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A reinvenção de Canudos para além do massacre
Crítica de Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo

Rodrigo Mercadante (Euclides da Cunha), Odília Nunes e Dinho LIma Flor (Conselheiro). Fotos: Alécio Cezar / Divulgação

PRÓLOGO

A temporada de Restinga de Canudos foi curtíssima, de 14 de março a 27 de abril, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Temporada com ingressos totalmente esgotados. Ora, direis: “Mas é o tempo padrão do Sesc para as temporadas atualmente”. Foi curtíssima, repito. Então gestores de instituições, curadores, gente que decide quem vai existir nos palcos e nos festivais, pessoas de pequenos médios e grandes poderes da cena teatral brasileira por favor, por gentileza, programem Restinga de Canudos no seu domínio. A circulação deste espetáculo por diferentes regiões do país pode possibilitar que outros públicos estabeleçam suas próprias conexões com esta potente releitura de nossa história coletiva.

Agora que já insinuei o tom, digo que assisti ao espetáculo da Cia do Tijolo três vezes. Assistiria mais três se tivesse ficado mais um período em São Paulo. Essa trupe – que tem como núcleo aderente (só para fazer contraste com a ideia de núcleo duro) Dinho Lima Flor, pernambucano de Tacaimbó, o mineiro Rodrigo Mercadante e a paulista Karen Menatti faz uma das coisas que mais gosto nas artes cênicas. Pois, o teatro, tão generoso que é, ganha no corpo e no espírito desse bando muitas configurações. O processo para o grupo é precioso, tanto ou quanto o resultado final. E com isso a encenação recebe muitos contornos ao longo da temporada. Dinho Lima Flor acrescenta e tira coisas a partir do embate afetivo com o público.

Um espetáculo do Tijolo nunca é o mesmo na estreia e no final da temporada. Haverá quem ache isso ruim, quem tenha aquele pensamento preso de que essa arte viva — viva! — poderia ficar guardada, imutável, dentro de uma caixa (mesmo que seja uma caixa cênica). Portanto, e daí?

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Em Guará Vermelha, peça anterior do Tijolo, a atriz pernambucana Odília Nunes insiste: “Aqui você tem tempo”. E o elenco entoa a música de Jonathan Silva para ninguém ter dúvidas: “Desacelera o passo, dance fora do compasso, bem devagarinho sem fazer estardalhaço”.

Esse é um dos marcadores da companhia tão paulista (pois sua sede é em sp) quanto mineira e nordestina e principalmente brasileira, de uma brasilidade ossobuco. O tempo se dilata em suas encenações. Mas eles são exigentes para que xs camaradxs se tornem presentes no tempo presente.

Público de uma das sessões de Restinga de Canudos

As professoras (Karen Menatti e Odília Nunes) lembram que em Canudos tinha escola, fato pouco conhecido

A professora Silvia Adoue participou da temporada comentando e criando pontes entre acontecimentos

No teatro contemporâneo brasileiro, poucas companhias têm demonstrado tanta persistência e coerência na investigação de nossa memória histórica quanto a Cia do Tijolo. Restinga de Canudos marca o ápice desse percurso investigativo, propondo uma radical inversão de perspectiva sobre um dos episódios mais traumáticos da formação republicana brasileira. A montagem emerge como uma escavação poética dos escombros submersos do Açude de Cocorobó, onde jazem sepultadas as ruínas físicas da comunidade de Canudos, mas sobretudo as vozes e histórias que a historiografia oficial e mesmo a literatura canônica silenciaram.

A montagem desloca o foco narrativo do já exaustivamente documentado massacre final para o que há de mais subversivo na história de Canudos: a vida cotidiana de uma comunidade que ousou existir segundo seus próprios termos, à margem das imposições do nascente estado republicano. Tal escolha cênica constitui um posicionamento ético-político deliberado, que reinterpreta a própria compreensão do movimento liderado por Antônio Conselheiro.

A dramaturgia construída por Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante opera uma delicada tessitura entre diferentes temporalidades. Ao eleger duas professoras (Karen Menatti, Odília Nunes) como fios condutores da narrativa, a peça estabelece uma ponte entre presente e passado, confrontando o público com uma pergunta inescapável: o que poderia nos ensinar hoje a experiência comunitária de Canudos, para além da narrativa do martírio?

Há uma evidente intenção benjaminiana nesta abordagem. Walter Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito de História, propõe que arrancar a tradição do conformismo é tarefa das gerações presentes. Restinga de Canudos parece responder a este chamado, escovando a história a contrapelo para resgatar as potências revolucionárias que o discurso historiográfico dominante soterrou. A professora e pesquisadora Silvia Adoue (Unesp e Florestan Fernandes), que atuou durante a temporada como mediadora entre o público e os acontecimentos encenados, personifica essa consciência histórica que busca romper com a linearidade do tempo homogêneo e vazio da narrativa oficial.

A peça evita habilmente tanto a monumentalização do heroísmo de Conselheiro quanto a vitimização melodramática dos massacrados. Em vez disso, oferece uma composição coral onde ganham destaque as micropolíticas do cotidiano: as relações de trabalho, as práticas religiosas, a educação, as festas. Nesta perspectiva, Canudos emerge enquanto laboratório social interrompido pela violência de Estado, superando a noção de excepcionalidade condenada ao fracasso.

Os bambus da festa

Os bambus da guerra

Danilo Nonato, na cena em que tenta fugir dos tiros

Na direção de Dinho Lima Flor, observa-se uma notável economia de recursos a serviço de uma poderosa construção metafórica. O espaço cênico, concebido pela própria companhia em colaboração com Douglas Vendramini, transforma o palco em plataforma arqueológica onde objetos, corpos e memórias são desenterrados das águas do tempo.

A cenografia evita o caminho fácil da reconstituição histórica realista, optando por uma abstração que remete simultaneamente à aridez do sertão baiano e à liquidez da memória submergida. Os objetos cênicos possuem qualidade metamórfica, assumindo diferentes funções ao longo da narrativa: um mesmo elemento,  – como por exemplo os bambus – ora funciona como ferramenta de trabalho, ora uma arma, ora um objeto ritual. Esta pluralidade significativa material ecoa a própria proposta dramatúrgica de multiplicidade de perspectivas.

O trabalho corporal desenvolvido sob orientação de Viviane Ferreira requer particular atenção. O elenco demonstra impressionante versatilidade ao compor diferentes tipos sociais e animais sem recorrer a estereótipos, apresentando corpos marcados pelas experiências histórico-sociais específicas: o trabalho, a devoção, a resistência. O conjunto formado por Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai e Vanessa Petroncari entrega uma performance coletiva potente, onde Jaque e Danilo injetam uma energia juvenil vibrante às suas composições. Há uma corporalidade sertaneja peculiar sendo investigada aqui, que se manifesta tanto nos momentos de tensão dramática quanto nas sequências de celebração e ritos religiosos.

A iluminação desenhada coletivamente pela companhia e por Rafael Araújo é elemento crucial para a construção da temporalidade dilatada do espetáculo. O jogo entre claridade ofuscante – remetendo ao sol inclemente do sertão – e penumbra que evoca o fundo do açude articula diferentes planos narrativos, permitindo transições fluidas entre os tempos históricos.

Músicos do espetáculo

Jonathan Silva, autor das músicas originais

A musicalidade em Restinga de Canudos funciona como alicerce fundamental da construção dramatúrgica. Executadas ao vivo pelo quarteto de músicos-atores – Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva e Juh Vieira – as composições originais de Jonathan Silva resgatam elementos sonoros da tradição nordestina e os transformam através de um diálogo com referências atuais.

Os cantos coletivos assumem função reminiscente dos coros gregos, comentando a ação, amplificando tensões e estabelecendo o substrato mítico-religioso que permeia a experiência histórica de Canudos. O tratamento vocal explorando timbres rústicos e técnicas de canto popular confere autenticidade ao tecido sonoro do espetáculo.

Essa trato musical aponta para uma compreensão profunda do que Mikhail Bakhtin denominaria “cultura popular carnavalesca” – aquela dimensão das práticas culturais populares que, ao mesmo tempo que incorpora elementos religiosos e tradicionais, subverte-os em potência transformadora e criativa. A religiosidade de Canudos, longe de ser apresentada como obscurantismo ou alienação, aparece em sua dimensão libertadora e como base para sociabilidades alternativas.

Dinho Lima Flor

Rodrigo Mercadante ao centro 

É notável como Restinga de Canudos se inscreve no campo do teatro político contemporâneo sem incorrer nos vícios comuns do gênero – como o didatismo excessivamente simplificador ou a abstração formal desconectada da realidade social. A peça estabelece um diálogo produtivo com a tradição do teatro épico brechtiano, incorporando procedimentos de distanciamento crítico e historicização, mas o faz sem abdicar da potência afetiva e da intensidade dramática dos enfrentamentos encenados.

A opção por privilegiar o olhar das professoras como mediadoras da narrativa carrega a filiação do projeto à pedagogia crítica de Paulo Freire, referência explícita no percurso da Cia do Tijolo. Esta escolha permite estabelecer um campo de tensão produtivo entre memória e história, entre experiência vivida e conhecimento sistematizado. O espetáculo materializa o que Freire chamaria de “pedagogia da pergunta”, convocando o espectador não à absorção passiva de informações históricas, mas ao questionamento ativo de suas próprias concepções sobre o passado e o presente brasileiros.

Restinga de Canudos abraça a complexidade da contradição sem recorrer a simplificações maniqueístas. Não há, aqui, heróis imaculados ou vilões caricatos, mas seres humanos concretos enfrentando as tensões de seu tempo histórico.

Entre ruínas e utopias: a atualidade implacável de Canudos

Uma grande virtude de Restinga de Canudos é sua capacidade de fazer emergir, da aparente especificidade histórica do evento retratado, questões de contundente atualidade. Ao deslocar o foco do espetáculo do massacre final para a construção cotidiana da comunidade, a montagem permite que reconheçamos no experimento de Canudos não um episódio encerrado no passado, mas um laboratório social cujas lições permanecem vivas e urgentes.

A construção cênica da experiência educacional desenvolvida em Canudos, através das professoras que protagonizam a narrativa, estabelece conexões poderosas com debates contemporâneos sobre educação libertadora e descolonização do conhecimento. A comunidade de Belo Monte aparece, assim, como precursora de movimentos sociais atuais, antecipando em sua prática questões como a autogestão, a soberania alimentar e a resistência territorial.

Há uma sutil analogia entre o afogamento literal de Canudos sob as águas do açude – ato simbólico de apagamento da memória coletiva – e os processos contemporâneos de silenciamento e invisibilização das experiências populares de resistência. O espetáculo nos confronta com a persistente incapacidade da sociedade brasileira em reconhecer e valorizar as formas de organização social que emergem das classes populares, além da violência sistemática empregada para suprimi-las.

Restinga de Canudos deixa não o conforto da catarse, mas a inquietação produtiva de quem se depara com a permanência do passado no presente. O espetáculo realiza, dessa forma, o propósito nobre do teatro político: não oferecer conclusões definitivas, mas abalar convicções estabelecidas, provocar deslocamentos de perspectiva e estimular um novo olhar sobre realidades que julgávamos conhecer.

Na atual conjuntura brasileira, marcada por intensas disputas em torno da memória histórica e dos projetos de futuro, Restinga de Canudos emerge como uma intervenção necessária e corajosa. A Cia do Tijolo, com sua trajetória de investigação das matrizes populares da cultura brasileira, consolida-se como um dos coletivos teatrais mais relevantes e instigantes do cenário nacional. Seus espetáculos constituem verdadeiros acontecimentos de pensamento que ampliam as fronteiras do possível, tanto no campo artístico quanto no político.

Por fim, é preciso reconhecer que Restinga de Canudos realiza plenamente aquilo que Giorgio Agamben define como a tarefa do contemporâneo: fixar o olhar em seu tempo não para perceber suas luzes, mas para contemplar suas sombras; não para confirmar o já sabido, mas para revelar o que permanece obscurecido pela narrativa dominante. Nesse sentido, a montagem constitui um gesto político no presente – uma intervenção que, ao restituir vida às vozes submersas de Canudos, convida-nos a imaginar outras formas possíveis de comunidade e existência coletiva.

Tudo isso ainda diz muito pouco sobre a obra. Muito a refletir. Outros textos ficam para a próxima temporada. 

FICHA TÉCNICA

Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur Mattar
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Você está me ouvindo?
Isso é um estrondo estético-político
Crítica: Pai contra mãe

Aysha Nascimento e Flávio Rodrigues em cena de Pai contra mãe ou Você está me ouvindo? Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Nem todos compreendem em profundidade palavras como atroz e impiedoso quando se referem ao arcabouço do racismo entranhado na sociedade brasileira. E não é uma questão de cognição. (Ou é???) De todo modo, o entendimento não atravessou o corpo (da branquitude). Por isso é preciso dizer de novo, mostrar, para ver se desperta alguma sensibilidade adormecida. Você está me ouvindo?

Os adjetivos são tentativas de nomear o inominável. “…Cruel, desumano e aterrorizante é a herança escravocrata materializada na miséria e nas desigualdades raciais e sociais que vivemos e convivemos até os dias atuais. Uma espécie de necropolítica (Mbembe, 2018) cotidiana acaba por decidir quem sobreviverá ou não”, escreve Jé Oliveira, diretor e dramaturgo do espetáculo Pai contra mãe ou Você está me ouvindo?, no programa da peça.

Nem todos sentem na própria pele as feridas abertas que o sistema racista, patriarcal e misógino continua a infligir diariamente em nossa existência coletiva. O Coletivo Negro, com maestria, destrincha brechtianamente esse rosário de violências sistêmicas na peça livremente inspirada no conto de Machado de Assis, Pai contra mãe, escrito em 1906 – uma obra que, mesmo após mais de um século, continua a ecoar verdades, pois as engrenagens opressoras permanecem erguidas, sustentando os alicerces de nossa coletividade fraturada. 

No conto Pai contra Mãe, Cândido Neves, o Candinho, um homem branco e “livre”, mas desempregado e afundado em dívidas, sobrevive de favor com sua esposa grávida, Clara, na casa de Tia Mônica. Pressionado pelo proprietário que exige o pagamento do aluguel atrasado e pela tia, que sugere entregar o recém-nascido à roda dos enjeitados caso não obtenha recursos, ele se sente encurralado. Em seu desespero, Candinho se torna “capitão do mato avulso” e recorre à captura de uma escravizada fugitiva em troca da recompensa oferecida.

 Já na versão cênica do Coletivo Negro, essa subjugação ganha contornos contemporâneos e mais complexos: Osvaldo, homem negro recém-empregado como vigilante de supermercado, persegue Zaíra da Conceição, mulher negra retinta, após um alerta do sistema de monitoramento que a acusa falsamente de furto. Ele a conduz à força para um reservado do estabelecimento – uma espécie de senzala particular – onde a pressiona violentamente durante o interrogatório, provocando o aborto. 

O espetáculo expõe brilhantemente a perspectiva interseccional de camadas sobrepostas de opressão: Osvaldo, mesmo sendo negro, exerce poder institucional sobre Zaíra, porém permanece subjugado pelo sistema capitalista neoliberal que o emprega precariamente. Esse intrincamento demonstra como raça, classe e gênero se entrelaçam, criando hierarquias mesmo entre os historicamente oprimidos – mas reservando às mulheres negras o lugar mais vulnerável dessa estratificação social.

O supermercado como cenário teatral estabelece um paralelo significativo entre a escravidão histórica e as estruturas do capitalismo tardio. Enquanto no conto machadiano, a perseguição a Arminda ocorre abertamente nas ruas coloniais, o espaço comercial funciona de forma mais sutil, porém igualmente eficaz. As câmeras de vigilância, protocolos de segurança e monitoramento constante substituem as correntes físicas do passado, mantendo, contudo, sua função essencial: limitar a autonomia e explorar o trabalho sob uma aparência de normalidade e ordem social estabelecida. O que evidencia como práticas opressivas se adaptam e se revestem de novas formas ao longo do tempo.

A maternidade interrompida permanece como elemento central em ambas narrativas, mas com potências distintas. Se no conto original o aborto de Arminda é narrado friamente com efeito calculadamente cortante, na peça teatral este fato torna-se nevrálgico para o desfecho que projeta-se como um “se liga, mano”.

Thiago Sonho, Lua Bernardo e Maurício Pazz: músicos que tocam na peça. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

Criadas especificamente para o espetáculo, as composições musicais operam como pontes temporais que conectam passado ao presente. Na tessitura cênica elaborada por Jé Oliveira, a dimensão musical estabelece-se como uma dramaturgia sonora, onde letras e melodias constituem uma poética  própria da encenação, amplificando questões cruciais sobre ancestralidade e resistência.

A proposta musical posiciona-se como elemento estruturante da narrativa épica, executada pelo trio formado por Lua Bernardo (baixo acústico e elétrico, sopros e voz), Maurício Pazz (bandolim, violão, guitarra, cavaco e voz) e Thiago Sonho (percussão, bateria, samplers e voz). Assinadas por Oliveira em parceria com Jonathan Silva – responsável pelas melodias – , as composições articulam uma linguagem que atravessa tempos históricos distintos, costurando o Brasil colonial ao contemporâneo através de estruturas rítmicas que funcionam como arquivo vivo da memória afrodiaspórica.

Entre tradições percussivas de matriz africana e experimentações sonoras contemporâneas, entre jogos vocais que remetem aos cantos de trabalho e harmonizações que dialogam com o jazz e a música experimental, a paisagem sonora da montagem reforça o que o texto aponta: a persistência dos sistemas de opressão sob novas máscaras.

A música em Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? reivindica escuta e desestabiliza certezas – elementos fundamentais para uma obra que, longe de oferecer respostas consoladoras, insiste em formular as perguntas perturbadoras que a sociedade brasileira continua a evitar. Particularmente emblemática é a composição Quem manda no mundo não muda, concretizando sonoramente o argumento central da montagem.

Flávio Rodrigues como narrador: Machado de Assis. Foto: Marcelle Cerutti / Divulgação

A vocalização de Flávio Rodrigues como narrador — um Machado de Assis materializado e retinto — provocou-me um impacto desconcertante logo nas primeiras cenas. O ator inicia sua atuação pelo caminho do estranhamento e do deboche calculado, uma escolha que potencializa os aspectos mais incômodos do texto machadiano. Seu trabalho vocal evolui gradativamente, transformando o distanciamento irônico em uma contundente crítica social, num movimento que espelha a própria estratégia narrativa da peça. A decisão de representar o autor como um homem negro retinto funciona como dispositivo cênico que robustece a identidade racial do escritor, frequentemente embranquecida pela historiografia tradicional.

Jé Oliveira demonstra notável maturidade ao orquestrar os diversos elementos cênicos em uma narrativa coesa e impactante. O adensamento de sua poética como encenador (Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens; Gota d’Água {Preta}) manifesta-se na precisão com que articula música, atuação, cenografia e projeções, criando um todo integrado onde cada componente amplifica o efeito dos demais. Ao provocar questionamentos complexos, Oliveira confirma profunda compreensão do teatro como espaço de reflexão política. Com habilidade singular, o diretor equilibra momentos de densidade com necessários respiros poéticos, conduzindo o público por uma experiência teatral marcante.

Um dos aspectos mais contundentes da encenação é a coragem de apresentar racismo e classe como sistemas de opressão interdependentes. A montagem não romantiza a negritude nem reduz as complexas relações raciais brasileiras a esquemas simplistas. Ao contrário, escava as contradições internas das desigualdades racializadas.

Com agudeza crítica, a encenação expõe a fragmentação interna da comunidade negra mencionada por Oliveira, explorando como determinados indivíduos não se reconhecem como negros ou negam a existência do racismo. Mais que isso, a obra desnuda os mecanismos de dominação que estrategicamente posicionam negros contra negros, mulheres contra mulheres ou pobres contra pobres, transformando potenciais aliados em adversários. Essas engrenagens conseguem  fragmentar grupos que, unidos, poderiam desafiar os poderes opressivas.

Elenco: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia

A cenografia concebida por Flávio Rodrigues traduz materialmente as metáforas sobre o corpo negro na sociedade brasileira. O uso do plástico como elemento central aparece potente em sua polissemia: ora sugere o mar que trouxe os escravizados, ora se transforma em envoltório que cobre corpos assassinados, ora sufoca como as estruturas opressivas que limitam a respiração social. Este material barato e descartável, funciona como alegoria para a objetificação histórica dos corpos negros no Brasil.

As projeções ampliam a potência do cenário, estabelecendo conexões imagéticas entre o passado colonial e o presente neoliberal. Esta camada sobreposta aos elementos físicos cria profundidades que enriquecem simultaneamente a experiência estética e o impacto político do espetáculo, evidenciando continuidades históricas através de uma linguagem iconográfica contemporânea.

A atuação do elenco constitui um dos pilares de força da montagem. Aysha Nascimento, como a mãe escravizada, constrói uma presença cênica que oscila entre a fragilidade imposta pela pressão social e a força interior de quem resiste. Seu corpo comunica tanto quanto suas palavras, numa performance física intensa que materializa o sofrimento e a resistência.

Raphael Garcia, interpretando o pai endividado, navega com precisão pelos territórios moralmente ambíguos de seu personagem, evitando tanto a demonização simplista quanto a absolvição fácil.

Já Flávio Rodrigues, como narrador-Machado, estabelece um vínculo direto com a plateia que ora convida à cumplicidade, ora provoca desconforto necessário.

Os três atores demonstram notável cumplicidade cênica, que dá sustentação às complexas camadas do espetáculo.

Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo? chega como um manifesto estético-político que ressignifica a obra original de Machado de Assis à luz das urgências contemporâneas. No desfecho da obra, o Coletivo articula uma mensagem direta de conscientização, convocando especialmente a comunidade negra a fortalecer seus laços de resistência coletiva. O recado para os “manos se ligarem” evidencia a persistência de uma lógica perversa: nas disputas por sobrevivência e dignidade, quem está em posição de desvantagem estrutural inevitavelmente arca com o preço mais alto. Então, o peso das crises econômicas, da violência estatal e das injustiças sociais recai desproporcionalmente sobre a população negra e periférica.

 

Pai Contra Mãe Ou Você Está Me Ouvindo?

Ficha Técnica

Idealização, Concepção, Dramaturgia e Direção Geral: Jé Oliveira
Assistência de Direção: Rodrigo Mercadante
Atuação: Aysha Nascimento / Flávio Rodrigues / Raphael Garcia
Direção de Movimento e Coreografia: Aysha Nascimento
Direção Musical: Guilherme Kastrup e Jé Oliveira

Banda:
Baixo Acústico e Elétrico, Sopros e Voz: Lua Bernardo
Bandolim, Violão, Guitarra, Cavaco e Voz: Maurício Pazz
Percussão, Bateria, Samplers e Voz: Thiago Sonho
Composições Originais: Jé Oliveira e Jonathan Silva
Melodias: Jonathan Silva
Arranjos: Guilherme Kastrup, Jé Oliveira, Lua Bernardo, Maurício Pazz e Thiago Sonho
Preparação de canto: William Guedes

Videografia: Bianca Turner
Light Designer: Matheus Brant
Assistência e Operação de Luz: Aline Sayuri
Figurinos: Eder Lopes
Costureira: Nininha Lopes
Cenografia: Flávio Rodrigues
Cenotécnico: Wanderley Wagner
Serralheiro: Mauricio Batista
Engenharia de Som: Tomé de Souza
Contrarregras: China, Billy e Flávio Serafin
Fotos: Marcelle Cerutti
Identidade Visual: Murilo Thaveira
Participação em Vídeo: Lilian Regina e Sidney Santiago Kuanza
Estudos teóricos e oficinas: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira e Raphael Garcia
Produção Executiva: Catarina Milani
Assistência de Produção: Éder Lopes
Produção Geral: Gira Pro Sol Produções – Jé Oliveira

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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A tradição desencantada
Crítica: Paixão de Cristo do Recife

Primeira noite da Paixão de Cristo do Recife, no Marco Zero. Foto:: TFN

Jesus, mulheres e crianças. Foto: TFN

Paixão de Cristo do Recife é apresentada ao ar livre, na Praça do Marco Zero. Foto: TFN

Desde que comecei a acompanhar a Paixão de Cristo do Recife, exibida primeiramente no Estádio do Arruda e, nos últimos anos, na Praça do Marco Zero, no centro do Recife, sempre me tocou a valentia desse conjunto de artistas pernambucanos em realizar essa montagem, enfrentando desafios financeiros, estruturais e de toda ordem. É uma persistência coletiva que mantém o espetáculo vivo.

Quando soube que a montagem de 2025 traria aspectos mais contemporâneos tanto no conceito quanto na encenação, minha curiosidade foi aguçada. Fui à estreia na sexta-feira (18). Ao final da sessão, senti uma espécie de pesar e perplexidade, como se a experiência provocasse um lamento pelo resultado alcançado, evidenciando a dificuldade em discernir, de imediato, o sentido das inovações propostas.

Antes do início da apresentação, o produtor Paulo de Castro deu seu recado, destacando que o espetáculo reaviva o lema “Paixão do Povo”. Castro agradeceu ao apoio de patrocinadores, dos recursos da Lei Rouanet e de diversas instituições, como a Prefeitura do Recife, a Secretaria de Cultura, a Fundação de Cultura Cidade do Recife, o Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros – Suape e a Companhia Pernambucana de Gás (Copergás).

A 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife vai até segunda-feira, 21 de abril, sempre às 18h, no Marco Zero. Apresentada pela Roda Cultural e com direção e roteiro de Carlos Carvalho, a encenação reúne um elenco composto por 50 atores e 60 figurantes. Entre os protagonistas estão Asaías Rodrigues (Zaza), no papel de Jesus, e Brenda Ligia, interpretando Maria. Além deles, Carlos Lira encarna Pilatos; Albemar Araújo, Herodes; Clau Barros, Madalena; Gil Paz, João Batista; Ivo Barreto, Judas; e Paula de Tássia, o Diabo.

A cena da Santa Ceia. Foto: TFN

Milhares de pessoas acompanham a Paixão de Cristo do Recife, um espetáculo ao ar livre, em uma praça às margens do rio Capibaribe. A produção utiliza vozes pré-gravadas, com os atores dublando a si próprios ou a outros — como no caso do personagem Judas, interpretado por Ivo Barreto, mas com a voz de Júnior Aguiar.

Nesse tipo de encenação, a abundância de teatralidade visual almeja conectar o público aos valores do cristianismo, ao sofrimento e posterior triunfo de Cristo. É necessário envolver o espectador numa experiência coletiva marcante, criar um ambiente que transporte a plateia para a história que está sendo contada. 

Nesta edição da Paixão de Cristo do Recife o encanto que esses elementos da encenação poderiam ter despertado na plateia não aconteceu. Os recursos técnicos mostraram-se insuficientes para engendrar a energia e a magnitude esperada para uma produção de tamanha relevância. A iluminação teve falhas técnicas que se mostraram evidentes ao público, como momentos de sombras que prejudicaram algumas cenas, enquanto a cenografia, mesmo sendo indicativa, se restringiu a uma apresentação simplória, sem realçar adequadamente os momentos dramáticos.

O que realmente se destacava era o descompasso entre a rica tradição histórica da narrativa e a tentativa de tradução contemporânea, marcada por uma execução aquém do ideal.

Um dos primeiros aspectos que chamam a atenção é o figurino, assinado por Álcio Lins, que mistura referências históricas com elementos contemporâneos. Na maior parte da montagem, os personagens vestem roupas comuns, como calças jeans e camisetas coloridas, numa tentativa de aproximá-los do público atual — incluindo Asaías Rodrigues (Zaza), intérprete de Jesus. Em contraponto, alguns integrantes da corte de Herodes e sacerdotes do Sinédrio utilizam vestimentas que rememoram, ainda que de forma muito distante, a indumentária da época de Jesus, criando um hibridismo visual que causa estranheza ao espectador.

Embora a proposta de desconstrução — trazer a narrativa para o presente — seja conceitualmente interessante ao sugerir que Cristo enfrentaria a crucificação mesmo nos dias de hoje, essa opção acabou comprometendo a força poética do espetáculo.

Esse cenário revela a complexidade e o desafio de manter vivas e relevantes as tradições, equilibrando respeito à narrativa histórica e experimentação contemporânea — sempre com o objetivo de tocar o público profundamente, tanto no âmbito espiritual quanto artístico.

Participação do Bacnaré é um dos melhores momentos do espetáculo. Foto: TFN

Na encenação, o diabo é uma personagem feminina. Foto: TFN

A encenação oscila entre momentos de lampejos e outros de completa falta de energia. Por exemplo, as cenas dos carrascos que condenaram Jesus inicialmente ganhavam força, mas logo perdiam o ritmo, resultando em ações desequilibradas, mesmo contando com um elenco de atores experientes.

A cena do bacanal, protagonizada pelo grupo Bacnaré de dança e música, conseguiu criar um ambiente dinâmico e cativante em sua participação. No entanto, não havia unidade, nem ao menos estética na cena: ao mesmo tempo em que o Bacnaré brilhava no centro do palco, o lado direito do palco, sugeria um cabaré popular precário. Um espectador chegou a gritar: “Tira essa galega daí”, alegando desconforto com as roupas transparentes de uma figurante em razão da presença de crianças.

Outra questão diz respeito à proposta de transformar o diabo em uma personagem feminina, interpretada por Paula de Tássia. Embora existam encenações que adotam essa estratégia, a abordagem utilizada em “A Paixão do Recife” provocou em mim reflexões. Sob uma suposta perspectiva feminista, a escolha parecia visar romper paradigmas e oferecer novas leituras sobre poder e a subversão dos papéis tradicionais. Contudo, por que, novamente, atribuir à mulher o papel de tentação, mantendo uma lógica maniqueísta entre o bem e o mal, enfatizando a figura do mal e, ainda, aludindo ao arquétipo da pombagira — não como exaltação do feminino, mas como demonstração da demonização da mulher? Em cena, vemos um Filho de Deus que se sacrifica pela humanidade, enquanto o diabo assume uma forma feminina. Embora a cena seja bem conduzida e a performance de Paula de Tássia seja desenvolta e convincente, questiono as camadas desta narrativa, que parecem reafirmar uma posição patriarcal.

A dramaturgia buscou um caminho direto para dialogar com as sequelas atuais. Em determinadas falas, como as de Maria, procurou relacionar o sofrimento das mães com o peso da violência policial, aproximando a figura da Mãe de Deus do sofrimento dos oprimidos contemporâneos. Contudo, essa estratégia se apresentou como uma solução fácil — um discurso social que não explora a profundidade que esses temas exigem.

Figurinos de época e estilo casual são utilizados no espetáculo. Foto: TFN

Quase um aparte, ou desvio, ou…

No quadro atual, considero cada vez mais problemático analisar os trabalhos das artes cênicas de Pernambuco, visivelmente pressionados pela falta de apoio, de editais, de políticas robustas e de espaços para o desenvolvimento das ideias, desde o processo até o resultado final com dignidade. A precarização está presente em praticamente todos os âmbitos da feitura das artes cênicas pernambucanas. Mas o que fazer diante disso? Ser sempre conivente na análise por conta dessa situação? Ou cobrar para que se chegue a resultados que apresentem mais qualidade, independente do estilo do trabalho?

Esse é um assunto complexo, que merece ser discutido com mais fôlego. No entanto, na maior parte do tempo atribuo essa carência aos limites impostos pelo capitalismo e à falta de recursos, à precarização progressiva das artes cênicas. Mas será que essa é a única explicação? Penso nas montagens das décadas de 1980 e 1990 dirigidas em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, por Vital Santos e outros artistas, que, embora marcadas pela carência de recursos, transbordavam inquietação e uma estética inovadora. Mas era outro contexto, dirão alguns. Sempre é outro contexto.

A verdade é que o teatro pernambucano precisa ser respeitado e, para isso, deve contar com investimentos, editais e condições para se realizar plenamente. Não adianta ser “meia-boca”, sabe? Não basta só o Funcultura, que patrocina dois projetos por ano para montagens novas, uma ou outra para manutenção e poucas outras coisas.

O fato é que o teatro pernambucano está em condições extremamente precárias. As casas de espetáculos estão caindo aos pedaços; as que estão em boas condições — como o Santa Isabel e o Parque, casas maiores — são ocupadas com a circulação do teatro nacional, que também é importante. Os artistas do Recife reclamam, mas parece que os órgãos públicos não respondem. Enquanto milhões são investidos em turismo, o teatro fica diante de uma carência crônica. Pode parecer que estou desviando o assunto, mas tudo está entrelaçado. E são questões complexas, é verdade, mas profundamente conectadas.

Cena de Pilatos. Foto: TFN

Reconheço a importância e a experiência do diretor e encenador Carlos Carvalho, que tem uma trajetória respeitável. No entanto, como colaboração honesta, é preciso apontar as fragilidades da montagem, como a falta de coesão do conjunto cênico.

Essa 27ª edição da Paixão de Cristo do Recife se caracteriza por ser um espetáculo morno. Conta com muitos atores e atrizes talentosos e dedicados. Porém, um espetáculo dessa envergadura ganha pontos e convence o público pela composição cênica, pelo ritmo, pela harmonia da visualidade em combinação com a sonorização, a perfeita dublagem e os gestos largos.

A atuação de Asaías, que faz de Jesus uma figura próxima do povo, é admirável, mas o personagem de Cristo demanda que o elenco funcione como guindaste simbólico para sua liderança e apoio. A presença das atrizes é marcante para além dos papéis de Maria, de Lígia, e Madalena, de Clau, mesmo que pontuais.

Judas, interpretado por Ivo Barreto, suscita uma reação da plateia e existe uma boa solução para o seu enforcamento. Albemar cria um Herodes carregado de ironia. Além disso, outros atores, como Carlos Lira, que interpreta um Pilatos consistente, entram no redemoinho de cenas que perdem força, mesmo com a participação de um time experiente.

O que me parece, inclusive pela reação ao final da sessão, é que a Paixão de Cristo do Recife não conseguiu envolver o público como noutras edições de sua própria trajetória. Uma produção que falha em criar conexões mais intensas ou que não apresenta elementos visuais inovadores, surpreendentes ou emocionalmente marcantes pode ter dificuldades para manter a plateia engajada. Nesse contexto, são a apatia e o desencanto que surgem, como consequência direta ao espetáculo.

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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A brincadeira mais querida do Natal
Crítica do Baile do Menino Deus

Foto: Hans von Manteuffel

Os Mateus Arilson Lopes e Sóstenes Vidal com o grupo de bailarinos. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Foto: Hans von Manteuffel

Praça do Marco Zero no Recife, elenco e público. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

O Baile do Menino Deus – uma brincadeira de Natal é um dos mais emblemáticos eventos natalinos do Brasil, quiçá do mundo. Apresentado anualmente há 21 dezembros na Praça do Marco Zero, no centro do Recife, ele atrai milhares de espectadores em busca de uma experiência cultural singular. Escrito por Ronaldo Correia de Brito (também diretor da peça) e Assis Lima e com músicas de Antônio Madureira, esse auto de Natal habilmente entrelaça a narrativa universal do nascimento de Jesus com elementos da cultura popular nordestina. O resultado é irresistível. Então eu digo, o Baile do Menino Deus salva o Natal de muita gente.

Além de oferecer um refúgio coletivo ao calor intenso, com a brisa do mar à beira do Capibaribe, essa obra revitaliza o espírito comunitário. Transformando o espaço público em um palco potente, o espetáculo toca corações e mentes de maneira particular. Ele reúne na plateia pessoas de várias classes sociais, reafirmando a rua como um espaço de pertencimento e expressão popular ao ar livre.

Em um mundo onde o consumismo frequentemente ofusca o verdadeiro espírito do Natal, o espetáculo propõe uma vivência carregada da essência da data: o nascimento de Jesus, simbolizando esperança, renovação e amor. Ao se concentrar nesses valores, o Baile convida o público a refletir sobre o que realmente importa nesta época do ano.

Para tantos, o espetáculo é um elo de conexão com suas raízes e identidade cultural. Ao incorporar elementos das manifestações populares do Nordeste, como o maracatu, o frevo, o cavalo-marinho, o bumba meu boi, a ciranda, o pastoril, o coco, e outros, o Baile fortalece o senso de pertencimento e orgulho de territoridade. Ele salva o Natal ao reafirmar a riqueza e a diversidade da cultura brasileira, em um ato de resistência contra a homogeneização cultural.

Diante de tantos desafios e incertezas, o Baile do Menino Deus oferece uma alegria do presente e esperança renovada. A cada ano, ao atualizar suas referências e adaptar sua narrativa, a encenação reforça a ideia de que, apesar das adversidades, há horizonte. E inspira cada espectador a maravilhar-se com a vida, com cada nascimento.

Pego esse verbo, maravilhar-se para acompanhar essa montagem.

Foto: Hans von Manteuffel

José e Maria, ao fundo, na festa de casamento. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Como contar para uma pessoa que não conhece as tradições populares do Nordeste, nunca viu um bumba meu boi, um cavalo-marinho ou um reisado, o que é aquela lindeza do Baile do Menino Deus na Praça do Marco Zero? Seja uma francesa ou uma paulistana, como explicar que magia é essa? Ou mesmo para um recifense que ainda não foi ao Baile? Como traduzir em palavras o que se passa naquele palco imenso, com suas casinhas, com as passagens de tantos personagens, com tantas cenas simultâneas, tanta dança e canto, música e alegria?

A estrutura da peça é baseada no reisado e na lapinha do Cariri, manifestações culturais enraizadas no sertão do Ceará. Estas tradições, que envolvem a encenação do nascimento de Jesus, a adoração dos Reis Magos e a montagem de presépios, que encantaram Ronaldo Correia de Brito em sua infância, serviram como a principal fonte de inspiração para a criação deste trabalho, que agrega elementos de outros brinquedos do Nordeste.

O Baile é para saudar o Menino que nasceu. Os Mateus – um mais lírico, outro mais cômico, assumem um papel central como condutores da brincadeira e são acompanhados por um coro infantil –  Agatha Carille, Alice Vitória de Souza, Ayla Kristie, Ana Kostic, Anna Jardim, Heitor Miranda, João Guilherme, Karina Paes, Luan Rian, Madiba Florentino, Maria Clara Araújo, Rodrigo Travassos- que confere leveza na missão de avançar na história. Juntos, eles buscam abrir a porta fechada que “esconde” a Sagrada Família. Nesta busca, eles convocam um mundaréu de seres, tanto reais quanto fantásticos, cada um contribuindo de maneira única para o desenrolar da trama.

Foto: Hans von Manteuffel

Coro infantil. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Essa celebração da cultura brasileira é uma produção grandiosa. Realizada pela Relicário Produções sob a liderança de Carla Valença, a obra reúne um impressionante contingente de cerca de 300 profissionais, dos quais 70 são artistas, entre performers e criadores. Os realizadores afirmam que a encenação é assistida anualmente por mais de 70 mil pessoas.

A sacada genial deste espetáculo, concebido em 1981 (texto original e letras das canções de Ronaldo Correia de Brito e Assis Lima, e música de Antônio Madureira), foi eleger o Brasil como cenário e imaginário central. Os criadores devem ter visto pouco sentido em adotar elementos como neve, típicos de representações natalinas tradicionais de outros países, no Nordeste brasileiro. Em uma decisão deliberada e inovadora, os criadores excluíram figuras como Papai Noel com seus trenós, optando por valorizar as expressões dos três principais povos formadores da identidade brasileira: indígenas, negros e ibéricos. 

Desde sua estreia, – em 1983 , no  Teatro Valdemar de Oliveira lotado -, o Baile do Menino Deus passou por diversas fases e locais de apresentação. Mas foi a partir de 2004, com a mudança para o Marco Zero do Recife que o espetáculo ganhou a magnitude e a visibilidade que possui hoje. Neste ano de 2024 o Baile do Menino Deus foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Recife, título concedido pela Câmara Municipal. A encenação ocorre todos os anos nos dias 23, 24 e 25 de dezembro.

Lia de Itamaracá pela primeira no palco do Baile. Na foto, ao lado de Lucas dos Prazeres. Foto: Hans von Manteuffel

Maestros Forró e Spok. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Uma constelação de talentos garante o primor artístico do Baile, que inclui os atores Arilson Lopes e Sóstenes Vidal como os Mateus, com Paulo de Pontes e Daniel Barros como seus substitutos. Arilson e Sóstenes brilharam no primeiro e terceiro dias de apresentação, enquanto Paulo e Daniel assumiram os papéis com maestria no segundo dia, mantendo a energia e o carisma característicos dos personagens.

Os músicos estão posicionados no palco, integrando a música de forma mais direta à narrativa. A equipe musical, em plena vista do público, é composta pelos instrumentistas Karol Maciel no acordeom, João Pimenta no contrabaixo, Laila Campelo na viola, e Aristide Rosa alternando entre violão e viola nordestina formam o núcleo harmônico. A percussão, essencial para o ritmo pulsante do espetáculo, fica a cargo de Emerson Coelho, Jerimum de Olinda e José Emerson. Alexandre Rodrigues (Copinha) e Henrique Albino nos sopros adicionam camadas melódicas, enquanto o próprio Rafael Marques alterna entre bandolim e cavaco, dirigindo o conjunto do palco. Esta disposição cênica permite intercâmbios interessantes  entre músicos e atores. Um exemplo é a interação cômica entre um dos Mateus e um músico careca.

Foto: Hans von Manteuffel

Coreografias assinadas por Sandra Rino. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

A coreógrafa Sandra Rino integra diferentes estilos de dança, do tradicional ao contemporâneo, criando uma movimentação visualmente fascinante. O elenco de dança, composto por Beatriz Gondra, Fernando Gomes, Gabi Carvalho, Isabela Loepert, Jonas Alves, José Valdomiro, Marcela Aragão, Marina Vidal, Pinho Fidelis e Tiago Vieira, ocupa o palco com graça e energia.

Este ano, a estreia de Lia de Itamaracá – nossa rainha cirandeira –  brilhou com intensidade singular (antes ela tinha atuado no no segundo filme do Baile). Sua presença magnética tocou fortemente a plateia, transformando sua participação em um momento verdadeiramente histórico para o Baile. Ao lado de Lucas dos Prazeres, Lia interpretou a música da burrinha Zabilin. O figurino de Lia, elaborado com as sete saias mencionadas na própria letra da música, acrescentou uma camada visual à sua performance.

As participações dos maestros de frevo Spok e Forró contribuíram para elevar o calibre musical desta edição. Spok, reconhecido por sua maestria instrumental, também apresentou suas habilidades vocais, na canção Romã, Romã. Ele confessou que sempre quis participar desse espetáculo. O Baile tem essa coisa desejante. Paralelamente, Forró, fiel à sua essência, impregnou o espetáculo com generosas doses de irreverência, adicionando um toque de humor e espontaneidade que se harmonizou perfeitamente com o espírito do Baile.

A riqueza musical do Baile foi ainda mais evidenciada pela atuação de diversos solistas. Silvério Pessoa, Isadora Melo, Surama Ramos, Carlos Filho, Sarah Leandro, Sue Ramos, Cláudio Rabeca, Elon Damaceno e Ricardo Pessoa criaram momentos de puro deleite sonoro. A jovem Júlia Souza, como solista adolescente, adiciona uma camada de frescor à produção.

Surama Ramos, preparadora vocal e solista. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Foto: Hans von Manteuffel

Laís Senna, a Maria do Baile do Menino Deus. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Nos papéis de Maria e José, temos a atriz, cantora e compositora Laís Senna e o poeta, brincante e sanfoneiro Lucas Dan.

Laís Senna, em sua segunda participação no espetáculo desde sua estreia em 2023, demonstra um crescimento significativo em sua performance. Sua presença cênica  mostra-se mais confiante e expressiva. Como atriz e cantora, ela consegue transmitir a complexidade emocional de Maria com delicadeza. Sua interpretação da música Acalanto é particularmente comovente, revelando suas habilidades vocais, como também sua capacidade de incorporar a essência maternal de sua personagem.

Por outro lado, Lucas Dan traz uma ternura ao papel de José. Sua formação como poeta, brincante e sanfoneiro enriquece sua interpretação. A cumplicidade e o entrosamento entre os atores são evidentes em cada interação, cada olhar trocado, cada gesto sutil. Esta sintonia expande a qualidade da atuação, reforça a credibilidade da narrativa, e envolve emocionalmente o público com a jornada do casal.

A sequência do casamento entre José e Maria exibe o casal sob uma luz mais romântica e humana. Ao fazê-lo, a produção consegue um equilíbrio delicado entre o sagrado e o secular, permitindo que o público se conecte com José e Maria não apenas como figuras divinas, mas como um casal enfrentando desafios e emoções muito humanos.

Hip hop do Okado do Canal e seu grupo PE Original Style. Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

O Baile do Menino Deus, embora profundamente enraizado na cultura nordestina e comprometido com a preservação de suas tradições, não se fecha para o mundo. Desde o ano passado, e com maior amplitude neste ano, a inclusão de bailarinos de breakdance, componentes centrais do movimento cultural do hip hop, trouxe um impacto visual e cultural significativo ao espetáculo, com Okado do Canal, nome artístico do multiartista Ellan Barreto, e seu grupo PE Original Style.

A integração do hip hop adiciona dinamismo ao espetáculo e traça uma ponte entre gerações. Os passos de break da Favela do Canal, no bairro do Arruda, trazem uma autêntica representatividade da periferia ao Baile.

Nos bastidores, o estafe de profissionais dedicados assegura a excelência em cada aspecto da produção. Quiercles Santana lidera a preparação de elenco e atua como assistente de direção; e Célia Oliveira faz a preparação do elenco infantil. Sandra Rino é responsável pela coreografia, enquanto Marcondes Lima e Sephora Silva comandam a direção de arte e cenografia. A iluminação cênica fica a cargo de Jathyles Miranda, e Tomás Brandão assume a direção técnica. Juntos, esses artistas e suas equipes contribuem para criar uma experiência visual e sensorial ampla.

Cláudio Rabeca e Lucas D’Ann  na abertura do espetáculo. Foto: Foto: Hans von Manteuffel / Divulgação

Silvério Pessoa, o Boi e Carlos Filho, observados pelos Mateus, Maria e José. Foto: Hans von Manteuffel

O Baile do Menino Deus inicia-se com um arranjo nordestino da festiva Hevenu Shalom Aleichem, tradicional canção folclórica hebraica cujo significado é “Trouxemos paz sobre vocês”. A parceria entre Cláudio Rabeca e Lucas D’Ann cria uma atmosfera de celebração, que segue até o término do espetáculo.

Uma série de cenas memoráveis trouxe esse Baile do Menino Deus de 2024. O dueto entre Carlos Filho e Silvério Pessoa, interpretando o Boi, é um ponto alto, complementado pela formosura da nova versão do boi confeccionada para esta edição. O solo de saxofone do maestro Spok, acompanhado por um passista lírico executando um frevo, cria um momento de pura magia cênica. A chegada majestosa dos Reis Magos e a risada contagiante do Mateus adicionam doses de encantamento à montagem, além de lances já citados e outros fragmentos que me abraçarão depois. Cada espectador tem a liberdade de eleger suas cenas prediletas dentre esse rico mosaico de momentos. Ao final, o público já anseia pela próxima edição em 2025, renovando a esperança que o espetáculo tão engenhosamente cultiva.

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Sinfonia de silêncios e palavras explosivas
Crítica de Apenas o Fim do Mundo

Bruno Parmera (Suzanne) e Pedro Wagner (Louis), em Apenas o fim do mundo. Foto: Ivana Moura

A proximidade do público cria uma intimidade desconfortável. Foto: Ivana Moura

Durante infindáveis cinco minutos (ou foram cinco horas ou cinco anos), um grupo de desconhecidos (ou quase) e eu, aguardamos pela chegada de Louis (ou Luiz, como queiram), o filho que partiu 12 ou 14 anos antes, e muito pouco ou quase nada enviou de notícias e afetos para a família. Essa espera pensativa aciona as memórias de cada pessoa, mas também de uma cidade, o Recife. Mesmo que o texto original seja francês, o corpo do Magiluth é recifense e isso transpira, ainda mais quando o site specific, o lugar da encenação, é o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), que fica na Rua da Aurora, de frente para o Rio Capibaribe, tendo como fundo a Rua do Sol. As portas abertas, os portões de ferro fechados, mas por onde vemos os carros passarem, ônibus e motos também deixam seus rastros nesse quadro. O registro acústico de fora contrasta com o silêncio cúmplice dos que velam. Ouvimos o fluxo do Capibaribe e sentimos a dramaturgia sonora inicial de uma cidade que quase se esquece do seu centro à noite, em contraste com a expectativa de uma plateia pela personagem, que vem anunciar sua morte próxima.

 A volta de Louis não segue o script do filho pródigo bíblico; talvez convoque outro mito, de Caim e Abel, em que as disputas e ciúmes ativam mágoas antigas. Antoine, o irmão do meio, que permaneceu “em casa”, não suporta imaginar a vida vibrante de Louis mundo afora, tão diferente da sua própria. Esse retorno desavisado acende sentimentos de ofensa, de inveja, algo aquebrantado, intensificando o conflito doméstico. Não há celebração nem abraços calorosos na chegada; vinga a mudez dos segredos de emoções íntimas e as palavras que quando surgem são explosiva ou devastadoras.

O francês Jean-Luc Lagarce escreveu Apenas o fim do mundo – uma obra de sutilezas e que verticaliza a pulsação humana – em 1990, período em que já estava ciente de seu diagnóstico de AIDS, uma condição que, na época, era praticamente uma sentença de morte. Ele continuou a refinar o texto até 1995, ano de sua morte aos 38 anos. Sua peça proporciona uma delicada e impiedosa reflexão sobre a finitude, algo inexorável, e joga desde o seu título (o desaparecimento de alguém não é o fim do mundo) com as ironias dessa experiência que é viver.

Almoço ou jantar em família. Foto Ivana Moura

A musicalidade e o ritmo singular do original francês são alimentados na tradução sensível de Giovana Soar, que articula em português as hesitações e repetições, as pausas e frases inacabadas, bem como o embaraço desses titubeios. Essa tradução captura a tempestade de emoções reprimidas e os rancores abafados, sustentados por anos de distância, criando assim uma verdadeira partitura verbal.

A direção de Giovana Soar e Luiz Fernando Marques (Lubi) transforma o texto desafiador de Lagarce em uma experiência teatral imersiva e sensorial que dura aproximadamente duas horas e meia. Como teatro site-specific, a dupla cria um labirinto emocional nos espaços apresentados que equivale à jornada interna das personagens.

No Mamam, o público – limitado a cerca de 60 pessoas por sessão – é convidado a seguir os atores por diferentes ambientes do museu, ajustado para a peça pela direção de arte de Guilherme Luigi e Lubi. A cada nova cena, somos confrontadas com outra faceta do drama familiar. Nessa cenografia dinâmica e reativa, objetos são desarrumados no decorrer da encenação, mesas se partem durante discussões acaloradas, criando um ambiente caótico que reflete o tumulto interno dessas figuras. 

A proximidade do público, nesse contexto, é uma escolha deliberada da direção. Essa estratégia visa criar uma intimidade desconfortável que espelha e intensifica a paleta de sentimentos de abandono e desemparo que cada personagem carrega. Ao reduzir a distância física, a produção busca envolver os espectadores de maneira mais intensa, permitindo que eles experimentem as emoções complexas e muitas vezes dolorosas que permeiam a narrativa. Essa proximidade favorece uma conexão emocional mais intensa, na qual cada gesto, expressão facial e nuance vocal dos atores são amplificados.

A iluminação apresenta momentos que oscilam entre tons amarelo-sépia, evocativos de lembranças empoeiradas, e azuis etéreos, que sugerem uma realidade quase onírica. A trilha sonora aprofunda o rasgo melancólico, com uma suspensão desse clima na performance rock da banda que se instala no meio da sala.

A banda de rock. Foto: Ivana Moura

Tive a oportunidade de assistir a esta obra teatral quatro vezes: duas no SESC Avenida Paulista, onde estreou em 2019, uma no Mamam no mesmo ano, e agora novamente em 2024, na temporada comemorativa. É gratificante observar o amadurecimento do Magiluth, pois, em termos artísticos, parece ser um processo sempre em construção. Com 20 anos de uma trajetória inspiradora, o grupo reafirma seu compromisso com a arte. Esta peça, tristemente bela, me faz pensar e sentir mais a cada sessão.

A discussão antes da despedida. Foto: Ivana Moura

Embora o texto de Lagarce tenha sido escrito no contexto da “epidemia do HIV/AIDS” no mundo, dos anos 1990, sua montagem no Brasil em 2019 pelo Magiluth (e sua continuação em 2024) ganha outras camadas de sentido no contexto sociopolítico atual. A menção à extinção do departamento de AIDS do Ministério da Saúde pelo governo Bolsonaro, citada no início do espetáculo, estabelece uma ponte entre o drama pessoal de Louis e questões mais amplas de saúde pública e política. Esta conexão sublinha a relevância contínua da obra de Lagarce e a habilidade do Grupo Magiluth em fazer pulsar o político no teatro.

 Catherine (Giordano Castro), encarada por Antoine (Mario Sergio), observado por Louis. Foto: Ivana Moura

Apenas o fim do mundo é uma peça que, perturbadoramente, fala de amor, de forma brutal, desenterrando o que ficou escondido, as recordações, mágoas, ressentimentos e culpas. É uma peça densa e triste, uma beleza melancólica que me toca profundamente.

A vivacidade do jogo físico, característica marcante do grupo, é transposta para o jogo de palavras. O percurso, o deslocamento e a apropriação dos ambientes do Mamam impõem sensações únicas. A conexão com o público está intimamente ligada à experiência de ocupar esses ambientes, potencializada pelo incômodo e desconforto do próprio deslocamento. A visão é fragmentada, variando conforme o ponto de observação.

Essa fragmentação do olhar da plateia projeta as perspectivas diferenciadas de cada personagem, motivadas pela partida de Louis. Assim como o público percebe a cena de maneira parcial, dependendo de sua localização, cada personagem também possui uma visão limitada e subjetiva dos eventos, influenciada por suas emoções e experiências pessoais.

Pedro Wagner no papel de Louis. Foto: Ivana Moura

Em Apenas o fim do mundo, o Grupo Magiluth cria um ensemble afinado. Pedro Wagner, no papel de Louis, entrega uma performance de contenção admirável. Há uma gravidade maior na maneira como Pedro Wagner mastiga aquelas palavras em silêncio, para depois cuspi-las. Sua atuação possui uma densidade mais intensa do que em 2019, quando a peça estreou. Naquele ano, estávamos todas assustadas com o pandemônio e sua gangue, que, alguns anos depois, começa a ser desmascarado. A eloquência de Louis é carregada pelo silêncio que pesa fisicamente sobre todos os presentes.

Interpretando a Mãe, Erivaldo Oliveira desafia as convenções de gênero com uma atuação que transmite fragilidade e empoderamento da matriarca. A personagem, única sem nome, conhece profundamente cada um de seus filhos. Sua tentativa de promover a harmonia entre eles é evidente, assim como seu esforço para garantir seu lugar na memória familiar, relembrando os domingos de verões passados nas conversas durante as refeições. Em uma cena delicada, ela explica a Louis que seus irmãos desejam falar e conversar, destacando a justeza de cada um que permaneceu e a necessidade de serem encorajados. O ator navega habilmente entre a aflição e o humor.

Suzanne, a irmã mais nova, é vivida por Bruno Parmera, que a interpreta com uma energia nervosa que beira o frenético. A prosódia do ator traduz a urgência da personagem em conhecer o mundo, na esperança de um dia poder explorá-lo como Louis fez anos antes, e também em expressar sua própria identidade. Seus movimentos são ágeis e entrecortados, refletindo essa inquietação interna. Quando Suzanne encontra o irmão mais velho, ela fala incessantemente, confessando que esse comportamento não é habitual. Essa dinâmica indica tanto sua admiração por Louis quanto seu desejo de se afirmar em um mundo que ainda está descobrindo.

Assumindo o personagem de Antoine, o irmão do meio, Mario Sergio Cabral entrega uma atuação impressionante, um verdadeiro tour de force, onde projeta suas emoções como um vulcão prestes a entrar em erupção. Descrito pela Mãe como um homem de pouca imaginação, Antoine surpreende ao revelar gradualmente seus sentimentos em relação ao irmão. É desconcertante e ao mesmo tempo envolvente observar como ele, com sua rudeza, fala de amor de maneira tão crua e sincera, tornando suas emoções quase palpáveis. Quando Antoine se permite chorar, o público inevitavelmente se comove, derretendo-se diante da vulnerabilidade que ele expõe.

No papel de Catherine, a cunhada, Giordano Castro, fornece uma perspectiva externa vital para a dinâmica familiar. Entre o riso e o escárnio, e sem a memória da infância por não ser parte integrante daquele núcleo desde sempre, o ator investe em pequenos gestos e sutis alterações vocais para expor verdades ditas a meia-voz, revelando as nuances das intimidades daquela família. Casada com Antoine, Catherine navega entre a vergonha dos pequenos escândalos, as explosões temperamentais do marido e a perturbadora presença de Louis, o cunhado cuja chegada abalou o tênue equilíbrio parental. Em meio a esse tumulto, ela se esforça para proteger Antoine, enquanto sugere que guarda cuidadosamente seus próprios segredos.

Mas nessa peça de tantos desafios há sobretudo um domínio impressionante da técnica. Da técnica interpretativa em que os atores, em alguns momentos, saem de suas personagens para cuidar da artesania dos bastidores, à medida que a casa vai se revelando e se distorcendo ao longo do espaço. Este espetáculo exige um rigoroso controle na administração da sequência das cenas. E o maestro dessa operação é o ator Lucas Torres, que atua como contrarregra, garantindo que toda a engrenagem funcione perfeitamente. Há uma camada metateatral, com Lucas Torres dando instruções no início da sessão, percorrendo todas as cenas e aparecendo como o baterista da banda na sala de jantar. Todo o elenco permanece atento ao andamento da encenação e aos seus detalhes, frequentemente oferecendo orientações à equipe de apoio.

A peça se desenrola como uma dança intricada em torno de um vazio central, com cada personagem orbitando em torno da verdade que Louis veio compartilhar, mas que nunca consegue expressar plenamente. Os movimentos se transformam em uma coreografia elaborada de aproximações e afastamentos, espelhando as tentativas frustradas de conexão entre eles. Não há redenção. Com Apenas o fim do mundo, o Magiluth nos incita a ampliar nossas perspectivas de afeto e a ter cuidado com os segredos e com as verdades que criamos.

Mãe conversa com o filho mais velho. Foto: Ivana Moura

Leia outras críticas de Apenas o fim do mundo,
a de Pollyanna Diniz Hello stranger
e outra de Ivana Moura Magiluth vasculha política nos laços afetivos

 

Apenas o fim do mundo
Ficha técnica:

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

 

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