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A tradição desencantada
Crítica: Paixão de Cristo do Recife

Primeira noite da Paixão de Cristo do Recife, no Marco Zero. Foto:: TFN

Jesus, mulheres e crianças. Foto: TFN

Paixão de Cristo do Recife é apresentada ao ar livre, na Praça do Marco Zero. Foto: TFN

Desde que comecei a acompanhar a Paixão de Cristo do Recife, exibida primeiramente no Estádio do Arruda e, nos últimos anos, na Praça do Marco Zero, no centro do Recife, sempre me tocou a valentia desse conjunto de artistas pernambucanos em realizar essa montagem, enfrentando desafios financeiros, estruturais e de toda ordem. É uma persistência coletiva que mantém o espetáculo vivo.

Quando soube que a montagem de 2025 traria aspectos mais contemporâneos tanto no conceito quanto na encenação, minha curiosidade foi aguçada. Fui à estreia na sexta-feira (18). Ao final da sessão, senti uma espécie de pesar e perplexidade, como se a experiência provocasse um lamento pelo resultado alcançado, evidenciando a dificuldade em discernir, de imediato, o sentido das inovações propostas.

Antes do início da apresentação, o produtor Paulo de Castro deu seu recado, destacando que o espetáculo reaviva o lema “Paixão do Povo”. Castro agradeceu ao apoio de patrocinadores, dos recursos da Lei Rouanet e de diversas instituições, como a Prefeitura do Recife, a Secretaria de Cultura, a Fundação de Cultura Cidade do Recife, o Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – Suape e a Companhia Pernambucana de Gás (Copergás).

A 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife vai até segunda-feira, 21 de abril, sempre às 18h, no Marco Zero. Apresentada pela Roda Cultural e com direção e roteiro de Carlos Carvalho, a encenação reúne um elenco composto por 50 atores e 60 figurantes. Entre os protagonistas estão Asaías Rodrigues (Zaza), no papel de Jesus, e Brenda Ligia, interpretando Maria. Além deles, Carlos Lira encarna Pilatos; Albemar Araújo, Herodes; Clau Barros, Madalena; Gil Paz, João Batista; Ivo Barreto, Judas; e Paula de Tássia, o Diabo.

A cena da Santa Ceia. Foto: TFN

Milhares de pessoas acompanham a Paixão de Cristo do Recife, um espetáculo ao ar livre, em uma praça às margens do rio Capibaribe. A produção utiliza vozes pré-gravadas, com os atores dublando a si próprios ou a outros — como no caso do personagem Judas, interpretado por Ivo Barreto, mas com a voz de Júnior Aguiar.

Nesse tipo de encenação, a abundância de teatralidade visual almeja conectar o público aos valores do cristianismo, ao sofrimento e posterior triunfo de Cristo. É necessário envolver o espectador numa experiência coletiva marcante, criar um ambiente que transporte a plateia para a história que está sendo contada. 

Nesta edição da Paixão de Cristo do Recife o encanto que esses elementos da encenação poderiam ter despertado na plateia não aconteceu. Os recursos técnicos mostraram-se insuficientes para engendrar a energia e a magnitude esperada para uma produção de tamanha relevância. A iluminação teve falhas técnicas que se mostraram evidentes ao público, como momentos de sombras que prejudicaram algumas cenas, enquanto a cenografia, mesmo sendo indicativa, se restringiu a uma apresentação simplória, sem realçar adequadamente os momentos dramáticos.

O que realmente se destacava era o descompasso entre a rica tradição histórica da narrativa e a tentativa de tradução contemporânea, marcada por uma execução aquém do ideal.

Um dos primeiros aspectos que chamam a atenção é o figurino, assinado por Álcio Lins, que mistura referências históricas com elementos contemporâneos. Na maior parte da montagem, os personagens vestem roupas comuns, como calças jeans e camisetas coloridas, numa tentativa de aproximá-los do público atual — incluindo Asaías Rodrigues (Zaza), intérprete de Jesus. Em contraponto, alguns integrantes da corte de Herodes e sacerdotes do Sinédrio utilizam vestimentas que rememoram, ainda que de forma muito distante, a indumentária da época de Jesus, criando um hibridismo visual que causa estranheza ao espectador.

Embora a proposta de desconstrução — trazer a narrativa para o presente — seja conceitualmente interessante ao sugerir que Cristo enfrentaria a crucificação mesmo nos dias de hoje, essa opção acabou comprometendo a força poética do espetáculo.

Esse cenário revela a complexidade e o desafio de manter vivas e relevantes as tradições, equilibrando respeito à narrativa histórica e experimentação contemporânea — sempre com o objetivo de tocar o público profundamente, tanto no âmbito espiritual quanto artístico.

Participação do Bacnaré é um dos melhores momentos do espetáculo. Foto: TFN

Na encenação, o diabo é uma personagem feminina. Foto: TFN

A encenação oscila entre momentos de lampejos e outros de completa falta de energia. Por exemplo, as cenas dos carrascos que condenaram Jesus inicialmente ganhavam força, mas logo perdiam o ritmo, resultando em ações desequilibradas, mesmo contando com um elenco de atores experientes.

A cena do bacanal, protagonizada pelo grupo Bacnaré de dança e música, conseguiu criar um ambiente dinâmico e cativante em sua participação. No entanto, não havia unidade, nem ao menos estética na cena: ao mesmo tempo em que o Bacnaré brilhava no centro do palco, o lado direito do palco, sugeria um cabaré popular precário. Um espectador chegou a gritar: “Tira essa galega daí”, alegando desconforto com as roupas transparentes de uma figurante em razão da presença de crianças.

Outra questão diz respeito à proposta de transformar o diabo em uma personagem feminina, interpretada por Paula de Tássia. Embora existam encenações que adotam essa estratégia, a abordagem utilizada em “A Paixão do Recife” provocou em mim reflexões. Sob uma suposta perspectiva feminista, a escolha parecia visar romper paradigmas e oferecer novas leituras sobre poder e a subversão dos papéis tradicionais. Contudo, por que, novamente, atribuir à mulher o papel de tentação, mantendo uma lógica maniqueísta entre o bem e o mal, enfatizando a figura do mal e, ainda, aludindo ao arquétipo da pombagira — não como exaltação do feminino, mas como demonstração da demonização da mulher? Em cena, vemos um Filho de Deus que se sacrifica pela humanidade, enquanto o diabo assume uma forma feminina. Embora a cena seja bem conduzida e a performance de Paula de Tássia seja desenvolta e convincente, questiono as camadas desta narrativa, que parecem reafirmar uma posição patriarcal.

A dramaturgia buscou um caminho direto para dialogar com as sequelas atuais. Em determinadas falas, como as de Maria, procurou relacionar o sofrimento das mães com o peso da violência policial, aproximando a figura da Mãe de Deus do sofrimento dos oprimidos contemporâneos. Contudo, essa estratégia se apresentou como uma solução fácil — um discurso social que não explora a profundidade que esses temas exigem.

Figurinos de época e estilo casual são utilizados no espetáculo. Foto: TFN

Quase um aparte, ou desvio, ou…

No quadro atual, considero cada vez mais problemático analisar os trabalhos das artes cênicas de Pernambuco, visivelmente pressionados pela falta de apoio, de editais, de políticas robustas e de espaços para o desenvolvimento das ideias, desde o processo até o resultado final com dignidade. A precarização está presente em praticamente todos os âmbitos da feitura das artes cênicas pernambucanas. Mas o que fazer diante disso? Ser sempre conivente na análise por conta dessa situação? Ou cobrar para que se chegue a resultados que apresentem mais qualidade, independente do estilo do trabalho?

Esse é um assunto complexo, que merece ser discutido com mais fôlego. No entanto, na maior parte do tempo atribuo essa carência aos limites impostos pelo capitalismo e à falta de recursos, à precarização progressiva das artes cênicas. Mas será que essa é a única explicação? Penso nas montagens das décadas de 1980 e 1990 dirigidas em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, por Vital Santos e outros artistas, que, embora marcadas pela carência de recursos, transbordavam inquietação e uma estética inovadora. Mas era outro contexto, dirão alguns. Sempre é outro contexto.

A verdade é que o teatro pernambucano precisa ser respeitado e, para isso, deve contar com investimentos, editais e condições para se realizar plenamente. Não adianta ser “meia-boca”, sabe? Não basta só o Funcultura, que patrocina dois projetos por ano para montagens novas, uma ou outra para manutenção e poucas outras coisas.

O fato é que o teatro pernambucano está em condições extremamente precárias. As casas de espetáculos estão caindo aos pedaços; as que estão em boas condições — como o Santa Isabel e o Parque, casas maiores — são ocupadas com a circulação do teatro nacional, que também é importante. Os artistas do Recife reclamam, mas parece que os órgãos públicos não respondem. Enquanto milhões são investidos em turismo, o teatro fica diante de uma carência crônica. Pode parecer que estou desviando o assunto, mas tudo está entrelaçado. E são questões complexas, é verdade, mas profundamente conectadas.

Cena de Pilatos. Foto: TFN

Reconheço a importância e a experiência do diretor e encenador Carlos Carvalho, que tem uma trajetória respeitável. No entanto, como colaboração honesta, é preciso apontar as fragilidades da montagem, como a falta de coesão do conjunto cênico.

Essa 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife se caracteriza por ser um espetáculo morno. Conta com muitos atores e atrizes talentosos e dedicados. Porém, um espetáculo dessa envergadura ganha pontos e convence o público pela composição cênica, pelo ritmo, pela harmonia da visualidade em combinação com a sonorização, a perfeita dublagem e os gestos largos.

A atuação de Asaías, que faz de Jesus uma figura próxima do povo, é admirável, mas o personagem de Cristo demanda que o elenco funcione como guindaste simbólico para sua liderança e apoio. A presença das atrizes é marcante para além dos papéis de Maria, de Lígia, e Madalena, de Clau, mesmo que pontuais.

Judas, interpretado por Ivo Barreto, suscita uma reação da plateia e existe uma boa solução para o seu enforcamento. Albemar cria um Herodes carregado de ironia. Além disso, outros atores, como Carlos Lira, que interpreta um Pilatos consistente, entram no redemoinho de cenas que perdem força, mesmo com a participação de um time experiente.

O que me parece, inclusive pela reação ao final da sessão, é que a Paixão de Cristo do Recife não conseguiu envolver o público como noutras edições de sua própria trajetória. Uma produção que falha em criar conexões mais intensas ou que não apresenta elementos visuais inovadores, surpreendentes ou emocionalmente marcantes pode ter dificuldades para manter a plateia engajada. Nesse contexto, são a apatia e o desencanto que surgem, como consequência direta ao espetáculo.

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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Os artistas precisam de dignidade
clama a produtora e atriz Paula de Renor,
homenageada do Janeiro de Grandes Espetáculos

A atriz Paula de Renor emocionada, ao lado do produtor do JGE Paulo de Castro, também segurando as lágrimas. Foto: TMF / Divulgação

Paulo de Castro ao centro e Paulo de Pontes. Foto: TMF / Divulgação

Com o quadro pintado pelo artista Cleusson Vieira. Foto: TMF / Divulgação

As aberturas de festivais têm aquela parte cerimonial incontornável, com discursos de colaboradores e patrocinadores, que são essenciais para a sobrevivência do evento, mas um pouco maçante para a plateia. É da natureza dessas cerimônias. Contudo, para ser justa, a abertura desta 31ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, ocorrida na noite de ontem (09/01), no Teatro de Santa Isabel, está inserida numa informalidade quase doméstica. O ator Paulo de Pontes, mestre de cerimônias do JGE, imprimiu esse tom descontraído e bem-humorado, quase jocoso. Pontes mencionou que tem 56 anos, 20 dos quais dedicado ao festival, que ele destaca como parte essencial da vida cultural pernambucana. Segundo Paulo, “querendo ou não, esse é um dos maiores festivais de artes cênicas e música do Brasil”.

O produtor geral do festival, Paulo de Castro, ressaltou que não é possível realizar um evento dessa envergadura sem patrocínio e apoio. Ele expressou gratidão à vice-governadora Priscila Krause, mesmo ausente, por seu suporte nos últimos anos, assim como ao apoio da prefeitura e do governo do estado. Entretanto, Paulo destacou a necessidade de um maior envolvimento do governo federal, cuja proximidade e contribuição são essenciais para garantir a continuidade e o fortalecimento das atividades culturais.

Durante quase 20 anos, Paula de Renor dividiu a tarefa de tocar o Janeiro, junto com Paulo de Castro e Carla Valença. Foto: TMF / Divulgação

A verdade, que sabemos, é que os recursos são escassos e o evento acontece graças principalmente à colaboração dos artistas, que recebem um cachê irrisório e, de fato, dão sustentação ao festival. Melhorar essas condições para os trabalhadores da cultura é imprescindível.

E esse foi o tom do discurso de uma das homenageadas do festival, a atriz e produtora Paula de Renor, em um dos momentos mais marcantes da noite. Emocionada, Paula compartilhou sua alegria com a homengem, mas também expressou a falta que sentiu de Carla Valença, sua amiga e colega de palco, que estava na plateia e não foi homenageada este ano.

Durante seu breve discurso, Paula refletiu sobre as realidades enfrentadas pelos artistas. Ela destacou a necessidade urgente de mais apoio financeiro, dignidade e pagamentos justos para os profissionais das artes cênicas. Enfatizou que, apesar das melhorias da cadeia produtiva ao longo dos anos, ainda há muito a ser conquistado. Paula mencionou que a luta por políticas culturais contínuas é incessante e lembrou a todos que, apesar de ser um dia de festa, os desafios persistem como uma espada sobre as cabeças daqueles que fazem arte.

Paula de Renor, em sua fala, lembrou que os avanços alcançados por produtores e artistas de Pernambuco não vieram facilmente e o JGE sempre foi um espaço de resistência e reivindicação.

Poeta, ativista e vereadora Cida Pedrosa, uma das homenageadas do festival. Foto: TMF / Divulgação

O JGE também prestou homenagens a outras figuras que têm feito contribuições significativas para a cultura pernambucana. Entre os homenageados estavam Márcia Souto, pela condução da política cultural; Bernardo Peixoto, representante do Sistema Fecomércio Sesc/Senac Pernambuco, que não compareceu mas enviou uma representante; a vereadora, poeta e militante cultural Cida Pedrosa; e Queiroz Filho, parceiro de longa data da Apacepe. As demais pessoas homenageadas receberão seus troféus no dia da premiação.

A proposta conceitual desta edição do Janeiro é a liberdade de expressão na cena pernambucana, valorizando a diversidade cultural e a arte como ferramenta revolucionária e transgressora. O festival é dedicado ao grupo Vivencial, fundado na década de 1970 em Olinda e que celebra os 50 anos de sua fundação. Guilherme Coelho, ator e diretor, mentor intelectual e diretor do Vivencial, é um dos homenageados dessa edição.

Lia de Itamaracá ladeada por Elízio de Búzios e Áurea Martins. Foto: TMF / Divulgação 

Ela diz “Eu sou Lia” e o público se derrete. Puro magnetismo. Foto: TMF / Divulgação 

Áurea Martins. Foto: TMF / Divulgação

Orquestra Lunar. Foto: TMF / Divulgação

Elízio de Búzios. Foto: TMF / Divulgação

ABERTURA MUSICAL

O Janeiro de Grandes Espetáculos inaugurou sua programação com o show intitulado Orquestra Lunar e a Música Negra de Áurea Martins e Elízio de Búzios, proporcionando uma deliciosa experiência musical. A aclamada orquestra feminina do Rio de Janeiro, inspirada nas tradições das gafieiras cariocas, impressionou a plateia com uma ótima execução que combinava uma “cozinha” instrumental potente com um naipe de sopros envolvente. A versatilidade do grupo foi evidente na sua capacidade de navegar por diversas sonoridades, como Corta-jaca de Chiquinha Gonzaga e Te queria, de Elízio de Búzios, que ficou conhecida na voz de seu Jorge.

Entre os protagonistas desta noite mágica, os irmãos Áurea Martins, de 84 anos e Elízio de Búzios, de 82 trouxeram ao palco suas incomparáveis trajetórias artísticas. Áurea, com sua voz potente e interpretação forte, honrou o legado da música negra brasileira com e paixão. Junto a ela, Elízio de Búzios infundiu suas composições com um suingue único e contagiante, mostrando criatividade e emoção.

Apesar dos desafios técnicos enfrentados durante o espetáculo, como microfones baixos e problemas no sistema de som, a performance dos músicos manteve o espírito da noite elevado.

Lia de Itamaracá, em sua participação especial, chegou como  a grande estrela da noite. A cirandeira pernambucana, conhecida por seu intenso carisma e presença impressionante em cena, encantou o público. Com dificuldade de locomoção, cantou sentada em uma cadeira, mas exibindo sua magnificência de rainha musical. A dupla de irmãos e as instrumentistas da orquestra acolheram Lia com palavras carinhosas, criando uma aura de reverência e admiração. Mesmo nos momentos de suave descompasso entre a orquestra e a interpretação de Lia, um toque de magia permeava a apresentação, e suas canções clássicas, familiares de muitos anos, reavivaram a paixão da plateia.

No foyer do teatro, antes da apresentação, houve uma sessão de autógrafos do livro Pernalonga: uma Sinfonia Inacabada, onde o jornalista e escritor Márcio Bastos contou a história de um dos integrantes do grupo teatral Vivencial.

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Que Genet nos salve da caretice. Crítica de Sto. Genet

Santo Genet. Foto: Lígia Buarque / Divulgação

Santo Genet. Foto: Lígia Buarque / Divulgação

Santo Genet e as Flores da Argélia estreou há quase um ano e o recebi como um arroubo quase juvenil, uma peça de falsa transgressão, escrita e encenada por Breno Fittipaldi. De lá para cá, muitos episódios que ocorreram no Brasil e no mundo sinalizam o avanço do retrocesso (que imagem medonha!) e parece-me que coisas fora de ordem ganham outras potências e até mesmo supostos equívocos podem ser lidos de forma diferente e conferidos outros sentidos. 

A montagem se anuncia inspirada na vida do dramaturgo francês Jean Genet (1910 – 1986), narrados no romance autobiográfico Diário de Um Ladrão. Dos elementos do universo genetiano, a encenação enfoca relações homoafetivas, furto, traição, religiosidade, santificação, violência, miséria, relação de poder.

O diretor Breno Fittipaldi é um leitor atento da obra do autor de Nossa Senhora das Flores (1944), The Miracle of the rose (1946), Querelle de Brest (1947) e Funeral Rites (1949), mas as manobras / procedimentos utilizados para levar ao palco os elementos principais da obra inspiradora chegam romantizadas ao palco, sem a força bruta da poesia que fez intelectuais ficarem de joelho diante da literatura de Genet.

Com elenco do grupo Calabouço Cênico, composto por 18 jovens atores, uma encenação em quadros, as memórias emocionais e físicas dos intérpretes são levados à cena. E no início todos falam de alguma contraversão cometida na infância. Narram aquelas brincadeiras longe dos olhos dos pais e carregam no gosto do proibido.

Mas como traduzir a potência transgressora de Genet e ressaltar a poesia desse artista que desequilibrou a inteligência com sua obra de alto teor marginal, mas depois foi processada nas bordas do mainstream?

Em O ateliê de Giacometti (Ed. Cosac & Naify, São Paulo, 2000), Genet dá chaves de sua visão de mundo e da arte no processo de desmascaramento: “A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine.”

Difícil tarefa!

O elenco executa determinados conceitos de forma tosca ou precária, como as relações sórdidas e o prazer da prostituição. As aventuras perigosas no submundo são bem oscilantes como o  cerimonial erótico projetado na atualidade.

Faltam aos corpos a experiência, não digo a radicalidade de Genet do submundo dos ladrões, mendigos, homossexuais, prostitutos e presidiários, mas uma vivência que dê um peso a essa estetização.

Há frestas de glamour (avesso a Genet) e festa, ao tratar dos horrores da existência. O lirismo é aquebrantado na construção desses santos e mártires esculpidos por Breno Fittipaldi. Também do ponto de vista dramatúrgico, muito do valor lírico da palavra genetiana se perde nessa adaptação.

Elenco do Grupo Calabouço

Elenco do Grupo Calabouço

Mas em paralelo a tudo isso, de desvios nas conjunções das cenas, dos corpos que precisam de uma presença energizada, há uma busca empenhada em rasgar os clichês, em ir além da afetação, para encontrar a poesia do sórdido. O elenco mergulha sem pudor contra uma caretice que se instaura no mundo.

Encenar Genet se torna por si só um ato político. Desmascarar o corpo, ir para a beira do abismo, esquadrinhar a violência como um processamento de poder contra a moralidade é um exercício artístico de devir. De aposta no futuro e nas escolhas e possibilidades mais radicais que podem estar no horizonte.

É preciso dizer que o elenco é corajoso. E se oferece ao banquete preparado pelo diretor. É de uma extrema entrega e alegria de estar no palco. Isso vai para a conta do processo de cada um deles, o autoconhecimento. Os jogos, as trocas, as cumplicidades. E o público? Mais de duas horas a acompanhar um emaranhado de cenas em idas e vinda sob o pretexto de Genet. Os mais jovens talvez fiquem empolgados com a composição dos quadros, a nudez e a permissividade. Que os outros façam suas próprias reflexões para apreender os riscos dessa aventura no território do grupo. 

Santo Genet faz uma apresentação nesta segunda-feira, às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho, dentro da programação do 24º Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas e Música de Pernambuco.

Ficha Técnica
Elenco: Alcides Córdova, André Xavier, Binha Lemos, Dara Duarte, Diogo Gomes, Diôgo Sant’ana, Giovanni Ferreira, Fábio Alves, Hypólito Patzdorf, Lucas Ferr, João Arthur, Marcos Pergentino, Pedro Arruda, Robério Lucado, Shica Farias e Willian Oliveira.
Dramaturgia, encenação e sonoplastia: Breno Fittipaldi.
Assistentes de encenação:
Alcides Córdova, Hypólito Patzdorf e Nelson Lafayette.
Preparação corporal:
Hálison Santana e Hypolito Patzdorf.
Preparação vocal e execução de sonoplastia:
Nelson Lafayette.
Preparação vocal e direção musical:
Lucas Ferr.
Assistentes de direção musical:
Giovanni Ferreira e Natália Oliveira.
Figurino:
Paulo Pinheiro.
Assistente de figurino:
Binha Lemos.
Calçado:
Jailson Marcos.
Maquiagem:
Vinícius Vieira.
Assistente de maquiagem:
Pétala Felix.
Iluminação:
Dara Duarte.
Execução de luz:
Aline Rodrigues / Tomaz Manzzi.
Identidade visual / Plano de mídia artística:
Alberto Saulo, Alcides Córdova e William Oliveira.
Fotografias:
Li Buarque e Maria Laura Catão.
Ações formativas:
Alberon Lemos.
Equipe de Apoio:
Helen Calucsi, Lorenna Rocha, Paulo César Pereira, Pétala Felix, Rafael Motta. Produção executiva: Alcides Córdova e Binha Lemos.
Produção geral:
Grupo Cênico Calabouço.

SERVIÇO
EspetáculoSanto Genet e as Flores da Argélia
Quando: Nesta segunda-feira, 15/01, às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 30,00 inteira R$ 15,00 meia

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Potências e fragilidades do humano. Crítica de Ícaro

Foto: Pedro Portugal

Luciano Mallmann faz a segunda sessão neste sábado, no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Pedro Portugal

Há muito de ficção, com pitadas de realidade no monólogo Ícaro, peça com o ator gaúcho Luciano Mallmann, com direção da atriz Liane Venturella, que está na programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. A realidade impulsiona para o voo e a ficção funciona como fio terra. Pode até parecer uma inversão essa leitura, porque o corpo de cada um já impõe limites, mas não pode barrar desejos. Uma queda durante uma acrobacia aérea em tecido no Rio de Janeiro provocou uma lesão na medula de Mallmann, em 2004. Ele se tornou paraplégico. Essas experiência e as novas condições de deslocamento, as mudanças na relação com às pessoas e objetos, inspiraram a montagem, que tem dramaturgia de Mallmann. O título faz alusão à figura da mitologia grega, o filho de Dédalo, que ficou famoso por sua tentativa de deixar Creta voando.

Esse teatro documental junta seis histórias narradas / interpretadas que tem em comum os conflitos internos e externos de cadeirantes. Os desafios cotidianos, fatos que ganham um teor excepcional pelo suspense no desenrolar do monólogo. A estrutura dramática é simples com uma espécie de prólogo, em que o ator conta a vivência de uma queda da cadeira de rodas e a via crucis para chegar até a cama. Lembrei-me do personagem de Kafka: “Numa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa deu por si na cama metamorfoseado num gigantesco inseto.” Dos movimentos de Gregor, das tentativas de sair do lugar.

O ator se expõe e descortina o jogo de forças. Há algo de melodramático – no recorte das histórias, no tom narrativo, nas pausas bem marcadas, – reforçado pela trilha sonora de Monica Tomasi e iluminação de Fabrício Simões. E isso não é nenhum problema. É uma pontuação. Mallmann contou da sua preocupação em não ser piegas. Não é. É humano, que fala das vulnerabilidades, desafios adaptações pra criar novas fortalezas nas condições que a vida se apresenta. Dizer “hoje a palavra cadeirante me dá sorte” ou “está tudo certo” não são apenas frases de efeito.  É que estar vivo é desafio, dádiva e alegria. Resiliência na prática.

Ícaro é um espetáculo sobre potências e fragilidades do humano. Da gravidade dos relacionamentos, negociações amorosas, preconceito, gravidez e maternidade, medos, sobre o imponderável e forças misteriosas no universo. Sobre a existência, que é um jogo e a qualquer hora pode virar.

Foto: Pedro Portugal

Elegância nos papeis femininos. Foto: Pedro Portugal

O espetáculo é principalmente um trabalho de presença cênica. E o intérprete explora com maestria as facetas de suas personagens, salientando as diferenças entre elas. É uma montagem que provoca a emoção do espectador, sem dúvida, ao expor a complexidade de estar no mundo com seus movimentos limitados.

Cada episódio tem a sua própria tensão dramática. Desde o conflito da garota que a mãe queria transformar em princesa, sofreu uma lesão na coluna, levou um chute do namorado, que  e a vida encarregou de dar o troco; passando pelas histórias de maternidade e do suicídio programado na Suíça. Ao paciente machista, que não consegue tomar um copo d’água sozinho, mas ainda não introjetou sua atual situação, entre demonstrações de agressividade e os delírios do desamparo de outros tempos.

Ícaro é uma peça delicada e com força para deslocar visões de mundo. Isso é muito.

Serviço

Espetáculo Ícaro 
Quando: Sábado (13/01), às 18h
Onde: Teatro Arraial Ariano Suassuna (Rua da Aurora, 457, Boa Vista)
Quanto: R$ 20 (preço único)
Informações: (81) 3184-3057

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Abertura do JGE: Política no segundo ato

Foto: fotos de wellington dantas

Leda Alves, Marcelino Granja, Márcia Souto, Paulo de Castro e Astrogildo Santos . Foto: Wellington Dantas

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O coordenador-geral do festival e a secretária de Cultura do Recife. Foto: Wellington Dantas

A noite de 14 de março de 2017 ficou na minha memória como uma experiência poética e política incrível e inesquecível. Com o Theatro Municipal de São Paulo lotado, os gestores representantes dos secretários municipal e estadual de cultura de São Paulo, e do então ministro da cultura foram silenciados por ensurdecedoras vaias, um festival de apupos, na abertura da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Um momento histórico no teatro brasileiro. O produtor da MITsp já havia demarcado a posição do evento contra a precarização da cultura, o congelamento do orçamento e a ameaça de destruição das políticas culturais significativas.

No Recife dos casarões coloniais e estruturas de pensamento conservadoras da elite e classe média que ocupavam as cadeiras do Teatro de Santa Isabel, na quarta-feira, na abertura do Janeiro de Grandes Espetáculos, as reações foram amenas e acanhadas. O coordenador-geral do JGE, Paulo de Castro, falou rapidamente dos desafios desta edição e da alegria em sua realização. Depois foram convidados ao palco o secretário de cultura de Pernambuco, Marcelino Granja; a presidenta da Fundarpe, Márcia Souto; a secretária de Cultura do Recife, Leda Alves e o diretor de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, Astrogildo Santos.

A fala de Marcelino Granja surpreendeu e provocou uma tensão cognitiva. Ele se posicionou a favor de Luís Inácio Lula da Silva e contra o golpe. Fez um discurso em defesa da democracia, do estado de direito e do ex-presidente Lula. E foi enfático de que a ameaça de condenação de Lula é uma infâmia, que pode se alastrar por todos setores.

A preleção parece boa, para quem se posiciona contra o golpe midiático, parlamentar e jurídico que afastou a presidenta Dilma Rousseff. A não ser por alguns pequenos “detalhes”, que motivaram discretos protestos de “Fora Temer” e ensaios de vaias, que sobraram para outro representante.

Granja é filiado ao PC do B (partido que é contra o golpe), mas é secretário de Cultura do Governo Paulo Câmara, declaradamente a favor do golpe. Então existe aí , pelo menos, uma esquizofrenia política.

Estamos em tempos em que as narrativas são construídas e desconstruídas ao bel-prazer de hábeis oradores. Granja portanto, lembrou dos editais do Funcultura (principal fonte de financiamento da produção cultural pernambucana – audiovisual, música e geral) para enaltecer o governo e e dizer que está do lado dos artistas. Numa estranha passividade, a plateia baixou a cabeça e alguns até aplaudiram o discurso.

Depois dele, a presidenta a Fundarpe, Márcia Souto também do PC do B falou pouco e destacou que a atriz e produtora Paula de Renor (que ficou por 15 anos na coordenação do JGE, junto com Paulo de Castro e Paula Valença), e que estava sentada na plateia, é a nova presidenta do Conselho de Cultura. Uma função merecida para Paula de Renor que luta há anos por políticas públicas mais justas em Pernambuco. Mas o anúncio pareceu uma cortina de fumaça em meio ao fogo cruzado.

A secretária de Cultura do Recife, Leda Alves, reafirmou que é um soldado na política do PSB e que luta pela cultura pernambucana. Ela tem um histórico, inclusive como artista e gestora que impõe respeito, e é muito querida no setor. Mas a realidade da política cultural recifense não é um palco iluminado e todos nós sabemos disso.

Dessa etapa protocolar, o produtor Astrogildo Santos, que atua como diretor na Fundaj, iniciou sua fala dizendo que estreou como ator no Teatro de Santa Isabel e outros feitos, para depois defender que o Ministro da Educação, Mendonça Filho, está fazendo grandes ações pela educação e cultura. Vaia na certa. Fora Temer! e Golpistas! foram as palavras de ordem gritadas por uma parte da plateia.

Coube a Paulo de Castro arrematar com as palavras de que este ano tem eleição e teremos condições de eleger os nossos representantes. Será? Há muitos meses da campanha política já há apostas de quem será o próximo deputado federal mais votado. Então, será que já saímos da era das capitanias hereditárias?

HOMENAGEADOS

Nesse clima tenso foram convidados os homenageados desta edição Vanda e Renato Phalante, dois queridos atores pernambucanos, com uma trajetória ligada ao Teatro de Amadores de Pernambuco e que ostentam 40 anos de profissão. Eles receberam os aplausos e carinho do público, muitos de seus pares de palco. Palavras de afetos foram transmitidas em vídeo, inclusive as de Geninha da Rosa Borges. E também foram presenteados com um quadro pintado por Cleusson Vieira .

Vanda Phaelante. Foto: Wellington Dantas

Vanda Phaelante. Fotos: Wellington Dantas

Homenageados desta edição ganham quadro pintado por Cleusson Viana

Homenageados desta edição ganham quadro pintado por Cleusson Vieira

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