Semana Hermilo apresenta sete espetáculos

Espetáculo O Estopim Dourado, Foto: Ivana Moura.

O espetáculo O Estopim Dourado, encenado pelas atrizes pernambucanas Anny Rafaella Ferli, Gardênia Fontes e Taína Veríssimo, propõe uma releitura crítica e feminina do texto João Sem Terra de Hermilo Borba Filho. Baseando-se no conceito de Corpo-território, inspirado nos estudos de Sandra Benites (Guarani Nhandeva), a peça transpõe a narrativa masculina da obra original para uma perspectiva feminina, explorando a relação íntima entre as mulheres e a terra. O

A peça combina diferentes linguagens teatrais, como o uso de máscaras, mamulengo, corporeidade e música ao vivo, dialogando com a cultura indígena e a cosmologia Guarani, associada à Terra e à natureza. Esta produção faz parte da programação da Semana Hermilo, um evento que celebra a vida e obra de um dos maiores expoentes da dramaturgia nordestina.

A Semana Hermilo, que acontece de 6 a 14 de julho no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo, é uma homenagem ao legado de Hermilo Borba Filho. Dramaturgo, encenador, professor, crítico e ensaísta, Hermilo foi fundamental para a cultura nordestina. Sua obra, marcada pelo realismo fantástico, bebe na fonte das tradições populares e do imaginário coletivo do Nordeste brasileiro.

Através de suas peças, Hermilo buscava retratar a vida e os dilemas do homem nordestino, utilizando elementos como o cordel, o bumba-meu-boi e o mamulengo para criar uma linguagem teatral singular.

História de um Pano de Roda, com Bóris Trindade Júnior (Borica) e André Ramos. Foto: Divulgação

A programação da Semana Hermilo inclui outros espetáculos. No domingo, 7 de julho, a Cia. Brincantes de Circo apresenta História de um Pano de Roda, um espetáculo documental que narra a relação entre um velho palhaço e seu jovem aprendiz em um circo de lona furada nos rincões de Pernambuco. A peça destaca a transmissão de conhecimentos e a paixão pela arte circense, enquanto denuncia as condições precárias e a marginalização enfrentadas pelos artistas de circo. A peça é costurada com depoimentos de artistas circenses, expondo os bastidores de sua luta contra o preconceito, o descaso e a exploração. No elenco estão André Ramos e Bóris Trindade Júnior (Borica). E a direção é assinada por Ceronha Pontes.

Na segunda-feira, Marcondes Lima, do Mão Molenga Teatro de Bonecos, traz Babau, Pancadaria e Morte ou Com Quantos Paus se Faz uma Canoa para o Além. Na quarta-feira, João Lira apresenta Terreiro Trajetória, enquanto na sexta-feira, Claudio Lira e a Luz Criativa encenam Noite. No sábado, a Subitus Company da UFPE apresenta Matilda, dirigida por Neves da Senna.

Encerrando a semana, no domingo, 14 de julho, a Cênicas Cia de Repertório apresenta Baba Yaga, primeiro solo da atriz Sônia Carvalho. Com texto de Álcio Lins e direção de Antônio Rodrigues, o trabalho traz à cena a trajetória da terrível bruxa eslava homônima. Ambientado em sua cabana, o monólogo coloca o público como confidente da bruxa enquanto ela busca por seu filho, Olaf, explorando a dualidade entre amor e ódio, culpa e desejo de posse.

A Semana Hermilo é promovida pela Prefeitura do Recife, através da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife. Todos os eventos acontecem no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo, com entrada gratuita.

Sônia Carvalho em Baba Yaga. Foto Divulgação

Programação da Semana Hermilo:

  • Dia 6 (sábado): 19h15: Abertura da exposição Luiz Marinho, um resgate do autor que veio da mata. 20h: Espetáculo O Estopim Dourado
  • Dia 7 (domingo): 19h: História de um Pano de Roda
  • Dia 8 (segunda-feira): 19h: Babau, Pancadaria e Morte ou Com Quantos Paus se Faz uma Canoa para o Além
  • Dia 10 (quarta-feira): 16h e 19h: Terreiro Trajetória
  • Dia 12 (sexta-feira): 20h: Noite
  • Dia 13 (sábado): 19h: Matilda
  • Dia 14 (domingo): 19h: Baba Yaga

 

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A cidade é um corpo marginal , repleto de poesia
Crítica de Miró: Estudo nº 2

Estudo N°2 – Miró. Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Foto: Ivana Moura

O Grupo Magiluth, um dos mais atuantes do Brasil, está celebrando 20 anos de trajetória e, por isso, tem apresentado nos últimos meses algumas das peças de seu repertório no Recife. A trupe tem se notabilizado pelas experimentações e busca de uma linguagem que pulse as inquietações destes tempos. Em seus dois últimos trabalhos, Estudo N°1 – Morte e Vida e Estudo N°2 – Miró, enfatiza a importância de “concretizar” na cena o estudo da prática teatral, expandindo sua linguagem singular que combina jogo cênico e crítica social, ironia e humor, pesquisa e performance. Na peça-palestra Miró – Estudo N°2, a trupe investiga a tênue e complexa fronteira entre inteprerte e personagem.

Uma cena exemplifica a transformação de um coadjuvante em protagonista: durante uma abordagem policial violenta, três jovens da periferia são interpelados, e um deles é agredido com um tapa no rosto por um dos policiais. Esse ato de violência faz com que o jovem se torne o protagonista da cena. E o que dizer disso tudo? O Magiluth dá um curto-circuito para de uma apatia social e apontar para o público, que assiste passivamente, sem esboçar reação.

Miró: Estudo N°2 é o 12º trabalho desse grupo e estreou em abril de 2023, no Itaú Cultural, em São Paulo. Mais do que uma biografia cênica, o espetáculo é uma experiência sensorial e poética que nos convida a perceber a cidade como um corpo vivo, feito de carne e concreto, sonhos e escombros. 

Miró da Muribeca, nome artístico de João Flávio Cordeiro da Silva (1960-2022), foi um poeta marginal do Recife, que fez das ruas da cidade seu palco, vendendo seus livros nas pontes e praças, declamando versos que falavam da realidade dura da periferia. Sua poesia, inicialmente lírica, ganhou contornos políticos ao denunciar a violência, o preconceito e a desigualdade que marcam a vida dos pobres e negros nas grandes cidades brasileiras.

No palco, os atores Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera investigam o processo de criação de um personagem teatral, se revezam nos papéis de protagonista, antagonista, coadjuvante e figurante, numa estrutura que questiona as possíveis hierarquias do teatro e a relação entre arte, cidade e resistência, desestabilizando esses papéis com o protagonismo de um poeta que deu voz aos invisibilizados.

A encenação explora a linguagem híbrida que tem sido uma das marcas do Magiluth, conectando teatro, performance, música, vídeo e poesia. Essa pesquisa de linguagem do grupo é muito importante, e quem acompanha a trajetória dessa trupe percebe as tentativas de ampliar e aprofundar a linguagem própria do grupo. As cenas se sucedem num fluxo fragmentado, como lampejos de memória, evocando a trajetória de Miró e a história do Recife, com a cidade como personagem, revelando suas contradições e encruzilhadas.

Erivaldo Oliveira assume o papel de Miró, buscando uma comunhão com a essência inquieta e a criatividade febril do poeta, sem apagar o Erivaldo. Em cena, Miró ganha potência para denunciar a especulação imobiliária que destruiu o conjunto habitacional da Muribeca, onde viveu, para celebrar a palavra e para rir e chorar diante das grandezas e mazelas da vida na periferia.

O espetáculo nos provoca a repensar as relações entre centro e periferia, entre a cidade oficial dos cartões-postais e a cidade real dos becos e favelas. Miró é a encarnação poética dessa cidade à margem, ou dessa porção da urbe, feita de carne e sonho, que resiste e se reinventa a cada dia. Sua poesia é indissociável de que ele foi – poeta, negro, periférico, das ruas onde viveu e amou, das pontes onde declamou seus versos.

Giordano Castro. Foto: João Maria Silva Jr/ Divulgação

Com Miró, o Magiluth celebra a força da poesia como arma de combate num mundo cada vez mais prosaico e desencantado. 

A encenação fragmentada articula realidade e ficção, biografia e poesia. As rupturas e repetições na linguagem cênica podem ser lidas como metáforas dos ciclos de violência e resistência que marcam a experiência de quem vive à margem. Grita a dimensão política do espaço urbano e a necessidade de reinventá-lo a partir do periférico. 

Nesse sentido, a destruição do conjunto habitacional da Muribeca, onde Miró viveu, surge como símbolo dos processos de exclusão e apagamento que caracterizam o desenvolvimento urbano no Brasil. A especulação imobiliária aparece como força antagonista, que expulsa os pobres para os abismos da cidade e da cidadania, conectando-se com lutas históricas pelo direito à moradia e à cidade.

Conhecido por incorporar referências e citações de seus trabalhos anteriores em suas novas montagens, esse procedimento do Magiluth sugere uma compreensão do fazer teatral como um processo contínuo e interconectado, onde cada obra não é apenas uma resposta às questões e inquietações do mundo atual, mas também estabelece um diálogo com a própria trajetória artística do grupo. Ao revisitar e ressignificar elementos de suas obras passadas, o Magiluth cria uma narrativa metateatral,.

Na apresentação no Teatro do Parque, ontem, 20 de maio, durante o Festival Palco Giratório, no Recife, algumas falas dos atores foram perdidas, – seja por terem sido pronunciadas em volume baixo, sem projeção, ou por terem sido sobrepostas por músicas ou sons, ou por existir um problema de acústica no teatro -, o que dificultou o entendimento de algumas passagens. Como a poesia de Miró é um elemento central do espetáculo e deve ser ouvida pelo público, é importante que o grupo fique atento a essas questões pontuais para garantir a melhor experiência possível para a plateia.

Ficha Técnica:
Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

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Uma joia que dilata nossos corações para celebrar a vida
Crítica de Circo de los pies

Foto: Ivana Moura

O que podem pés deficientes? Eles podem mostrar que enquanto a vida pulsa, tudo é possível. Eles podem fazer cambalhotas no ar.  E quando eles encontraram a palhaçaria, eles esbanjam humor, compõem poesia. Foi isso que aconteceu ontem, dia 18 de maio, no Teatro Marco Camarotti, no Recife, dentro da programação do Palco Giratório, com o espetáculo Circo de los pies.

Fruto do projeto O que meus pés me contam?, da La Luna Cia de Teatro, o espetáculo busca investigar o universo circense a partir das potencialidades e limitações de corpos plurais, visando tornar esse universo mais inclusivo para pessoas com deficiência. O projeto teve o incentivo do programa Entre Arte e Acesso do Itaú Cultural (2022) e do Prêmio Elisabete Anderle de estímulo à Cultura (2022).

A La Luna Cia. de Teatro, fundada em 2016 e sediada na cidade de Canelinha (SC), é uma companhia que enfrenta com determinação os desafios concretos da produção artística,  enquanto permite que sua criatividade e imaginação voem livres, explorando novos horizontes e possibilidades. Eles se dedicam à difusão e fruição artística por meio de pesquisa, montagem e circulação de espetáculos, encontrando um delicado equilíbrio entre a realidade prática e a liberdade criativa.

O grupo é formado por quatro artistas: Emeli Barossi, Amália Leal, Pedro Torres e Thiago Leite, que pesquisam diferentes linguagens como música, cultura popular, palhaçaria e pedagogia teatral.

Foto: Ivana Moura

Emeli Barossi, a intérprete da palhaça Asmeline, nasceu com Hemimelia Fibular, uma má formação congênita na perna direita. Pequenininha em estatura, mas gigante em talento e carisma, ela cria uma cumplicidade imediata com a plateia, contando brevemente sua história pessoal e, em outras camadas, falando sobre a arte da palhaçaria. Suas pernas, que sempre chamaram a atenção das pessoas, são as protagonistas de uma dramaturgia criada a partir da assimetria e da criatividade do seu corpo.

Em Circo de los pies, Emeli transforma sua patologia em arte, dialogando com a deformidade que existe em todo ser humano, independentemente de ser uma pessoa com deficiência ou não.

O espetáculo se propõe a ser acessível, colocando o corpo com deficiência como protagonista e autor do seu próprio discurso. A interpretação em Libras, realizada por Suzi Daiane, e a audiodescrição, feita por Pedro Torres, são intrínsecas à cena e ao jogo da palhaça, fazendo-se presentes como fios dramatúrgicos. Com uma acessibilidade poética, estética e inclusiva, que vai além de uma tradução e descrição técnica da cena, a obra gera sensações e constrói um jogo cativante com o público, seja ele vidente, não vidente, surdo ou ouvinte.

Emeli se entrega de forma intensa, fazendo uma interpretação de tirar o fôlego. Seus pés, Pezinho e Pezão, são os protagonistas desse show sensacional. É inevitável usar adjetivos para descrever a experiência: um banho de alegria e lirismo, uma enxurrada de ludismo, mas com os pés firmes na realidade. Circo de los pies é um conforto para o coração, mas também traz espetadas nos nervos, lembrando-nos que sempre podemos mais, sem cair nos clichês da superação. A técnica apurada e a entrega total da atriz capturam e amplificam nossa imaginação, levando-nos a uma jornada inesquecível.

É um convite para dilatarmos nossos corações ao infinito, como propôs a poeta Hilda Hilst e nos entregarmos à magia transformadora da arte.

“Circo de los pies” é uma pequena joia que nos contamina de alegria, mas com um fio-terra existencial de que a vida é uma luta constante, abordada com uma leveza perturbadora. Emeli Barossi e a La Luna Cia de Teatro nos presenteiam com uma obra necessária, que ultrapassa limites e nos faz acreditar na essência transformadora da arte.

Ficha Técnica

Atuação e concepção: Emeli Barossi
Trilha Sonora e Sonoplastia: Pedro Torres
Iluminação: Thiago de Castro Leite
Roteiro de Audiodescrição: Fernanda Rosa, Matheus Costa e Emeli Barossi
Figurino: Adriana Barreto
Produção: La Luna Cia de Teatro
LIBRAS: Suzi Daiane
Audiodescrição: Pedro Torres

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Uma jornada encantadora inspirada em Lorca
Crítica de Quatro Luas

Quatro Luas, entre o humor, a magia e leves reflexões existenciais. Foto: Ivana Moura

O espetáculo Quatro Luas, apresentado pelo coletivo O Bando de Olinda (PE) no Teatro Marco Camarotti, em Recife, como parte da programação do Palco Giratório 2024, é uma experiência teatral envolvente que celebra a poesia, a imaginação e a infância em peça inspirada na obra de Federico Garcia Lorca, um dos mais importantes escritores espanhóis do século XX. Conhecido principalmente por suas obras voltadas para o público adulto, como Romancero Gitano e Bodas de Sangue, Lorca também dedicou parte de sua produção literária às crianças, com destaque para Os Encontros de um Caracol Aventureiro, uma coleção de poemas que explora o mundo através dos olhos de um pequeno caracol, e Os Títeres de Porrete, uma peça de teatro que aborda temas como a liberdade e a opressão de forma lúdica e acessível aos pequenos.

Desde o primeiro momento, o público é cativado pela atmosfera mágica criada pela trupe de atores que, representando ciganos, canta, toca e dança nos corredores e hall do teatro. Essa introdução serve como um convite para adentrar o universo onírico proposto pelo espetáculo, preparando os espectadores para a jornada que está por vir.

Ao entrar na sala de espetáculos, somos recebidos por uma cenografia e uma iluminação que transportam a plateia para um mundo de sonhos e descobertas. A história acompanha o protagonista Federico, um pequeno boneco manipulado pelo elenco com destreza e sincronia, em sua busca pela Lua Cheia. A jornada de Federico é repleta de encontros fantásticos com animais falantes, exércitos de formigas e as quatro fases da Lua personificadas.

Vários bichos falantes ocupam a cena, como a Gata Azul. Foto: Ivana Moura

O texto de Claudio Lira, responsável também pela direção, é rico em referências à obra de Lorca, a linguagem poética e as metáforas utilizadas oferecem diferentes camadas de leitura, cativando tanto as crianças quanto os adultos. Os diálogos são bem construídos, com momentos de humor leve e inteligente, como no encontro com as duas Rãs, uma que não enxergava muito bem e outra que não escutava muito bem, criando situações divertidas e reflexões filosóficas sobre a finitude.

O elenco, formado por Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos, demonstra versatilidade ao transitar entre a manipulação de bonecos, as falas, as canções e a interação com a plateia. A cumplicidade entre os atores e o público é evidente, criando uma atmosfera de encantamento compartilhado. Momentos como o conselho da Mariposa para o Menino ir dançar e viver a vida, ou a frescura da Gata Azul, arrancam risadas e reflexões.

A trilha sonora original de Douglas Duan tem canções executadas ao vivo por Arnaldo do Monte (percussão) e Zé Freire (violão), e estão perfeitamente integradas à narrativa, amplificando a carga emotiva das cenas e marcando as nuances da peça. A música se torna um elemento fundamental para a imersão do público no universo poético criado em cena.

A direção de Claudio Lira é sensível e precisa, explorando de forma inteligente os recursos do teatro de bonecos e a linguagem do teatro animado. O ritmo da peça é bem conduzido, com momentos de introspecção e poesia alternados com outros de dinamismo e interação com a plateia. O espetáculo consegue dosar de forma equilibrada os momentos de apelo emocional, as frases de efeito existencial e os achados poéticos, mantendo o público envolvido do início ao fim.

Quatro Luas é um espetáculo que celebra a força da palavra, a magia do teatro de bonecos e o talento de seus criadores. Ao se inspirar no universo lorquiano e, mais especificamente, em suas obras voltadas para a infância, a peça oferece uma experiência teatral encantadora, que convida o público a se reconectar com a criança interior e a redescobrir o poder transformador da imaginação.

FICHA TECNICA:

Dramaturgia e Encenação: Claudio Lira
Elenco: Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos
Músicos: Zé Freire (Violão) e Arnaldo do Monte (Percussão)
Dramaturgia Sonora, Direção Musical e Preparação Vocal: Douglas Duan
Iluminação: Eron Villar
Direção de Arte: Claudio Lira e Célia Regina
Criação e confecção dos bonecos e adereços: Romualdo Freitas e Célia Regina
Criação e confecção das Luas: Romualdo Freitas, Célia Regina e Adriano Freitas
Confecção da Árvore: Douglas Duan
Registro de Fotos e Vídeos: Colibri Audio Visual/Morgana Narjara
Produção: Claudio Lira e o Grupo
Realização: O Bando Coletivo de teatro.

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A trajetória de uma guerreira do samba
Crítica de Leci Brandão – Na Palma da Mão

Leci Brandão – Na Palma da Mão. Foto: Valmyr Ferreira

O espetáculo Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical biográfico que presta homenagem à vida e à obra de Leci Brandão, uma das mais influentes cantoras e compositoras do samba brasileiro. Nascida no Rio de Janeiro, Leci rompeu barreiras ao se tornar a primeira mulher a integrar a prestigiosa ala de compositores da Mangueira, afirmando-se como uma artista engajada que sempre utilizou sua música como instrumento de denúncia e resistência, abordando temas como desigualdades sociais, racismo, violências de gênero e conservadorismo.

A montagem revisita a trajetória de Leci desde suas origens humildes na periferia carioca até sua consagração como uma das vozes mais potentes e respeitadas da música popular brasileira, destacando a relação profunda e transformadora com sua mãe, Dona Lecy, figura fundamental em sua formação como mulher, artista e cidadã.

A importância cultural e política de Leci Brandão – Na Palma da Mão se manifesta em diversas camadas. Inicialmente, o musical se insere em um movimento crescente de produções que valorizam a presença de narrativas e profissionais negros nos palcos brasileiros, contribuindo para a diversificação e a democratização do teatro musical no país. Além disso, ao abordar a história de Leci, o espetáculo ilumina o pioneirismo de uma mulher negra que rompeu barreiras e ocupou espaços de poder em uma sociedade marcada pelo racismo e pelo machismo, tornando-se um símbolo de resistência e empoderamento.

A peça cita en passant a coragem de Leci em afirmar publicamente sua identidade lésbica ainda nos anos 1970, período de intensa repressão e conservadorismo. Embora o recorte dramatúrgico e de direção se concentre na relação de Leci com sua mãe, Dona Lecy, explorando os laços afetivos, os aprendizados e as trocas entre essas duas mulheres e suas lutas no mundo, seria fundamental abrir espaço para abordar esse aspecto essencial da trajetória de Leci Brandão.

Em um momento de avanços por visibilidade e direitos LGBTQIA+, mas também de recuos com a marcha do fascismo, seria crucial que a peça incorporasse mesmo que de forma sutil, a decisão corajosa de Leci de se afirmar como lésbica em pleno regime militar. Essa escolha não apenas presta um tributo mais completo à artista, como também posiciona a obra diante dos desafios atuais. Além disso, o comportamento destemido de Leci Brandão ecoou ao longo das décadas, inspirando gerações de artistas e ativistas LGBTQIA+ a lutar por seus direitos e a expressar suas identidades sem medo, deixando um legado de coragem e determinação que poderia ser celebrado e transmitido na montagem. Até porque o espetáculo ressalta o compromisso inabalável da artista em utilizar sua arte como instrumento de transformação social.

O texto do espetáculo, assinado por Leonardo Bruno, revela uma estrutura dramatúrgica que transita entre passagens narradas e diálogos vívidos entre os personagens. A narrativa segue uma temporalidade predominantemente cronológica. Essa estrutura é enriquecida pelas canções, que pontuam momentos-chave da trama. Essa construção dramatúrgica entrelaça os elementos escolhidos para compor a trajetória de Leci Brandão no palco: a música como expressão de resistência e celebração da vida; a religiosidade como fonte de sabedoria e conexão com o sagrado; e o engajamento político como compromisso ético com a transformação da realidade.

As intervenções bem-humoradas dos instrumentistas funcionam como respiros e comentários, buscando uma cumplicidade com a plateia. 

Sob a direção de Luiz Antonio Pilar, premiado com o Shell de melhor diretor, a encenação valoriza, com delicadeza e humanidade, a relação entre Leci e sua mãe, Dona Lecy, revelando a cumplicidade, o afeto e a força dos laços que unem essas duas mulheres. Pilar privilegia a música como elemento central da narrativa, entendendo o samba como instrumento de resistência, afirmação identitária e comunicação com o público. As composições de Leci são trazidas à cena como convites irresistíveis para que a plateia se integre ao espetáculo, criando uma atmosfera de alegria, celebração e partilha que evoca a energia contagiante das rodas de samba. 

Há uma sequência exaustiva de músicas,  composições que se tornaram clássicos da música popular brasileira. Sucessos como A Filha da Dona Lecy, canção autobiográfica que homenageia a mãe da artista, e Papai Vadiou, samba que retrata com sensibilidade e humor as dificuldades enfrentadas por uma família chefiada por uma mulher negra. Além de Gente Negra, um hino de afirmação da identidade e da resistência afro-brasileira, e Preferência, samba-canção que exalta a liberdade de amar sem rótulos ou preconceitos. E a antológica Zé do Caroço, uma das canções mais emblemáticas de sua carreira, que denuncia a violência policial contra as populações periféricas.

Além das composições de Leci, o espetáculo também rende homenagens a outros gigantes da música brasileira que cruzaram o caminho da artista. É o caso de Cartola, representado por Corra e Olhe o Céu, e da própria Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que acolheu Leci como a primeira mulher em sua ala de compositores e que é lembrada pelo samba-enredo História pra Ninar Gente Grande. Mas a trilha não é suficiente para criar nuances na dramaturgia. 

Embora o espetáculo apresente inúmeras qualidades, é importante reconhecer alguns aspectos para ser pensados. Durante a apresentação realizada no Teatro do Parque, no Recife, como parte da abertura do Festival Palco Giratório, o público demonstrou entusiasmo e apreço pela montagem, aplaudindo calorosamente ao final. No entanto, a estrutura narrativa predominantemente cronológica revelou, em boa parte, uma certa monotonia, carecendo de reviravoltas ou de uma maior inventividade formal.

A opção por uma linearidade quase didática, se por um lado facilita a compreensão da trajetória de Leci Brandão, por outro acaba limitando as possibilidades de experimentação estética. Apenas citar ou não entrar nos conflitos de passagens importantes enfraquece o potencial explosivo dessa trajetória. Como exemplo, a entrada e a permanência da artista no time de compositores da Mangueira e os bastidores mais conflituosos são evitados ou apenas citados, quando poderiam ser os giros de acionamentos de potência dentro do espetáculo.

Outro ponto que merece atenção é a questão da inteligibilidade das falas em determinados momentos do espetáculo. Apesar dos atores demonstrarem grande talento vocal e interpretarem as canções com maestria, em diversas passagens dialogadas suas palavras se tornavam incompreensíveis, seja por problemas acústicos do teatro, falhas nos equipamentos de som ou mesmo pela projeção vocal insuficiente dos intérpretes.

Essa perda parcial das falas compromete a fruição plena da narrativa e dificulta o envolvimento emocional do público com a história. 

Verônica Bonfim, Sérgio Kauffmann e Tay O’Hanna. Foto: Valmyr Ferreira

O elenco, composto por Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sérgio Kauffmann dão conta de todos os personagens. Tay interpreta Leci com muita personalidade, captura a força, a garra e a paixão dessa artista em cada gesto, olhar e inflexão vocal. Sua performance revela as lutas, as alegrias e as dores que moldaram esse percurso. Verônica Bonfim, por sua vez, confere à figura de Dona Lecy uma combinação tocante de doçura e determinação. Sua atuação está carregada da sabedoria e o amor dessa mãe que foi o alicerce e a inspiração constante na vida de Leci.

Sérgio Kauffmann demonstra versatilidade ao encarnar diversos personagens masculinos que cruzaram o caminho de Leci, desde o líder comunitário Zé do Caroço, compositor Cartola, o pai da cantora ou na pele de Exu.

O foco central do espetáculo é celebrar a vida e o legado de Leci Brandão, convidando os espectadores a mergulhar em seu universo pessoal e artístico de forma sensível e empática. Ao adotar essa abordagem, o musical se alinha ao conceito de “ética do cuidado”, proposto pela pesquisadora e ativista Patricia Hill Collins. Essa perspectiva valoriza a empatia, a responsabilidade e a conexão como princípios norteadores na produção e partilha de saberes e narrativas, especialmente quando se trata de histórias de mulheres negras.

Ao contar a trajetória de Leci Brandão, o espetáculo busca estabelecer uma relação de proximidade e afeto com o público, convidando-o a se reconhecer e se emocionar com as lutas, as alegrias e as conquistas dessa artista. Essa abordagem empática permite que a plateia se conecte com a humanidade de Leci, entendendo suas escolhas, seus desafios e seus triunfos a partir de uma perspectiva de cuidado e solidariedade.

Já a representação da religiosidade de matriz africana no espetáculo é um ponto que demanda reflexão. Incluir elementos da religiosidade afro-brasileira no musical é uma escolha corajosa e necessária, contribuindo para a valorização e visibilidade das tradições.

No entanto, mesmo que os envolvidos na montagem tenham um conhecimento profundo das questões religiosas, nem sempre esse entendimento é traduzido de forma plena no palco. 

Apesar das ressalvas apontadas, Leci Brandão – Na Palma da Mão permanece como um espetáculo de grande relevância e necessidade, celebrando a trajetória de uma artista fundamental para a cultura brasileira. Ao colocar no centro dos holofotes a história de uma mulher negra que enfrentou e desafiou os preconceitos e as opressões de seu tempo, o musical contribui significativamente para a construção de uma narrativa mais plural.

 

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