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Poética da ferocidade
Crítica da peça Mulheres sonharam cavalos

Mulheres sonharam cavalos, com texto de Daniel Veronese. Fotos: Ivana Moura

Tradução da peça e direção são assinados por Malú Bazán .

Não existe amor em Mulheres sonharam cavalos. Nem compaixão. A rudeza das relações aproxima-se do animalesco e qualquer verniz só busca disfarçar a crueza do existir. Com texto de Daniel Veronese, traduzido e dirigido por Malú Bazán, o potente jogo cênico, dos corpos com partituras bem-marcadas e uma movimentação frenética, espelha com contundência o machismo, o sexismo, a injúria sexual, a dependência emocional e como ações do microcosmo se entrelaçam nas práticas ditatoriais de ontem e de hoje.

É pancada. Mas com todas as imagens da violência banalizadas e mais que isso, naturalizadas, seria preciso levar para cena outros procedimentos de apelo sensorial ou da memória imagética para escancarar o horror da ferocidade. Essa agressividade é trabalhada numa dimensão poderosa que vai do sussurro espectral, passando por relincho equino, ao pesadelo fantasmagórico.

A encenação está repleta de metáforas e reflete uma tenebrosa virulência cotidiana, vulgarizada na dinâmica de uma família de classe média. A peça parte de um acontecimento prosaico, o encontro entre três irmãos e suas companheiras para uma refeição na residência de um deles. O gatilho do conflito é o fechamento de uma empresa familiar, administrada por um deles.

Ranier (Bruno Perillo) anuncia, com desapreço, que sua companheira Ulrika (Rita Pisano) escreveu um roteiro de cinema. No projeto, a roteirista chama a atenção para a personagem fictícia que diz “lá fora há um desfile de policiais equestres sobre seus cavalos”.

Enquanto o elenco se desloca energeticamente pelo palco, os estímulos da cena inundam o imaginário da plateia com o autoritarismo que vai e volta na América Latina, de desejos inconfessáveis e livros de receitas sumidos, que mais parecem cemitérios ocultos das carcaças dos desaparecidos.

As atrizes Anna Toledo, Erica Montanheiro, Rita Pisano,

Nem tudo é dito explicitamente. Entre os quais, os mecanismos ditatoriais encobertos, como a prática de adotar crianças subtraídas de seus pais militantes. Lucera (Erica Montanheiro) suspeita ser uma dessas meninas que teve a infância e o histórico familiar apagados. Ela é casada com o irmão mais velho, Ivan (Gustavo Trestini). Há uma peleja de incomunicabilidade, equalizada com perspicácia pela encenação.

A peça fala de diferentes tipos de crueldade. No espaço privado, o homem desvencilha-se da fachada social e exibe o ser mais animalesco. A brutalidade, a “cavalice”, as patadas, as frases agressivas ganham proporção de barbárie no caso do irmão mais jovem, Roger (Haroldo Miklos) e Bettina (Anna Toledo), mais velha do que ele 20 anos. O embate entre os dois é uma sessão de tortura e submissão. A encenadora acentua esse aspecto constrangedor ampliando a escala desse confronto.

Malú Bazán é muito hábil ao expor esses quadros, onde a bestialidade é a linguagem da fala, seca e ríspida e os gestos beligerantes são obliterados ou deslocados causando mais impacto que a força-bruta realística. É abordagem dura da violência da sociedade.

Mulheres sonharam cavalos conduz por um novelo de cólera, ira, rancor alimentados durante muito tempo nos subterrâneos. É um trabalho difícil. Provoca uma dor especial. A direção aponta atalhos, mas sabota a expectativa da plateia.

 Lucera (Erica Montanheiro) e Ivan (Gustavo Trestini).

Parece que estou andando em círculos. Há saídas?!
Uma mulher aparentemente frágil. Ela esconde algo. Aliás, todos ali dissimulam. Há uma guerra no ar. A aparente mais frágil pode ser o elemento de vingança ou de reparação.
É preciso perfurar algumas camadas para entender isso.
Vamos por outro caminho, como um labirinto. Visualizar múltiplas portas. Elas podem traçar percursos bem distintos. Ou não…

Depois de anos engolindo ofensas, Lucera vomita: “Por que não você?
Existe apenas uma forma de violência? Existe um novo tipo de violência no ar. Obviamente, eu nunca mataria. Não sou o tipo de pessoa que faria”.

No filme estadunidense de ficção científica Minority Report, lançado em 2002, um departamento de polícia especializada chamado “Pré-Crime”, situado no ano de 2054, apreende criminosos com base no aviso prévio fornecido por três videntes chamados “precogs”. Estrelado por Tom Cruise e dirigido por Steven Spielberg, o roteiro é baseado no conto homônimo de Philip K. Dick. No caso, paranormais conseguem visualizar antecipadamente quem praticará crimes e a pessoa identificada é punida antes de cometer o delito.

Esse desejo de controle já percorreu outras veredas pseudocientíficas.
Identificar e neutralizar um suposto criminoso – a determinação da personalidade criminosa – antes de praticar o fato já foi / é usado por meio de argumentos biológicos, neurocientíficos e estatísticos. Não deixa de ser uma pretensão totalitária.

No século XVI, o ocultista, astrólogo e alquimista italiano Giovanni Battista Della Porta investiu nos estudos da fisiognomia, para analisar a personalidade das pessoas a partir de traços da face humana e do desenho craniano. Seguindo a mesma trilha, o filósofo e teólogo suíço Johan Kaspar Lavater atestou, no século XVIII, que a propensão agressiva ou dissimulada estava na cara do indivíduo.

O médico alemão Franz Joseph Gall deu grande impulso a chamada frenologia, no início do século XIX. Pelo formato da cabeça seria possível identificar a tendência criminosa da criatura. Entusiasta da frenologia, o linguista e pedagogo espanhol Mariano Cubí Y Soler, defendia, em meados do século XIX, que seria possível detectar o crânio dos homicidas. Foi o médico, antropólogo e jurista Cesare Lombroso quem sistematizou e desenvolveu em detalhes as bases dos fenômenos criminológicos a partir de fatores biológicos.

A concepção de que existem seres humanos biologicamente inferiores foi propagandeada com status científico. O antropólogo e matemático inglês Francis Galton foi quem cunhou o termo eugenia e a ideia de formar uma raça superior foi assumida pelos seguidores de Galton. Sabemos no que isso deu.

Na pergunta de Lucera “Por que não você?”, Daniel Veronese potencializa a trajetória desses controles da pseudociência e também os rastros, os vestígios da colonização e suas consequências.

Mulheres sonharam cavalos. foto Ivana Moura

Há muitas pontas soltas na vida das figuras da peça. Essas lacunas, esses buracos, essas informações dadas a conta-gotas criam uma tensão do adiamento, um certo incômodo para montar os encaixes do tabuleiro. São materiais ricos para os atores trabalharem as vísceras das personagens. Cada atriz / ator elabora as qualidades de suas personagens humanas e suas relações desumanas

São muitos desejos ocultos. Elos quebrados. Com os diálogos, o lugar vai ficando cada vez mais claustrofóbico. O espaço alternativo em que é realizada essa primeira temporada, uma sala multiuso no bairro de Santa Cecília parece que vai diminuindo de tamanho quando o ar fica mais pesado, a densidade dramática vai crescendo.

Mulheres sonharam cavalos estreou em Buenos Aires em 2001 e ficou em cartaz até 2004. A revisitação à memória da ditadura na Argentina, na América Latina são temas recorrentes dos seus dramaturgos. Veronese diz que quando escreve precisa exorcizar algo. Talvez os criadores do teatro precisem exorcizar lugares sinistros.

Com direção de Ivan Sugahara e tradução de Letícia Isnard, Mulheres sonharam cavalos teve uma montagem no Rio de Janeiro, em 2011, com elenco formado por Analu Prestes, Elisa Pinheiro, Isaac Bernat, José Karini, Letícia Isnard e Saulo Rodrigues.

Mulheres sonharam cavalos tem elenco formado por Anna Toledo, Erica Montanheiro, Rita Pisano, Bruno Perillo, Gustavo Trestini e Haroldo Miklos.

Quem sofre a violência pode ser comparado a uma represa (aparentemente) controlada, mas que um dia poderá explodir. Bazán é sagaz no seu processo de extrair o quase blasé de algumas situações, para iluminar a raiz da perversão. As quebras, as pausas, a dosagem do grau de ferino dos diálogos abrilhantam o texto. A movimentação, a partitura dos corpos, a linguagem visual, a emoção do ator, as opções de ir na contramão dos procedimentos naturalísticos e a simultaneidade da cena compõem um mosaico duro para falar da nossa (des)humanidade com contundência. E um pouco de humor, cáustico, mas humor.

Como uma perita a diretora disseca aqueles sentimentos censurados e amorais, que estão contidos nas personagens. E é no teatro, nesse encontro ao vivo, que essas experiências estranhas e por vezes devastadoras são possíveis. Poética e crueldades se ajustam num abraço intrigante. Apesar de toda a violência, há um escape onírico.

Mulheres sonharam cavalos está em cartaz no “º Andar” (Rua Dr. Gabriel dos Santos, 30 – 2º andar, Santa Cecília, São Paulo) até segunda-feira, 6 de dezembro.

Ficha Técnica

Texto de Daniel Veronese.
Tradução e Direção de Malú Bazán.
Elenco: Anna Toledo, Erica Montanheiro, Rita Pisano, Bruno Perillo, Gustavo Trestini e Haroldo Miklos.
Trilha Sonora: Malú Bazán e Bruno Perillo.
Cenário e Figurinos: Anne Cerutti.
Desenho de Luz: Miló Martins.
Fotografia: Cassandra Mello.
Operação de Luz e Som: Guilherme Soares.
Assistência de Produção e Figurino: Marcelo Leão.
Produção: Anayan Moretto

Serviço

Mulheres Sonharam Cavalos
Temporada: de 13 de novembro a 06 de dezembro, de quinta a segunda, às 20h15
Local: º Andar. Rua Dr. Gabriel dos Santos, 30 – 2º andar, São Paulo – SP
Espaço localizado no segundo andar com acesso por escadas.
Duração: 80 minutos
Lugares: 20
Classificação: Não recomendado para menores de 14 anos
Ingresso: Gratuito – Retirados pelo Sympla
www.oandar.com
Instagram:@o.andar

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É urgente entender as Histórias de Nossa América

Maria Bonita é ficcionalizada pela dramaturga Dione Carlos e ganha leitura com direção de Malú Bazán

O diálogo histórico, social e político das Crônicas de Nuestra América,- escrita por Augusto Boal quando exilado pelo regime militar brasileiro nos anos 1970 – com os dias de hoje são disparadores que acendem reflexões inadiáveis dos atuais processos políticos novamente conturbados com anúncios e atos da repressão. O texto funciona como bússola para o projeto Histórias de nossas Américas, do Coletivo Labirinto, núcleo de pesquisa e criação cênica de São Paulo, que investiga a relação dos sujeitos com o seu panorama social através da dramaturgia latino-americana contemporânea.

Essas pequenas histórias da verve mordaz e bem-humorada de Boal foram escritas entre 1971 e 1976, no exílio forçado do dramaturgo em Buenos Aires, publicadas pelo jornal O PASQUIM, e lançadas em conjunto em 1977. Documento da época obscura das ditaduras, a escritura de Augusto Boal entra em diálogo com uma tendência do teatro contemporâneo de trazer a política do cotidiano para a arte. No programa Histórias de nossas Américas, do Labirinto, pulsa questões sobre as causas que desorientam pessoas e as conduzem a oprimir o outro e a si próprias.

Nesse conjunto de ações continuadas do Coletivo , o projeto Histórias de Nossa América inclui a montagem de dois espetáculos inéditos, a circulação de seu repertório por escolas públicas, um laboratório permanente de pesquisa aberto ao público, a criação e lançamento do site, a primeira edição da Revista impressa O Labirinto e um Ciclo de Leituras Encenadas de dramaturgia latino-americana. A programação começa nesta quarta-feira, 18/11, com a leitura interpretada de Bonita, texto de Dione Carlos, com direção de Malú Bazán, sobre a mulher mais famosa do Cangaço.

O Ciclo de Leituras destaca nove textos de nove países latino-americanos, escritos nos últimos 10 anos e que carregam relações entre os processos estéticos e políticos de cada região. São textos de autores do Uruguai, Peru, Argentina, Colômbia, Chile, Venezuela, Equador, Cuba e Brasil, que traçam um breve retrato da produção dramatúrgica contemporânea na América Latina.

São 9 encontros semanais, em três fases (novembro, janeiro e fevereiro). Cada leitura dramatizada conta com uma direção diferente, potencializando essas dramaturgias em diálogo com a perspectiva estética dos encenadores convidados. Ao final de cada leitura, o Coletivo promove uma reflexão com o público sobre os dispositivos e procedimentos utilizados, temáticas e abordagens.

Os encontros ocorrem às quartas-feiras, às 20h, por uma plataforma de vídeo-chamada. A entrada é gratuita. Para participar, basta preencher breve inscrição (https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScd_5haIRjAFwHDeMW1V43oVT6Pw2hZmD5M61A01Mz0-1jRdA/viewform), disponibilizada nas redes sociais do Coletivo Labirinto (@coletivo.labirinto) no início de cada semana de evento.

A realização desse Ciclo de Leituras Encenadas também envolve a tradução de oito textos teatrais de língua espanhola para a portuguesa, realizada pelos integrantes do Coletivo Labirinto, com revisão da encenadora e tradutora Malú Bazán. Essa compilação é a base para a formação de um acervo digital permanente, que será disponibilizado gratuitamente no site do Coletivo.

O projeto Histórias de Nossa América foi selecionado pela 35ª. Edição do Fomento ao Teatro Para a Cidade de São Paulo, que começa com o Ciclo De Leituras Encenadas e prevê para o primeiro semestre de 2021 a montagem do espetáculo Onde Vivem Os Bárbaros.

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 01 – NOVEMBRO DE 2020

18/11 – BONITA, de Dione Carlos – Brasil (2015); direção: Malú Bazán
A vida de Maria Bonita (1911-1938), sua relação com a sexualidade, a violência e o companheiro Lampião norteiam a trama e apresenta a participação das mulheres no Cangaço.

25/11 – EU QUIS GRITAR, de Tânia Cárdenas Paulsen – Colômbia (2017); direção: Érica Montanheiro
Nina e seu marido. A deterioração da relação do casal e a metamorfose de Nina, depois de  passar por zonas de extrema violência, ela vai se transformando em uma mulher que, pouco a pouco, devora seu esposo.

02/12 – A VIDA EXTRAORDINÁRIA, de Mariano Tenconi Blanco – Argentina (2018); direção: Lavínia Pannunzio
Aurora e Blanca são amigas de uma vida toda. Sem grandes conquistas, histórias trágicas ou aventuras inesquecíveis, Aurora é professora, tem um filho, um amante, um marido. E escreve poesia. Blanca é costureira, mora com a mãe, tem um namorado, depois outro, depois outro, sofre sempre. E também escreve poesia. 

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 02 – JANEIRO DE 2021

20/01 – IF – FESTEJAM A MENTIRA, de Gabriel Calderón – Uruguai (2018); direção: Carlos Canhameiro
Uma família perde o avô e terá dificuldades para lhe dar um enterro decente. Os sobreviventes, carregam a herança de erros e problemas não resolvidos, a acumulação histórica de tudo que é negativo e de tudo que é positivo.

27/01 – SOPA DE TARTARUGA, de Ana Melo – Venezuela (2017); direção: Rudifran Pompeu
Oito venezuelanos se encontram uma noite em um bistrô parisiense. Cada um deles personifica a Venezuela e a carrega como um casco de tartaruga. Mas algo que não esperavam acontece naquela noite. A obra é sobre a migração venezuelana e suas contradições, esperanças e frustrações.

03/02 – A REPÚBLICA ANÁLOGA, de Aristides Vargas – Equador (2010); direção: Dagoberto Feliz
Comédia que foca um grupo de intelectuais que, contrários à realidade que vivem em seu país, decidem formar uma nova república. Esse grande projeto será constantemente prejudicado por pequenos acidentes, entre cômicos e patéticos, que os farão enfrentar a realidade e as dificuldades para construir o país com o qual sempre sonharam.

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 03 – FEVEREIRO DE 2021

24/02 – SÊMEN, de Yunior García Aguilera – Cuba (2012); direção: Joana Dória
Parte do decálogo As 10 Pragas, a trama de Sêmen gira ao redor de uma família disfuncional – uma mãe que já não está mais, um pai anacrônico e duas filhas que veem o assassinato e a prostituição como formas para tentar sair do país. 

03/03 – LAPEL DUVIDE, de Vanessa Vizcarra – Peru (2017); direção: Rubens Velloso
Toda vez que olha para o vazio, Lapel sente vontade de se lançar. É sua condição de nascência. Ele não se sente atraído pela morte, mas pela queda. Ele busca evitar todos os acidentes, mas está cada vez mais difícil. Lapel vive em uma cidade sob um regime político autoritário, com a população insatisfeita, entretanto é difícil rebelar-se.

10/03 – VIENEN POR MI, de Claudia Rodriguez – Chile (2018); direção: Janaína Leite
Com o objetivo é incentivar a biografia de travestis, transgêneros e transexuais, fazendo disso uma ferramenta política para quem ainda não disse nada, a peça é fruto de um devir da artista transgênere Claudia Rodriguez. Vienen Por Mi é um texto de poesia e denúncia, que traz um convite para perturbar a autoridade vigente de forma rude e coreográfica. É um ensaio inesgotável entre arqueologia, maquiagem e filosofia travesti, para propor metáforas que produzem pontes entre imagens e textos de xamãs, deusas, virgens, santas e loucas, num único corpo. Com: Fábia Mirassos.

FICHA TÉCNICA – CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – HISTÓRIAS DE NOSSA AMÉRICA

ELENCO: Abel Xavier, Carol Vidotti, Emilene Gutierrez, Fábia Mirassos, Jhonny Salaberg, Marina Vieira, Ton Ribeiro e Wallyson Mota
DIRETORES CONVIDADOS: Malú Bazan, Érica Montanheiro, Lavínia Pannunzio, Carlos Canhameiro, Rudifran Pompeu, Dagoberto Feliz, Joana Dória, Rubens Velloso e Janaína Leite
AUTORES: Dione Carlos (Brasil), Tânia Cárdenas Paulsen (Colômbia), Mariano Tenconi Blanco (Argentina), Gabriel Calderón (Uruguai), Ana Melo (Venezuela), Aristides Vargas (Equador), Yunior García Aguilera (Cuba), Vanessa Vizcarra (Peru) e Claudia Rodriguez (Chile).
TRADUÇÃO: Coletivo Labirinto e Malú Bazán

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Santos Fofos*

* POR TAY LOPEZ

Terra de Santo, novo espetáculo dos Fofos Encenam, estreia hoje no Sesc Belenzinho. Foto: João Caldas

A querida Yolanda Pollyanna Diniz me deu uma tarefa: escrever algo sobre a estreia do espetáculo Terra de Santo aqui em São Paulo. A primeira resposta foi negativa, pois não sou jornalista, não sou crítico e tenho um afeto muito grande pelos integrantes do grupo Os Fofos Encenam. Portanto, não gostaria de ser leviano com artistas que tanto admiro. Resultado: assisti ao espetáculo, e cá estou eu escrevendo algumas singelas palavras a respeito das emoções que a peça me provocou.

“Nos teus olhos eu vi o mundo inteiro Jesuíno.” É através desta frase que noto estar completamente mergulhado nas palavras de Newton Moreno e percebo-me num local onde só a arte é capaz de nos colocar. Aquele espaço de encantamento e poesia onde nos encontramos com nós mesmos. Logo no começo do espetáculo, somos convidados a entrar no alojamento de um grupo de cortadores de cana e, aos poucos, vamos percebendo o entorno: um radinho sintonizado numa transmissora local, mesas, uma pequena cozinha, um telefone público, um beliche, um grande telhado sobre nossas cabeças e objetos pessoais dispostos como num set de cinema, onde os personagens vão surgindo e fazendo valer toda aquela cenografia detalhista.

O público continua apenas como observador e assim vamos acompanhando a história contada como se estivéssemos mortos num espaço cheio de vida pulsante. Sinto-me assim, pois não existe uma relação direta de interação. Apesar de estarmos muito próximos dos atores, somos invisíveis.

A personagem responsável por nos colocar em contato com um fio de história, que começa a fisgar o espectador através de um anzol bastante carismático é Mariene (Kátia Daher). Com um humor sutil de figuras populares que habitam o universo dos canaviais nos envolvemos no enredo.

Dramaturgia é de Newton Moreno

De acordo com a sinopse, um grupo de mulheres ocupa terras de uma usina canavieira, alegando que é uma propriedade dada em cartório a um santo, espaço sagrado, onde rituais são realizados. A essas terras destinadas à cana elas nomeiam como ‘terra de santo’. As máquinas aproximam-se, mas elas, guardiães do lugar, não deixam as terras. Esse é o eixo principal da peça, e a partir dele se dá uma viagem poética e uma conversa com ‘mortos da sociedade da cana’, outras famílias e etnias e suas histórias de resistência ou rompimentos com espaços sagrados, tradições e fé.

Atravessamos uma porta e vamos para um “quintal”, onde a partir de agora, não me sinto mais como um morto que passa desapercebido. Somos olhados diretamente nos olhos e nos sentimos cheios de bençãos pelas figuras que nos recebem na cena. São quatro Santeiras (Carol Brada, Cris Rocha, Erica Montanheiro e Simone Evaristo). Pegam em nossas mãos e nos conduzem para a acomodação em torno do tablado que se apresenta em nossa frente. A Terra de Santo. Fica para trás a ambiência de um espaço coloquial e agora nos encontramos num cenário com cheiros, cânticos místicos, penumbras e luz de velas, típicas de um templo sagrado. Nesse templo, as Santeiras vão, ora representando, ora incorporando, ora apenas nos apresentando a história de seus antepassados a partir dos mortos que fazem, solenemente, ressurgir no espaço. Um passeio, através dos séculos, pela brasilidade que hoje conhecemos, apresentadas como um panorama sacro/social das histórias contadas por índios, judeus, cristãos e negros. História que nos chega aos olhos pela bela proposição de encenação dos diretores Newton Moreno e Fernando Neves.

São essas mães, as Santeiras, responsáveis por nos nos colocar diretamente em contato com nossa própria ancestralidade, formação social, econômica e religiosa. Um espetacular retrato histórico e filosófico do Brasil muito bem alinhavado por um dramaturgo que dispensa elogios. Surgem então metáforas que nos obrigam a ver o mundo através de nossos próprios olhos e que também nos fazem percorrer os labirintos de nosso pensamento em forma de sinapses constantes que trazem à tona as nossas memórias pessoais e despertam um confronto direto com o que hoje chamamos de homem contemporâneo.

Se me percebo um morto invisível no primeiro movimento do espetáculo, me percebo um morto com voz no segundo e ao blackout final resta a pergunta: onde está a minha terra sagrada e o que fazer para que ela não seja destruída? Sim. As reflexões políticas propostas pelo poético espetáculo do grupo de teatro Os Fofos Encenam me põem em contato com algo mais amplo do que a contemplação de uma trajetória épica/trágica de um personagem em busca de sua completude. Terra de Santo nos provoca um dilatar da pupila.

Um elenco, sem dúvidas talentoso, nos presenteia com uma obra que transcende o ato teatral. A pesquisa e processo colaborativo deste grupo inquieto de artistas é bastante perceptível, dando extrema propriedade à toda equipe a respeito daquilo que está sendo dito no sagrado espaço do fazer teatral. Se em Assombrações do Recife Velho, me sinto como uma criança perante o medo das almas que nos assombram e em Memória da Cana, num diálogo bastante intenso com o Pai; em Terra de Santo, me vejo tendo uma sincera e silenciosa conversa com a grande Mãe que nos gerou. Colocando-me num embate direto com a maturidade e com o reconhecimento de uma fertilidade espiritual que nos habita e nos faz caminhar. Colocando-me frente aquilo que nos constrói ou nos destrói.

* texto do ator Tay Lopez. Ele viu ontem uma apresentação só para convidados da peça Terra de santo, do grupo Os fofos encenam. A montagem entra em cartaz hoje, no Sesc Belenzinho.

Serviço:
Terra de santo, da Cia Os Fofos Encenam
Quando: hoje, às 19h. Amanhã (14), às 16h30.
Temporada: terças e quartas-feiras, às 20h30. Sábados, às 21h. Domingos, às 17h. (Exceto dia 28/10 – Unidade fechada ) até 11/11.
Onde: Sesc Belenzinho, São Paulo
Quanto: R$ 24 e R$ 12

Montagem fica em cartaz no Sesc Belenzinho até novembro

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