ação truculenta. Mas existe uma suspeita de outros corpos desaparecidos em decorrência dessa ação. 

Todos os anos é realizada uma cerimônia em memória desses mortos. Mas por ordem de alguma autoridade, a representação da manifestação neste ano foi primeiramente proibida, e essa célula vital da montagem quase não aconteceu. Maria Raimunda militante do MST no Pará, responsável pela cultura do movimento e que participa da peça, conseguiu convencer os policiais de que aquele teatro também era uma luta por eles. E a magia do teatro se fez. Tudo é filmado. A chegada do carro da polícia, a conversa de Maria, a reação dos guardas vendo a simulação do desempenho de seus pares 27 anos antes.

Sara De Bosschere e Arne De Tremerie na função de policiais. Foto: Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Arne De Tremerie em plano grande na telona. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

A atriz Sara De Bosschere e o ator Arne De Tremerie vestidos com o uniforme atuam como policiais também no palco. As cenas produzidas são fortes, expõem a brutalidade contra os ativistas, mas deixam espaço para mostrar que é uma encenação. Mesmo sabendo que é teatro, a ação é muito chocante e perturbadora.

Essa reconstituição filmada no Pará no dia de aniversário do massacre é duplicada com a encenação de violência também no palco ao vivo, propondo um diálogo pulsante entre a tragédia grega, as memórias das tragédias brasileiras – a de Eldorado dos Carajás e outras, a vivência dos envolvidos no projeto.

Na sala do teatro, os quatro atores que atuam presencialmente dialogam com as imagens gravadas, repetindo gestos, expandindo propostas, interagindo. Eles narram as cenas, falam de si e do episódio focalizado, assumem papeis de Antígona; Creonte; Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona; o músico-narrador. Fazem ziguezagues na linha do tempo.

 

Crianças de uma aldeia. Foto: Moritz-von-Dugern / Divulgaçao

Araujo na pele do militante Oziel Alves Pereira, que enfrenta a policia e é assassinado . Foto Divulgação

Arne De Tremerie presencial e no vídeo com Sara De Bosschere. Tecnologia permite um diálogo preciso. 

No jogo do teatro direto e o que chega pelas imagens filmadas, os atores descrevem a gênese do projeto, o workshop do MST em 2020 com agricultores, outros profissionais e sobreviventes do massacre. Mas também são exibidas as gravações em aldeias indígenas, reservas florestais assentamentos do MST, em cenas cotidianas, algumas com a presença dos estrangeiros.

Numa cena em que alguns indígenas pintam o corpo e riem e mexem no celular e quase sentimos o cheiro da floresta, o estrangeiro fala fala fala e elas se viram para ele para dizer que não entendem nada do que ele diz. Fazer esse giro em torno da ideia de colonização é sensacional.

De Tremerie em outro momento reflete sobre a experiência de estar numa aldeia amazônica longínqua, ele enquanto homem branco europeu, e que poderia ser tomado por “um complexo de culpa disfarçado de ativismo.” É para continuar pensando. 

O dispositivo cênico garante o diálogo entre tantas instâncias. E permite um fluxo na peça que corre entre inglês, português, tucano, flamengo e francês, com legendas em francês e inglês e aparelho para linguagem de sinais.

A sincronização é precisa e produz efeitos admiráveis, que viabilizam que os atores da cena ao vivo conversem com o elenco das gravações. É a tecnologia.

Esses mecanismos e essas escolhas permitem, por exemplo, que Frederico Araujo interpreta um jovem ativista do MST – Oziel Alves Pereira que será espancado até a morte –, Antígona, Polinices um dos filhos de Édipo e, um elemento da repressão e ele mesmo, o ator. Em algum momento ele verbaliza em cena que “no Brasil, quando se é preto, LGBTQIA+ pode-se morrer a qualquer momento, por isso é que eu estou feliz por morrer somente no palco”.

Antigona (Kay Sara), e seu irmão Polinices (Frederico Araujo); Foto: Mortiz Von Dungern / Divulgação

Kay Sara, a atriz ativista indígena – das etnias Tariana e Tukano, de Lauaretê, pequena comunidade do Amazonas, fronteira com a Colômbia – anunciada como a intérprete de Antígona aparece somente nas gravações, nas filmagens, na tela. Ela desistiu do papel-título três dias antes da estreia mundial da peça e voltou para casa no Brasil, no dia 10 de maio.

Nessa sessão inaugural da peça , na Bélgica, os atores explicaram ao público sobre a ausência de Kay Sara, que ela nunca se sentiu confortável na Europa e partiu para ficar com o seu povo. Essa irrupção do real é desconcertante como um drible de craque. Uma ausência que pulsa na cena. É uma recusa ao capitalismo que afirmação de sua subjetividade e identidade. Sua desistência ecoa, vibra cria horizontes para um teatro maior.

Em entrevista ao jornal francês Liberation, Milo Rau explicou as possíveis causas: “Kay Sara não tomou sua decisão por capricho. Ela vinha nos alertando há meses que essa primeira vez no palco seria também sua última aparição diante de um público não-indígena. Subestimamos os constrangimentos da longuíssima turnê de vários anos, que a teria levado a viajar muito para fora da Amazônia, local de sua luta”. O diretor entende que a motivação é duplamente política: Kay Sara não quer ser “fetichizada”.

Kay é uma atriz que já tem um currículo no cinema e nos streamings. Na Antígona na Amazônia, ela participou do processo e das filmagens. Quando o trabalho foi paralisado em 2020, devido à epidemia da Covid, a artista indígena gravou um vídeo com o discurso This madness must stop (Essa loucura tem que acabar), com enorme repercussão entre o público do festival de Viena, onde a gravação foi projetada.

Discurso de Kay Sara por ocasião da abertura do Wiener Festwochen, em 2020, 

 
 
 
 

Kay Sara na tela e Araujo no palco Foto: Kurt van der Elst /NTGent / Divulgação

E como fica essa ausência-presença na cena? Milo Rau engenhosamente incorporou a situação como dinâmica de sua dramaturgia. Araujo substitui Kay no palco. E isso pode criar ruídos ou acréscimos, depende do repertório de quem recebe. Em uma cena, Sara aparece grande na tela e há uma colaboração, complementação ou sobreposição de outro corpo visado pelas atrocidades que vêm de longe.

Uma cena especialmente forte é quando Antígona de Kay descobre que o seu trabalho de enterrar seu irmão, Polinices de Frederico, foi desfeito e ela se encoleriza. A cena se passa na tela, Sara está com seu vestido vermelho. Araujo no palco também chega ao desespero. Ambos gritam e se revoltam contra a injustiça. Nos movimentos de exasperação, o ator jogo terra para o alto e para a plateia. Como eu estava na segunda fila, senti o a fúria da terra lançada.

Celia Maracajá no papel de Eurípedes. Foto: Moritz Von Dungern / Divulgação

Filósofo indígena Ailton Krenak, em vídeo, como o sábio Tirésias. Foto Divulgação,

Outras figuras centrais da tragédia de Sófocles, com Ismene, irmã de Antígona, só aparecem na tela. Ismene é interpretada pela militante negra Gracinha Donato, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Célia Maracajá atriz e cineasta, uma das percussoras da produção audiovisual indígena no estado do Pará, e com participações em montagens dos teatros Oficina e Arena, faz Eurídice, mãe de Hêmon e esposa de Creonte.

Liderança histórica no movimento indígena, crítico do sistema capitalista e do eurocentrismo, o filósofo Ailton Krenak faz uma curta participação (e gigante contribuição) em vídeo como o sábio Tirésias, a voz que aconselha e alerta sobre a situação do planeta e avisa a Creonte que sua loucura vai lhe levar  à ruína.

“Muitos são os monstros mas nada mais monstruoso que o homem” é cantado no início da peça. Os atores ironizam a inteligência humana que surrupia a natureza e provoca tragédias. Praticamente todo o espetáculo corre com a música poderosa e competente de Pablo Casella em primeiro plano ou de fundo. Essa trilha cria os climas emocionais que as imagens apresentam. E talvez por ser tão exuberante fiquei imaginando as camadas e intenções artísticas para produzir esses estados comoventes e como seria a peça sem essa sustentação musical. Penso que tudo é calculado para envolver o espectador, as situações, climas e encaixes. E envolve.

O quarteto do palco joga com muitos estilos de interpretação, do narrativo à dramatização convulsionada, em Frederico Araujo. Pablo abraça o púbico do narrativo ao musical. Há mais contenção no atuar dos dois da Bélgica. Sara De Bosschere como Creonte é uma escolha que pode gerar incômodos na recepção por ela ser mulher no papel do tirano. Em princípio, não vi problema nessas escolhas. Ela assume um Creonte concentrado e de pouca brutalidade nos gestos. Arne De Tremerie, que está em Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza)  de Rau, tem um carisma nas suas atuações. No vídeo, o desempenho ganha com vibração justamente daqueles corpos e o que eles carregam, de história, memória e resistência.

 

O coro na tela e a figura de Creonte , de branco, interpretado por Sara belga. Foto: Divulgação

Maria Zelzuita Oliveira de Araújo faz um relato detalhado da chacina. Foto: Divulgação

Formado por sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás, como Laurindo Ferreira da Costa e militantes do MST de todo o Brasil, a exemplo de Tisiane Kilian, de Santa Catarina, o coro desempenha um papel estruturante na montagem. O coro levanta a voz coletiva, da luta em comum, nas imagens, nos cantos.

Mas também sustenta relatos individuais como de Maria Zelzuita Oliveira de Araújo, sobrevivente da matança e que na reconstituição da cena conta em detalhes o que se passou naquele sombrio 17 de abril. É doloroso até ouvir. Ela lembra a altivez do jovem Uziel, de 17 anos, que foi torturado e morto pela polícia; da repórter Mariza Romão, que fazia a cobertura do movimento e “pediu pelo amor de Deus” para “eles” não invadirem a casa que só tinha mulher e criança (a polícia invadiu), e do seu filho de três anos que disse que a família iria morrer, porque estava lutando por terra para morar.

Ou o canto final do coro que diz “que benção, fazer a prece derradeira, dizer adeus a sua maneira, cada grão de terra sobre o corpo é luz”.

Há algo de esperançar no final da peça de Milo Rau. Talvez para marcar que a luta do MST continua. Ela nunca parou. Pablo Casella diz que é  a magia do teatro. Ter outro desfecho. Trazer os mortos de volta à vida. 

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie na cena

Cena da morte do príncipe, filho de Creonte

Antigone in the Amazon (Antigona na Amazônia)

Concepção e encenação Milo Rau
Elenco: Frederico Araujo, Pablo Casella, Sara De Bosschere, Arne De Tremerie
e em vídeo Gracinha Donato, Ailton Krenak, Celia Maracajá, Kay Sara, o coro de ativistas e ativistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Dramaturgia Giacomo Bisordi
Codramaturgia Martha Kiss Perrone
Colaboração à dramaturgia Kaatje De Geest, Douglas Estevam, Carmen Hornbostel
Cenografia Anton Lukas
Figurinos Gabriela Cherubini, Jo De Visscher, Anton Lukas
Iluminação Dennis Diels
Música Pablo Casella, Elia Rediger
Vídeo Moritz von Dungern, Fernando Nogari, Joris Vertenten
Assistenten de encenação Katelijne Laevens assistida por Carolina Bufolin, Zacharoula Kasaraki, Lotte Mellaerts
Tradução para a legenda Panthea (français), Carolina Bufolin (inglês)
Dispositivo de acessibilidade Panthea
Direção técnica Oliver Houttekiet
Direção de palco Marijn Vlaeminck
Técnica Brecht Beuselinck, Dimitri Devos, Stavros Otis Tarlizos
Produção Klaas Lievens, Gabi Gonçalves (Brasil)

De 16 de Junho de 2023 a 24 Julho 2023, no Festival de Avignon

Produção NTGent

Coprodução International Institute of Political Murder (IIPM), Le Festival d’Avignon, Manchester International Festival, La Villette (Paris), Romaeuropa Festival, Le Tandem Scène nationale d’Arras-Douai, Künstlerhaus Mousonturm (Frankfurt), Équinoxe Scène nationale de Châteauroux, Wiener Festwochen (Viena)

Vídeo de divulgação da peça Antigona na Amazônia

 

 

Tournée :

22 e 23 de setembro de 2023 – Kaserne Basel (Suíça)
3 e 4 de outubro de 2023 – Teatro Argentina no âmbito do Romaeuropa Festival (Itália)
20 de outubro de 2023 – Teatro Polski (Polonia)
De 25 a 28 de outubro de 2023 – Théâtre des Célestins no âmbito do Festival Sens Interdits (Lyon) 
11 e 12 de novembro de 2023 – Culturgest (Portugal)
16 e 17 de novembro de 2023 – Teatro Municipal do Porto (Portugal)
22 e 23 de novembro de 2023 – Centro Cultura Contemporanea Condeduque (Espanha)
28 de novembro de 2023 – Équinoxe Scène nationale de Châteauroux
De 6 a 9 de dezembro de 2023 – La Villette (Paris)
23 e 24 de janeiro de 2024 – Thalia Theater  (Alemanha)
30 de janeiro de 2024 – Stadsschouwburg Brugge  (Bélgica)
7 de fevereiro de 2024 – De Warand, no âmbito do Stilte Festival ( (Bélgica)
De 22 a 25 de fevereiro de 2024 – Schauspielhaus Zürich (Suíça)
1 e 2 de março de 2024 – De Singel-Rode Zaal  (Bélgica)
7, 8 e 9 de março de 2024 – Espoo City Theatre (Finlândia)
De 19 a 22 de junho de 2024 – Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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