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Eu Vi o Palco Giratório e ele começava no Recife

O espetáculo Circo Science vai rodar o Brasil pelo programa do Sesc, Palco Giratório. Fotos: Maker Midia

Entre gritos e risos de crianças e a magia eterna do picadeiro, a 27ª edição do Palco Giratório foi lançada na noite de sexta-feira (25/04) no Parque Urbano da Macaxeira, zona norte do Recife. A estreia do maior projeto de itinerância das artes cênicas do Brasil ocorreu no mesmo bairro onde Fátima Pontes, homenageada deste ano, mantém sua base de trabalho desde 1996, criando uma conexão direta entre o evento e a comunidade local. Promovido pelo Sesc nacional, o Palco Giratório de 2025 tem o circo como tema central e traz uma programação que inclui teatro, circo, dança e performance em atividades gratuitas ou a tarifas módicas.

O Parque da Macaxeira transformou-se em palco popular para o lançamento, com uma grande lona abrigando o cerimonial e o espetáculo de estreia, cercada por arquibancadas completamente tomadas pela comunidade local. A atmosfera festiva ganhou condução especial da atriz Nínive Caldas, que com elegância e humor enfrentou o desafio de acalmar crianças impacientes que gritavam “começa, começa!” enquanto ela anunciava e agradecia aos gestores presentes na cerimônia. As crianças têm as suas razões; os adultos precisam encontrar outras formas de dar conta dos reconhecimentos a pessoas, instituições e patrocinadores nas aberturas de festivais e coisas dessa natureza.

O diretor regional do Sesc em Pernambuco, Oswaldo Ramos, entendeu a urgência das crianças e fez um intervenção brevíssima; um secretário do Recife fez um papel dúbio, de dar o recado institucional e instigar a plateia a se manifestar mais fortemente. Segura essa, Nìnive! Mas o momento mais emotivo veio com o discurso comovente da própria Fátima Pontes, antes que o espetáculo Circo Science incendiasse a plateia.

Fátima Pontes, coordenadora da Escola Pernambucana de Circo, representa o coração da homenagem desta edição após quase três décadas de dedicação à formação artística de jovens nas periferias recifenses. Seu trabalho gerou frutos como a Trupe Circus, primeira companhia profissional formada por alunos egressos da Escola, que representa Pernambuco no circuito nacional com o espetáculo Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro, misturando técnicas circenses com referências do movimento manguebeat.

Além da homenagem, o Palco Giratório também fortaleceu a inauguração da nova estrutura da Escola Sesc de Circo Social em São Lourenço da Mata, que ocorreu no sábado. A estrutura oferece 141 vagas gratuitas anuais para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade.

Fátima Pontes, homenageada do Palco Giratório de 2025

No discurso emocionado, Fátima Pontes demonstrou sua autenticidade ao se apresentar como uma mulher de ação e não de palavras formais. Mesmo afirmando não ser “uma pessoa de muitas falas e discursos oficiais”, Fatinha, como é carinhosamente conhecida, aproveitou o momento para agradecer a homenagem recebida, destacando que o reconhecimento não era apenas pessoal, mas de toda a Escola Pernambucana de Circo.

Com mais de 25 anos dedicados à instituição, ela relembrou sua trajetória marcada por lutas sociais, políticas e culturais, sempre se posicionando como “mulher, parda, periférica” que precisou abrir portas à força em diversos espaços. Sua fala evidenciou como o machismo, a misoginia, o racismo e o preconceito social foram obstáculos que, ao invés de enfraquecê-la, fortaleceram sua determinação.

Em um dos momentos mais tocantes do pronunciamento, Fátima ressignificou o conceito de pobreza ao afirmar que as pessoas com quem trabalha não são pobres, mas “muito ricas pelo amor ao que fazemos, que é a arte”. Ela salientou sobre a importância de não romantizar o trabalho por amor, reconhecendo que é necessário “matar a fome” – não apenas de comida, mas “de amor, de fraternidade, de união, de respeito, dignidade e direitos humanos”.

Ao encerrar sua fala, agradeceu especialmente aos jovens artistas que participariam da apresentação e a todos que fazem parte da Escola Pernambucana de Circo, instituição que define como “feita por gente que acredita em gente para formar outras vidas”, ressaltando a essência de um trabalho que vai além do ensino artístico para se tornar uma ferramenta de transformação social.

No lançamento do Palco Giratório

O Palco Giratório do Sesc se consolidou como uma das mais importantes plataformas de circulação das artes cênicas brasileiras, criando uma rede nacional que busca democratizar o acesso à cultura e valorizar a diversidade artística do país. Em sua essência, o projeto rompe fronteiras geográficas ao levar espetáculos selecionados para dezenas de cidades brasileiras, desde capitais até municípios do interior, permitindo que comunidades distantes dos grandes centros culturais tenham acesso a produções de qualidade.

Para 2025, a jornada do Palco Giratório 2025 promete ser grandiosa, levando 16 grupos artísticos de 15 estados brasileiros a 96 cidades até dezembro, criando um verdadeiro movimento de intercâmbio cultural e formação de público em todas as regiões do país, de trabalhos de teatro, dança, circo, performance e manifestações híbridas. Entre eles estão o espetáculo Da Janela, da Trupe do Experimento (RJ), que narra a amizade entre três crianças e utiliza a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como elemento de acessibilidade e expressão artística, e Ané das Pedras, da Coletiva Flecha Lançada Arte da cidade do Crato, no Ceará, uma performance de Bárbara Matias Kariri que mostra um ritual de plantação de pedra, como quem conta um sonho, e revela ao público a arte da cena dos povos indígenas e sua urgência de trazer seus saberes para o centro dos debates.

O grupo Dimenti, da Bahia, participa do Palco Giratório com o espetáculo Biblioteca de dança, em que artistas transformam seus corpos em “livros vivos” para compartilhar com o público memórias associadas a danças e pensamentos, que marcam a vida de cada um.

Parto Pavilhão, monólogo paulista com dramaturgia de Jhonny Salaberg, direção de Naruna Costa e atuação de Aysha Nascimento, apresenta a história de Rose, ex-técnica de enfermagem encarcerada que auxilia parturientes numa penitenciária para mães. Durante uma Copa do Mundo, ela planeja uma fuga coletiva, inspirada em caso real ocorrido em 2009.

Além das apresentações, o Palco Giratório promove atividades formativas como oficinas, debates e intercâmbios entre artistas locais e visitantes, criando um ambiente de troca e aprendizado contínuo. Como acentuou Janaina Cunha, diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc, o projeto difunde a produção artística nacional, ao mesmo tempo que impulsiona a economia criativa, movimentando a cadeia cultural e setores correlatos como logística, comércio e hotelaria nas cidades por onde passa.

Ao longo de suas edições, o Palco Giratório tem se firmado como um importante catalisador para a formação de plateias, o fortalecimento de grupos teatrais em diferentes regiões e a valorização da diversidade cultural brasileira, abordando temas urgentes como inclusão social, ancestralidade, questões ambientais e identitárias que refletem a complexidade da sociedade contemporânea. É o Sesc e o seu grande poder para a cultura na república brasileira.

A programação pernambucana se estende até 27 de abril com espetáculos, oficinas, rodas de conversa e apresentações musicais, ocupando unidades do Sesc e outros espaços culturais da região. Nesse lançamento no Recife, a apresentações ficaram por conta do espetáculos Biblioteca de Dança do grupo baiano Dimenti; Kombinando com Cerrado do grupo mato-grossense Du Cafundó, que mostra palhaços em busca de novas experiências; Itan e Tal do Grupo Baquetá do Paraná, que explora a ancestralidade afro-indígena; e Divagar e Sempre do grupo paraense Las Cabaças, retratando a amizade entre duas palhaças em jornada pela floresta.

Vale lembrar que em 2024, o Palco Giratório retornou ao Recife após dez anos de ausência, transformando-se em um verdadeiro festival sob a coordenação de Rudimar Constâncio, que não está mais no Sesc PE. Na época, foram apresentados 46 espetáculos durante 17 dias, sendo 30 produções locais e 16 vindas de outras regiões do Brasil, com homenagens a Amir Haddad e Maurício Tizumba. Desde sua criação em 1998, o projeto já contou com 412 grupos artísticos e mais de 10 mil apresentações, consolidando-se como uma plataforma essencial para a democratização das artes cênicas no Brasil e reafirmando sua importância na formação de plateia e valorização da cultura brasileira.

Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro

O elenco é formado por Ítalo Feitosa, Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando e João Vítor 

No Parque da Macaxeira, sob a lona de um circo repleto de quase 800 pessoas, a Trupe Circus inaugurou o Festival Palco Giratório com uma apresentação eletrizante do espetáculo Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro. A energia que circulava pelo ambiente era quase palpável, intensificada por um público que, em grande parte, já conhecia o espetáculo e reagia com entusiasmo a cada número apresentado. Crianças e adolescentes transformaram-se em verdadeiros torcedores, aplaudindo efusivamente as acrobacias de solo, os números aéreos, os mortais, a dança do maracatu e as demonstrações de equilíbrio. Essa atmosfera de celebração coletiva evidenciou o poder do circo como manifestação artística capaz de unir gerações em torno de uma experiência compartilhada.

O espetáculo, que celebra os 30 anos do lançamento do álbum Da Lama ao Caos, parte da homenagem a Chico Science para se estabelecer como um manifesto político-cultural. Composto por seis jovens negros e LGBTQIAP+ das periferias do Recife – Ítalo Feitosa, Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando e João Vítor – a Trupe Circus demonstrou uma fisicalidade impressionante aliada a uma consciência social aguda. A estrutura cenográfica metálica, complementada por videocenografia no telão, transportou o público para os manguezais pernambucanos, territórios historicamente negligenciados que ganharam visibilidade através da arte. A trilha sonora, baseada nas composições de Chico Science e remixada pela equipe de Vibra DJ, criou uma simbiose entre o universo manguebeat e as técnicas circenses.

O que torna Circo Science uma obra singular é sua capacidade de fundir tradição e contemporaneidade. Os números circenses tradicionais dialogam com criações inéditas da Trupe, enquanto a estética do Manguebeat é atualizada com elementos culturais das periferias atuais. Esta perspectiva acentua como o movimento iniciado por Chico Science continua vivo e pulsante, influenciando novas gerações de artistas. Sob a direção de Ítalo Feitosa e com dramaturgia de Fátima Pontes, o espetáculo consegue o difícil equilíbrio entre destreza técnica e experimentação conceitual, transformando o picadeiro em uma “manguetown circense” onde corpos diversos expressam suas identidades, angústias e resistências.

É impossível não reconhecer o impacto social deste trabalho, fruto da Escola Pernambucana de Circo, instituição que desde 1996 promove inclusão social e formação artística para crianças e jovens da zona norte do Recife. Os seis integrantes da Trupe Circus, que estudaram na escola desde a infância, evidenciam a eficácia deste projeto de transformação social através da arte. Como afirmou Fátima Pontes, coordenadora executiva da escola, o espetáculo é “um manifesto através da arte circense de reafirmação da força e resistência da arte e educação realizadas pelas juventudes negras e periféricas do Recife”. Esta dimensão política potencializa o valor estético da obra.

Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro consegue, assim, ser simultaneamente um espetáculo de entretenimento altamente contagiante e um ato político. Ao questionar “Como estão os manguezais? Como está o ecossistema propagado pelo manguebeat?”, a Trupe Circus convida o público a refletir sobre as transformações sociais e ambientais das últimas três décadas, sem jamais perder a potência celebratória característica do circo. O resultado é uma experiência artística que encanta pelos saltos mortais e acrobacias aéreas, emociona pela honestidade das expressões corporais e provoca pela contundência de seu discurso. Como dizia Chico Science, citado no espetáculo: “Posso sair daqui pra me organizar, posso sair daqui pra desorganizar” – e é exatamente isso que faz a Trupe Circus, organizando técnicas circenses para desorganizar preconceitos e desigualdades, provando que a periferia tem, sim, um poder transformador que continua a reverberar, 30 anos depois do surgimento do Manguebeat

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Ser Tão Teatro combina Tchekhov com bolo na cara
Crítica a partir da peça Alegria de Náufragos

Os atores de Alegria de Náufragos: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima. Foto: Rafael Passos/ Divulgação

Digamos que você, espectador, chegue ao cais para embarcar no espetáculo Alegria de Náufragos, sem ter muita informação sobre a peça. No primeiro momento, você pode ficar um pouco perdido. Afinal, há uma profusão de citações e referências. Eu também fiquei atordoada no começo.

Alegria de Náufragos é uma montagem intrigante. De cara, vemos os atores vestidos de pijamas, às voltas com as aflições e delírios do professor Nicolai Stiepánovitch, que ostentou por décadas os símbolos de prestígio, de sucesso, enfim de felicidade, agora vivendo um pesadelo contínuo. O protagonista contracena com outras figuras e com os seus fantasmas. 

Adaptado livremente do conto Uma história enfadonha – das memórias de um homem idoso, de Anton Tchekhov (1860-1904), a encenação, produzida pelo grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, é resultado de um processo colaborativo do grupo com outros artistas nordestinos. Com dramaturgia assinada por César Ferrario, Giordano Castro e o coletivo, e direção compartilhada entre Ferrario e Castro, a peça busca estabelecer conexões entre a obra de Tchekhov e situações contemporâneas.

A montagem combina um tratamento poético de Ferrario, conhecido por seu trabalho com os Clowns de Shakespeare, e a perspectiva de Castro, do grupo Magiluth, que enfatiza a presença cênica do ator, sua potência de performance. Essa junção de estilos resulta em um espetáculo crítico e cômico, marcado por uma atuação física intensa.

A direção explora a desconstrução das personagens e evidencia a interação entre atores e público, quebrando a quarta parede e criando um ambiente de cumplicidade. O humor ácido satiriza instituições sociais e convenções culturais, expondo sua superficialidade e hipocrisia, ao mesmo tempo em que provoca risos e reflexões, subvertendo o peso de determinados valores.

Com uma estrutura não linear e fragmentada, a peça opta por uma encenação mais experimental. A história do professor Nicolai Stiepánovitch é contada através de uma série de cenas que se entrelaçam, que vão do deboche à reflexão filosófica.

Os atores Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima interpretam várias personagens. Para as mudanças, o elenco faz pequenas alterações nos figurinos, concebidos por Vilmara Georgina, como a adição de um acessório ou a troca de um elemento de vestuário. Essa dinâmica ágil e a constante alternância de papéis, esse embaralhamento de figuras e a vertigem verborrágica podem confundir. Mas não se preocupe. Siga firme.

Ter algum conhecimento prévio sobre a obra de Anton Tchekhov talvez ajude a compreender algumas das referências ou temas abordados. Mas, se não tiver, tudo bem. Estar aberto a formas não convencionais de narrativa e performance é fundamental para se divertir com as nuances da peça, que desafia as expectativas tradicionais do teatro, exigindo disposição e uma mente aberta e curiosa. Faça as associações que lhe pareçam significativas.

Na idade madura, o protagonista questiona o sentido de prestígio, fama, poder.

Nicolai Stiepánovitch é um professor emérito, reconhecido por seu currículo impecável e suas contribuições significativas no campo da Medicina. Aos olhos da sociedade, alcançou o ápice do sucesso profissional e pessoal, enfim, a felicidade. Ele é respeitado, condecorado e visto como um exemplo de vida bem-sucedida. No entanto, aos 62 anos, Nicolai enfrenta uma dolorosa crise existencial. Ele começa a questionar as escolhas que fez ao longo de sua vida, percebendo a superficialidade e a pateticidade das instituições que antes valorizava. Gradualmente, suas conquistas e honrarias perdem o sentido para ele, que se vê como um náufrago em sua própria existência.

Para enriquecer a discussão sobre Nicolai Stiepánovitch, podemos trazer as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e a vida líquida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as instituições são instáveis e em constante mudança. Essa fluidez gera incertezas e inseguranças, afetando a identidade e a busca por significado dos indivíduos.

Stiepánovitch é um exemplo de um indivíduo que, apesar de suas conquistas, se sente perdido em um mundo líquido. Sua crise existencial reflete a dificuldade de encontrar estabilidade e propósito em uma sociedade onde tudo é efêmero e mutável. As reflexões de Nicolai sobre a futilidade das instituições e o vazio interior ecoam as ideias de Bauman sobre a fragilidade das relações humanas e a busca incessante por validação.

A representação do envelhecimento em Alegria de Náufragos merece uma reflexão crítica sob a ótica contemporânea. Retratar Nicolai, aos 62 anos, como um homem no ocaso de sua carreira e de sua vida, restrito por limitações físicas e mentais, pode reforçar estereótipos e preconceitos relacionados à idade. Essa abordagem não condiz com a realidade de muitas pessoas na faixa dos 60 anos no século 21, que, graças aos avanços da medicina, da qualidade de vida e da consciência sobre a saúde, mantêm uma vitalidade e uma energia notáveis.

Exemplos de artistas como Madonna e Sting, que aos 64 e 71 anos, respectivamente, seguem criando, se apresentando e cativando o público com sua arte e presença cênica vibrante, acentuam que a idade não é um fator determinante para a vitalidade e a paixão pela vida.

No que diz respeito à personagem Cátia, que ocupa um lugar especial na vida do protagonista, ela de fato representa um contraponto significativo ao desalento e ao vazio interior de Nicolai. Sendo uma jovem artista plena de sonhos e paixão pela vida e pela arte, Cátia personifica a esperança e a busca incessante por sentido. Sua luta para viver da arte, mesmo quando enfrenta fracassos e decepções, ressoa com a própria experiência dos atores do Ser Tão Teatro e os desafios de muitos grupos espalhados pelo Brasil.

Montagem paraibana participa do circuito do Palco Giratório nacional. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Os elementos cênicos, retirados de uma caixa central no palco, ganham estatura na encenação. Objetos simples como flâmulas, troféus, cabos de vassoura e medalhas são utilizados para construir a imagem do professor Nicolai e sua trajetória.

É um mérito do grupo trabalhar com temas profundos como a ruína interior, os valores mundanos das instituições e a crise existencial na chave da comicidade e do deboche, agregando o interesse de plateias mais jovens. Afinal, a peça também fala disso: não se leve tão a sério, não leve a vida tão a sério.

Quem é do teatro ama a porção metateatral, com a incorporação de elementos autobiográficos dos atores e reflexões sobre a própria prática e seus perrengues, adicionando uma camada extra de complexidade.

Os atores utilizam gestos exagerados, expressões faciais e movimentos corporais para criar momentos cômicos. A peça expõe as dificuldades enfrentadas pelo povo do teatro, como a corrida por editais, a burocracia envolvida na obtenção de financiamento para projetos e a necessidade de complementar a renda com papéis de figurantes, animações de festas infantis, oferecendo uma visão da precariedade e incerteza da vida de artista.

O uso de ações cômicas como tapa na cara, bolo na cara, talco, água e açúcar na cara se mostrou uma estratégia eficaz para criar momentos de humor físico. Esses recursos intensificam a comicidade e criam um ambiente de caos controlado.

O Ser Tão Teatro, fundado em 2007 por alunos e profissionais das artes cênicas da UFPB, é um grupo de pesquisa teatral de João Pessoa, Paraíba, que tem se destacado no cenário nacional e regional. Com Alegria de Náufragos – que estreou em março de 2016, em João Pessoa, e foi financiado pelo Fundo Municipal de Cultura (FMC) – a trupe está em circulação pelo Brasil, através do projeto Palco Giratório do SESC Nacional. Estão previstas apresentações em Natal (RN) no dia 07/08; São Paulo (SP) nos dias 13/08, com a realização do Pensamento Giratório, e 14/08; Rio de Janeiro (RJ) no dia 15/08, com uma apresentação no Polo Educacional; Florianópolis (SC) no dia 22/08; São Luís (MA) no dia 18/09; e Porto Velho (RO) no dia 26/09.

A peça estreou na época do # fora Temer. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Ficha técnica:
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Dramaturgia: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Cely Farias Rafa Guedes Thardelly Lima Polly Barros (stand in) Paulo Philipe (stand in)
Direção musical e música original: Marco França
Desenho de luz:: Ser Tão Teatro
Produção: Rafa Guedes, José Hilton
Iluminador: Fabiano Diniz
Operador de som: Polly Barros
Figurino: Vilmara Georgina
Cenografia e adereços: Maria Botelho
Direção de palco e contrarregragem: José Hilton e Daniel Torres

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Uma joia que dilata nossos corações para celebrar a vida
Crítica de Circo de los pies

Foto: Ivana Moura

O que podem pés deficientes? Eles podem mostrar que enquanto a vida pulsa, tudo é possível. Eles podem fazer cambalhotas no ar.  E quando eles encontraram a palhaçaria, eles esbanjam humor, compõem poesia. Foi isso que aconteceu ontem, dia 18 de maio, no Teatro Marco Camarotti, no Recife, dentro da programação do Palco Giratório, com o espetáculo Circo de los pies.

Fruto do projeto O que meus pés me contam?, da La Luna Cia de Teatro, o espetáculo busca investigar o universo circense a partir das potencialidades e limitações de corpos plurais, visando tornar esse universo mais inclusivo para pessoas com deficiência. O projeto teve o incentivo do programa Entre Arte e Acesso do Itaú Cultural (2022) e do Prêmio Elisabete Anderle de estímulo à Cultura (2022).

A La Luna Cia. de Teatro, fundada em 2016 e sediada na cidade de Canelinha (SC), é uma companhia que enfrenta com determinação os desafios concretos da produção artística,  enquanto permite que sua criatividade e imaginação voem livres, explorando novos horizontes e possibilidades. Eles se dedicam à difusão e fruição artística por meio de pesquisa, montagem e circulação de espetáculos, encontrando um delicado equilíbrio entre a realidade prática e a liberdade criativa.

O grupo é formado por quatro artistas: Emeli Barossi, Amália Leal, Pedro Torres e Thiago Leite, que pesquisam diferentes linguagens como música, cultura popular, palhaçaria e pedagogia teatral.

Foto: Ivana Moura

Emeli Barossi, a intérprete da palhaça Asmeline, nasceu com Hemimelia Fibular, uma má formação congênita na perna direita. Pequenininha em estatura, mas gigante em talento e carisma, ela cria uma cumplicidade imediata com a plateia, contando brevemente sua história pessoal e, em outras camadas, falando sobre a arte da palhaçaria. Suas pernas, que sempre chamaram a atenção das pessoas, são as protagonistas de uma dramaturgia criada a partir da assimetria e da criatividade do seu corpo.

Em Circo de los pies, Emeli transforma sua patologia em arte, dialogando com a deformidade que existe em todo ser humano, independentemente de ser uma pessoa com deficiência ou não.

O espetáculo se propõe a ser acessível, colocando o corpo com deficiência como protagonista e autor do seu próprio discurso. A interpretação em Libras, realizada por Suzi Daiane, e a audiodescrição, feita por Pedro Torres, são intrínsecas à cena e ao jogo da palhaça, fazendo-se presentes como fios dramatúrgicos. Com uma acessibilidade poética, estética e inclusiva, que vai além de uma tradução e descrição técnica da cena, a obra gera sensações e constrói um jogo cativante com o público, seja ele vidente, não vidente, surdo ou ouvinte.

Emeli se entrega de forma intensa, fazendo uma interpretação de tirar o fôlego. Seus pés, Pezinho e Pezão, são os protagonistas desse show sensacional. É inevitável usar adjetivos para descrever a experiência: um banho de alegria e lirismo, uma enxurrada de ludismo, mas com os pés firmes na realidade. Circo de los pies é um conforto para o coração, mas também traz espetadas nos nervos, lembrando-nos que sempre podemos mais, sem cair nos clichês da superação. A técnica apurada e a entrega total da atriz capturam e amplificam nossa imaginação, levando-nos a uma jornada inesquecível.

É um convite para dilatarmos nossos corações ao infinito, como propôs a poeta Hilda Hilst e nos entregarmos à magia transformadora da arte.

“Circo de los pies” é uma pequena joia que nos contamina de alegria, mas com um fio-terra existencial de que a vida é uma luta constante, abordada com uma leveza perturbadora. Emeli Barossi e a La Luna Cia de Teatro nos presenteiam com uma obra necessária, que ultrapassa limites e nos faz acreditar na essência transformadora da arte.

Ficha Técnica

Atuação e concepção: Emeli Barossi
Trilha Sonora e Sonoplastia: Pedro Torres
Iluminação: Thiago de Castro Leite
Roteiro de Audiodescrição: Fernanda Rosa, Matheus Costa e Emeli Barossi
Figurino: Adriana Barreto
Produção: La Luna Cia de Teatro
LIBRAS: Suzi Daiane
Audiodescrição: Pedro Torres

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Uma jornada encantadora inspirada em Lorca
Crítica de Quatro Luas

Quatro Luas, entre o humor, a magia e leves reflexões existenciais. Foto: Ivana Moura

O espetáculo Quatro Luas, apresentado pelo coletivo O Bando de Olinda (PE) no Teatro Marco Camarotti, em Recife, como parte da programação do Palco Giratório 2024, é uma experiência teatral envolvente que celebra a poesia, a imaginação e a infância em peça inspirada na obra de Federico Garcia Lorca, um dos mais importantes escritores espanhóis do século XX. Conhecido principalmente por suas obras voltadas para o público adulto, como Romancero Gitano e Bodas de Sangue, Lorca também dedicou parte de sua produção literária às crianças, com destaque para Os Encontros de um Caracol Aventureiro, uma coleção de poemas que explora o mundo através dos olhos de um pequeno caracol, e Os Títeres de Porrete, uma peça de teatro que aborda temas como a liberdade e a opressão de forma lúdica e acessível aos pequenos.

Desde o primeiro momento, o público é cativado pela atmosfera mágica criada pela trupe de atores que, representando ciganos, canta, toca e dança nos corredores e hall do teatro. Essa introdução serve como um convite para adentrar o universo onírico proposto pelo espetáculo, preparando os espectadores para a jornada que está por vir.

Ao entrar na sala de espetáculos, somos recebidos por uma cenografia e uma iluminação que transportam a plateia para um mundo de sonhos e descobertas. A história acompanha o protagonista Federico, um pequeno boneco manipulado pelo elenco com destreza e sincronia, em sua busca pela Lua Cheia. A jornada de Federico é repleta de encontros fantásticos com animais falantes, exércitos de formigas e as quatro fases da Lua personificadas.

Vários bichos falantes ocupam a cena, como a Gata Azul. Foto: Ivana Moura

O texto de Claudio Lira, responsável também pela direção, é rico em referências à obra de Lorca, a linguagem poética e as metáforas utilizadas oferecem diferentes camadas de leitura, cativando tanto as crianças quanto os adultos. Os diálogos são bem construídos, com momentos de humor leve e inteligente, como no encontro com as duas Rãs, uma que não enxergava muito bem e outra que não escutava muito bem, criando situações divertidas e reflexões filosóficas sobre a finitude.

O elenco, formado por Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos, demonstra versatilidade ao transitar entre a manipulação de bonecos, as falas, as canções e a interação com a plateia. A cumplicidade entre os atores e o público é evidente, criando uma atmosfera de encantamento compartilhado. Momentos como o conselho da Mariposa para o Menino ir dançar e viver a vida, ou a frescura da Gata Azul, arrancam risadas e reflexões.

A trilha sonora original de Douglas Duan tem canções executadas ao vivo por Arnaldo do Monte (percussão) e Zé Freire (violão), e estão perfeitamente integradas à narrativa, amplificando a carga emotiva das cenas e marcando as nuances da peça. A música se torna um elemento fundamental para a imersão do público no universo poético criado em cena.

A direção de Claudio Lira é sensível e precisa, explorando de forma inteligente os recursos do teatro de bonecos e a linguagem do teatro animado. O ritmo da peça é bem conduzido, com momentos de introspecção e poesia alternados com outros de dinamismo e interação com a plateia. O espetáculo consegue dosar de forma equilibrada os momentos de apelo emocional, as frases de efeito existencial e os achados poéticos, mantendo o público envolvido do início ao fim.

Quatro Luas é um espetáculo que celebra a força da palavra, a magia do teatro de bonecos e o talento de seus criadores. Ao se inspirar no universo lorquiano e, mais especificamente, em suas obras voltadas para a infância, a peça oferece uma experiência teatral encantadora, que convida o público a se reconectar com a criança interior e a redescobrir o poder transformador da imaginação.

FICHA TECNICA:

Dramaturgia e Encenação: Claudio Lira
Elenco: Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos
Músicos: Zé Freire (Violão) e Arnaldo do Monte (Percussão)
Dramaturgia Sonora, Direção Musical e Preparação Vocal: Douglas Duan
Iluminação: Eron Villar
Direção de Arte: Claudio Lira e Célia Regina
Criação e confecção dos bonecos e adereços: Romualdo Freitas e Célia Regina
Criação e confecção das Luas: Romualdo Freitas, Célia Regina e Adriano Freitas
Confecção da Árvore: Douglas Duan
Registro de Fotos e Vídeos: Colibri Audio Visual/Morgana Narjara
Produção: Claudio Lira e o Grupo
Realização: O Bando Coletivo de teatro.

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A trajetória de uma guerreira do samba
Crítica de Leci Brandão – Na Palma da Mão

Leci Brandão – Na Palma da Mão. Foto: Valmyr Ferreira

O espetáculo Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical biográfico que presta homenagem à vida e à obra de Leci Brandão, uma das mais influentes cantoras e compositoras do samba brasileiro. Nascida no Rio de Janeiro, Leci rompeu barreiras ao se tornar a primeira mulher a integrar a prestigiosa ala de compositores da Mangueira, afirmando-se como uma artista engajada que sempre utilizou sua música como instrumento de denúncia e resistência, abordando temas como desigualdades sociais, racismo, violências de gênero e conservadorismo.

A montagem revisita a trajetória de Leci desde suas origens humildes na periferia carioca até sua consagração como uma das vozes mais potentes e respeitadas da música popular brasileira, destacando a relação profunda e transformadora com sua mãe, Dona Lecy, figura fundamental em sua formação como mulher, artista e cidadã.

A importância cultural e política de Leci Brandão – Na Palma da Mão se manifesta em diversas camadas. Inicialmente, o musical se insere em um movimento crescente de produções que valorizam a presença de narrativas e profissionais negros nos palcos brasileiros, contribuindo para a diversificação e a democratização do teatro musical no país. Além disso, ao abordar a história de Leci, o espetáculo ilumina o pioneirismo de uma mulher negra que rompeu barreiras e ocupou espaços de poder em uma sociedade marcada pelo racismo e pelo machismo, tornando-se um símbolo de resistência e empoderamento.

A peça cita en passant a coragem de Leci em afirmar publicamente sua identidade lésbica ainda nos anos 1970, período de intensa repressão e conservadorismo. Embora o recorte dramatúrgico e de direção se concentre na relação de Leci com sua mãe, Dona Lecy, explorando os laços afetivos, os aprendizados e as trocas entre essas duas mulheres e suas lutas no mundo, seria fundamental abrir espaço para abordar esse aspecto essencial da trajetória de Leci Brandão.

Em um momento de avanços por visibilidade e direitos LGBTQIA+, mas também de recuos com a marcha do fascismo, seria crucial que a peça incorporasse mesmo que de forma sutil, a decisão corajosa de Leci de se afirmar como lésbica em pleno regime militar. Essa escolha não apenas presta um tributo mais completo à artista, como também posiciona a obra diante dos desafios atuais. Além disso, o comportamento destemido de Leci Brandão ecoou ao longo das décadas, inspirando gerações de artistas e ativistas LGBTQIA+ a lutar por seus direitos e a expressar suas identidades sem medo, deixando um legado de coragem e determinação que poderia ser celebrado e transmitido na montagem. Até porque o espetáculo ressalta o compromisso inabalável da artista em utilizar sua arte como instrumento de transformação social.

O texto do espetáculo, assinado por Leonardo Bruno, revela uma estrutura dramatúrgica que transita entre passagens narradas e diálogos vívidos entre os personagens. A narrativa segue uma temporalidade predominantemente cronológica. Essa estrutura é enriquecida pelas canções, que pontuam momentos-chave da trama. Essa construção dramatúrgica entrelaça os elementos escolhidos para compor a trajetória de Leci Brandão no palco: a música como expressão de resistência e celebração da vida; a religiosidade como fonte de sabedoria e conexão com o sagrado; e o engajamento político como compromisso ético com a transformação da realidade.

As intervenções bem-humoradas dos instrumentistas funcionam como respiros e comentários, buscando uma cumplicidade com a plateia. 

Sob a direção de Luiz Antonio Pilar, premiado com o Shell de melhor diretor, a encenação valoriza, com delicadeza e humanidade, a relação entre Leci e sua mãe, Dona Lecy, revelando a cumplicidade, o afeto e a força dos laços que unem essas duas mulheres. Pilar privilegia a música como elemento central da narrativa, entendendo o samba como instrumento de resistência, afirmação identitária e comunicação com o público. As composições de Leci são trazidas à cena como convites irresistíveis para que a plateia se integre ao espetáculo, criando uma atmosfera de alegria, celebração e partilha que evoca a energia contagiante das rodas de samba. 

Há uma sequência exaustiva de músicas,  composições que se tornaram clássicos da música popular brasileira. Sucessos como A Filha da Dona Lecy, canção autobiográfica que homenageia a mãe da artista, e Papai Vadiou, samba que retrata com sensibilidade e humor as dificuldades enfrentadas por uma família chefiada por uma mulher negra. Além de Gente Negra, um hino de afirmação da identidade e da resistência afro-brasileira, e Preferência, samba-canção que exalta a liberdade de amar sem rótulos ou preconceitos. E a antológica Zé do Caroço, uma das canções mais emblemáticas de sua carreira, que denuncia a violência policial contra as populações periféricas.

Além das composições de Leci, o espetáculo também rende homenagens a outros gigantes da música brasileira que cruzaram o caminho da artista. É o caso de Cartola, representado por Corra e Olhe o Céu, e da própria Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que acolheu Leci como a primeira mulher em sua ala de compositores e que é lembrada pelo samba-enredo História pra Ninar Gente Grande. Mas a trilha não é suficiente para criar nuances na dramaturgia. 

Embora o espetáculo apresente inúmeras qualidades, é importante reconhecer alguns aspectos para ser pensados. Durante a apresentação realizada no Teatro do Parque, no Recife, como parte da abertura do Festival Palco Giratório, o público demonstrou entusiasmo e apreço pela montagem, aplaudindo calorosamente ao final. No entanto, a estrutura narrativa predominantemente cronológica revelou, em boa parte, uma certa monotonia, carecendo de reviravoltas ou de uma maior inventividade formal.

A opção por uma linearidade quase didática, se por um lado facilita a compreensão da trajetória de Leci Brandão, por outro acaba limitando as possibilidades de experimentação estética. Apenas citar ou não entrar nos conflitos de passagens importantes enfraquece o potencial explosivo dessa trajetória. Como exemplo, a entrada e a permanência da artista no time de compositores da Mangueira e os bastidores mais conflituosos são evitados ou apenas citados, quando poderiam ser os giros de acionamentos de potência dentro do espetáculo.

Outro ponto que merece atenção é a questão da inteligibilidade das falas em determinados momentos do espetáculo. Apesar dos atores demonstrarem grande talento vocal e interpretarem as canções com maestria, em diversas passagens dialogadas suas palavras se tornavam incompreensíveis, seja por problemas acústicos do teatro, falhas nos equipamentos de som ou mesmo pela projeção vocal insuficiente dos intérpretes.

Essa perda parcial das falas compromete a fruição plena da narrativa e dificulta o envolvimento emocional do público com a história. 

Verônica Bonfim, Sérgio Kauffmann e Tay O’Hanna. Foto: Valmyr Ferreira

O elenco, composto por Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sérgio Kauffmann dão conta de todos os personagens. Tay interpreta Leci com muita personalidade, captura a força, a garra e a paixão dessa artista em cada gesto, olhar e inflexão vocal. Sua performance revela as lutas, as alegrias e as dores que moldaram esse percurso. Verônica Bonfim, por sua vez, confere à figura de Dona Lecy uma combinação tocante de doçura e determinação. Sua atuação está carregada da sabedoria e o amor dessa mãe que foi o alicerce e a inspiração constante na vida de Leci.

Sérgio Kauffmann demonstra versatilidade ao encarnar diversos personagens masculinos que cruzaram o caminho de Leci, desde o líder comunitário Zé do Caroço, compositor Cartola, o pai da cantora ou na pele de Exu.

O foco central do espetáculo é celebrar a vida e o legado de Leci Brandão, convidando os espectadores a mergulhar em seu universo pessoal e artístico de forma sensível e empática. Ao adotar essa abordagem, o musical se alinha ao conceito de “ética do cuidado”, proposto pela pesquisadora e ativista Patricia Hill Collins. Essa perspectiva valoriza a empatia, a responsabilidade e a conexão como princípios norteadores na produção e partilha de saberes e narrativas, especialmente quando se trata de histórias de mulheres negras.

Ao contar a trajetória de Leci Brandão, o espetáculo busca estabelecer uma relação de proximidade e afeto com o público, convidando-o a se reconhecer e se emocionar com as lutas, as alegrias e as conquistas dessa artista. Essa abordagem empática permite que a plateia se conecte com a humanidade de Leci, entendendo suas escolhas, seus desafios e seus triunfos a partir de uma perspectiva de cuidado e solidariedade.

Já a representação da religiosidade de matriz africana no espetáculo é um ponto que demanda reflexão. Incluir elementos da religiosidade afro-brasileira no musical é uma escolha corajosa e necessária, contribuindo para a valorização e visibilidade das tradições.

No entanto, mesmo que os envolvidos na montagem tenham um conhecimento profundo das questões religiosas, nem sempre esse entendimento é traduzido de forma plena no palco. 

Apesar das ressalvas apontadas, Leci Brandão – Na Palma da Mão permanece como um espetáculo de grande relevância e necessidade, celebrando a trajetória de uma artista fundamental para a cultura brasileira. Ao colocar no centro dos holofotes a história de uma mulher negra que enfrentou e desafiou os preconceitos e as opressões de seu tempo, o musical contribui significativamente para a construção de uma narrativa mais plural.

 

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