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Farofa do Processo
Algumas anotações
Primeira parte

Intensa movimentação na Oswald durante os dias da Forafa do Processo. foto: Ivana Moura

Gabs Ambròzia, da Corpo Rastreado. Foto: Ivana Moura

Muitas possibilidades de encontro

“Farofa, farofa, farofa’, esse anúncio feito ao megafone por Gabs Ambròzia, uma das figuras da Corpo Rastreado, projeta a natureza lúdica e inclusiva do evento e vai continuar ecoando na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, e na cabeça de muita gente. De 2 a 10 de março, foram muitos gestos políticos de grupos, spoilers do bem de espetáculos em andamento, conversas, armações para insurgências. Momentos de pura festa e a lembrança que estamos em guerra por existir… a luta continua. Muitas vezes o clima era tão festivo que senti a vibração do carnaval de Olinda de finais das manhãs. Esses processos, sonhos em construção, todos legítimos cada qual do seu jeito, repercutem e seguem. Ficam imagens ricas e vibrantes.

No Teatro de Contêiner Mungunzá, um ponto da Farofa do Processo desse ano (o outro era a Casa do Povo), vi uma correnteza de gente a se deslocar do lado de fora empurrada pela chuva, enquanto lá dentro do teatro os atores buscavam motivos para expressar a vida e entender até onde vai a arte… Aporia.

Nessa atmosfera de engajamento crítico e criativo, aliades para a rebelião, bandos em manifestação, corpos em combate refletem um espírito de resistência e a busca por transformações sociais. Lindo ver o fluxo desses dias na Oswald, das salas cheias e sessões esgotadas para um batimento suave. Celebração do gesto artístico, da reflexão crítica e da ação coletiva. Encantamento especial na Farofada, almoço preparado e distribuído pela equipe da Corpo Rastreado para alimentar estômagos e ideias, refeição compartilhada para aprontar para outros combates. Uma dramaturgia especial esses almoços de conversas ao pé do ouvido e gargalhadas soltas.

Esse território de encontros, espaço tão rico de diálogo onde a fricção de linguagens da cena acontece com força em aberturas meios e conclusões de processos, espetáculos revisitados. Eita danou-se, como diz Marcelino Freire, escritor que foi prestigiar um dos processos, o da turma do Carrossel.

O domingo de programação intensa já chega com gostinho de quero mais. “Farofa, Farofa, Farofa!”. Último dia dessa edição.

Um salve para o Boteco Crítico, do projeto Arquipélago, que em três encontros botou na prática a experiência de pensar/repesar/ fazer/refazer a crítica em outros patamares, mais democráticos, numa discussão honesta que também está buscando seus caminhos, de reimaginar o papel da crítica cultural na contemporaneidade. Desde o nome, a tentativa é desmitificar a crítica, aproximando-a de quem chegou junto.

Compartilhar, uma palavra quase mantra da Farofa do Processo tem poder.  

Acompanhei algumas ações da Farofa do Processo e faço alguns comentários a partir dos que acompanhei.

Equipe do espetáculo Magnólia, em processo de construção. Foto: Ivana Moura

Marina Esteves e sua equipe (idealização e atuação @vimvermarina, direção musical @daninega, texto: @lucasmouradr, dramaturgia @vimvermarina e @lucasmouradr , Banda da Zé Pretinha: @vinisampaioofficial @djkmina @larioliveiratp @gisahspreta )
apresentaram o processo criativo do espetáculo Magnólia, uma peça que enfrenta as opressões na conjugação de raça, gênero, e identidade com narrativa afro-futurista.

A inspiração na música Magnólia e no álbum A Tábua de Esmeralda de Jorge Benjor adiciona camadas intertextuais da canção que tematiza alquimia, espiritualidade e transformação. Foi com esse álbum lançado em 1974 que Benjor consolidou sua posição como um dos músicos mais febris do Brasil.

A personagem central, Magnólia, vivida por Marina, simboliza a resistência, luta e avanços frente às opressões sistêmicas. O sonho como recurso narrativo funciona como estratégia estilística e como uma poderosa ferramenta de exploração e manifestação da subjetividade da personagem.

Para apresentar a jornada de Magnólia, que a leva além dos limites terrestres, a atriz apresentou o roteiro cantado com uma banda ao vivo. Forte e poética essa demonstração do processo, repleta do impacto da diáspora africana e da posição de que as grandes e pequenas transformações são protagonizadas pelas mulheres negras.

Éden, direção de Tarina Quelho . Foto: Ivana Moura

A peça Éden, apresentada na Farofa do Processo, bateu como uma obra provocadora para explorar assuntos como a crise climática, o esgotamento de recursos materiais e subjetivos, e a busca por significado em um mundo cada vez mais desencantado. A menção de que a peça  é uma obra de cli-fi (ficção climática) sugere uma intenção de engajar o público em uma reflexão sobre as consequências ambientais de nossas ações e escolhas.

A produção disse que o processo de montagem está na sua etapa final e na cena vai utilizar mais de 10 mil sacos plásticos no cenário, o que me pareceu uma tentativa de chamar atenção para o consumo excessivo e a poluição e criar uma atmosfera visualmente impactante que serve como pano de fundo para a narrativa distópica. Na sessão da Farofa, com apenas uma amostra desse cenário, as montanhas de sacos plásticos foram apenas imaginadas pela plateia.

O deboche e a descrença são manipulados pelo elenco, fazendo com que a peça circule entre o cinismo e um humor corrosivo. Essas escolhas podem desafiar a plateia, gerando desconforto em algumas pessoas. A minha percepção viajou do Éden ao inferno.  

A diretora Tarina Quelho ao mencionar que a obra transita entre teatro, dança e performance, e que busca borrar os limites entre teoria, (auto)ficção e cena, destaca que ela está sempre arriscando novas possibilidades na cena.

Éden pula de um assunto ao outro sem parcimônia, ensaia práticas sexuais e conecta com conceitos do teatro e da performance, fala de relações, pensa em identidade, dá pitaco sobre o que é pertencimento em um mundo em crise.

A ideia de que a arte não pode alcançar todos os públicos é pertinente, e isso fica mais evidente em algumas obras. Éden, que parece projetada para atrair um público mais jovem, talvez mais alinhado com as plataformas digitais como o TikTok, por sua agilidade, leveza e abordagem irreverente. Isso confere um valor artístico e  impacto de sua mensagem. Só não é para todos; como nada, aliás.

Serra Pelada. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

O teatro de Dal Farra procura questionar a ética do poder, testando limites humanos e apontando novas possibilidade de olhar fatos, eventos, ideias, pensamentos. O trabalho em processo Serra Pelada – Boca de Ouro – Xingu, ainda em estágio inicial, se posiciona – evidentemente – contra a lógica extrativista tanto em seu tema quanto em sua metodologia. Investiga a natureza da arte, do consumo e do olhar. Em um primeiro momento essa obra em andamento chega friccionando as imagens emblemáticas de Sebastião Salgado, a peça/filme Boca de Ouro de Nelson Rodrigues, carrega o Googlemaps para levar para uns lugares de difícil acesso e diz que está cansado de alegoria.

A obra critica o capitalismo em todas as estruturas e examina os sistemas de dominação colonial presentes em Nelson Rodrigues e se arrisca a reinterpretar a obra do autor de Boca de Ouro à luz de perspectivas contemporâneas,. Vamos ver no que vai dar. O processo ainda está no seu estágio inicial de produção da @tablado_sp, (nesse trabalho tem financiamento da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo), que compartilhou na Farofa do Processo as motivações e inquietações que impulsionam a peça.

Os atores @flowkountouriotis e @silva_monalisa_ fizeram uma leitura interpretativa da peça em andamento, que tem previsão de estreia para janeiro de 2025.

Figueiredo, espetáculo com Pedro Vilela. Foto: Divulgação

O espetáculo Figueiredo se propõe a mergulhar nas complexas camadas da história brasileira, especialmente no que concerne às violências cometidas contra os povos indígenas. A peça, apresentada por Pedro Vilela, com um texto poderoso em mãos e o auxílio de imagens projetadas, associa teatro com ato de memória e resistência.

A dramaturgia fez opção pela leitura direta dos fatos, com projeção de vídeos de arquivo e a utilização de pedaços de madeira no palco. No decorrer do espetáculo os espaços de ocupação são reduzidos como metáfora para a restrição e a asfixia cultural e física vivenciadas pelos povos originários ao longo da história.

A montagem é baseada no Relatório Figueiredo, de aproximadamente 7.000 páginas, que detalha uma série de atrocidades cometidas contra os povos indígenas do Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985). Esse documento leva o nome de Jader Figueiredo Correia de Oliveira, o procurador que foi encarregado de investigar as denúncias de violências e injustiças contra os indígenas.

A política de desenvolvimento nacional implementada na época priorizava a expansão econômica a qualquer custo. A qualquer custo. Então, os projetos de infraestrutura, como a construção de rodovias e represas, expansão da fronteira agrícola, passaram por cima dos povos indígenas, que tiveram territórios frequentemente invadidos e expropriados. E forçaram a barra com a “política  integracionista” para os indígenas, com violações dos direitos e apagamentos de identidades. Um verdadeiro horror.

O Documento Figueiredo foi fruto de uma investigação que durou cerca de três anos, iniciada em 1963, e revelou uma série de crimes contra os indígenas, incluindo genocídios (muitos de autoria de funcionários do governo ou fazendeiros e garimpeiros acobertados pelo governo), casos de tortura, violência física e sexual , escravidão, deslocamento forçado.

Esse documento ficou desaparecido por décadas, sendo redescoberto apenas em 2013, durante o governo de Dilma Rousseff, no contexto marcado pela atuação da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012. A CNV reacendeu o debate sobre as violações dos direitos dos povos indígenas durante a ditadura e reforçou a necessidade de políticas de reparação e justiça.

Levar para a cena esse documento é importante para o debate público, lembrando que a memória pode ser uma ferramenta viva de conscientização e transformação social.

A reação emotiva por parte do plateia, muitos aos prantos ao final da apresentação, atesta a capacidade do espetáculo de tocar em feridas abertas da sociedade brasileira. A força do texto e da dramaturgia, aliada às imagens e a simbologia do cenário, criam uma experiência que pode contribuir com o debate para mudanças.

O espetáculo é um documento importante para falar do Brasil, de seu passado, presente e futuro, mas ainda há espaço para um tratamento de encenação, para que Figueiredo evolua, podendo criar novas formas de interação com o plateia, utilizar elementos multimídia adicionais, ou procedimentos cênicas que aprofundem ainda mais o impacto da obra.

Há muito mais para falar sobre essa experiência da Farofa do Processo. Vamos tentar nos próximos posts.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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