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Divas’s inspired

Com vocês, uma super dançarina: Aurhelia. Foto: Rodrigo Moreira

Não era setlist da Tribuna FM ou coletânea de CD’s de grande sucesso. O repertório das divas da música foi escolhido pelas palhaças da banda As levianas para o espetáculo As levianas em Cabaré Vaudeville, que encerrou no último sábado a V Mostra Capiba de Teatro. No espetáculo, Mary En (Enne Marx), Baju (Juliana de Almeida), Aurhelia (Nara Menezes) e Tan Tan (Tâmara Floriano) fazem uma audição, mas todas são reprovadas. Ainda assim, não desistem da missão de também se tornarem divas. O espetáculo conta ainda com a participação da musicista Rosemary Oliveira.

A dramaturgia serve como guia – e agrega as músicas que cada uma canta – para levar ao palco, na realidade, a personalidade de cada palhaça. Lembro que conversando com a atriz Adelvane Neia, que inclusive ministrou este ano uma formação de palhaça, uma parceria entre a Cia. Animé, das meninas da banda As levianas, e a Duas Companhias, de Lívia Falcão e Fabiana Pirro, ela me disse o quanto a palhaça precisava nascer naturalmente, a partir das características da sua intérprete, ressaltadas por uma espécie de lente de aumento.

Em As levianas em Cabaré Vaudeville isso fica muito claro ao público. Mary En consegue uma empatia extraordinária com o público que se diverte com a sua bebedeira no palco; Baju é dramática, se entope de remédios e é capaz de nem perceber que a banda toda já parou de tocar aquela música e ela continua lá, na vibe. Assim acontece também com Aurhelia, palhaça de coreografias muito elaboradas, e a maluquinha Tan Tan.

A dramática Baju

A direção de arte é de Marcondes Lima. E aí percebemos, uma marca de Marcondes, o cuidado em todos os detalhes. Cada figurino, maquiagem, é reflexo da identidade daquela palhaça. Complementam a projeção, que traz o old style do cinema mudo, e a iluminação de Luciana Raposo.

Como bem disse Rodrigo Dourado, é um espetáculo que tem tudo para virar moda na cidade, assim como aconteceu com O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas. Porque tem qualidade, mas ainda alia comédia, música e trata o público, mesmo diverso, de maneira igual. Não é um espetáculo só para “os iniciados no teatro”. Pelo contrário, cumpre a lacuna e a função da formação de plateia, já que encanta, surpreende e deixa todo mundo feliz quando as luzes se acendem.

Ah…e não poderia deixar de registrar que quero muito ouvir a música Donde estas, Yolanda? que faz parte do repertório da banda! 😉

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Como formalizar o caos?

Amaranta, espetáculo da Trup Errante, apresentado na V Mostra Capiba. Foto: Rodrigo Moreira

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

(Identidade, de Mia Couto)

O desejo era o autoconhecimento. Era encontrar pontos de confluência, mas também convergências, que pudessem revelar mais deles mesmos. Afinal, decidiram entregar as suas vidas à arte, ao teatro, como fazem questão de dizer no espetáculo. Então nada melhor do que se debruçar sobre a história desse ofício não só para resgatar o passado, mas para conseguir se livrar de quaisquer amarras, preconceitos, e seguir adiante. Era pretensioso o projeto da Trup Errante, formada em Petrolina, no Sertão pernambucano: trazer à cena a história de 2.500 anos de teatro. Como era mesmo muito amplo, decidiram ao menos se concentrar um pouco mais no olhar feminino sobre essa arte. E assim surgiu Amaranta, espetáculo apresentado no último fim de semana da V Mostra Capiba de Teatro. É também o projeto de conclusão de curso do diretor Thom Galiano, sob a orientação de Érico José.

A execução da proposta do grupo ainda é um desafio a ser construído. Se logo no início a musicalidade, a participação lúdica do público – com estrelas brilhando que ganham nomes de atrizes – , a revelação da personagem Amaranta, prendem a atenção do espectador, isso vai se perdendo aos poucos. Para um grupo que leva ao palco uma organização caótica, a quebra da cena para que os próprios atores possam se colocar, deixa vários espaços para a improvisação, e encena até uma briga entre os próprios atores, é contraditório que, em muitos momentos, a opção seja pelo didatismo – e olhe que uma das próprias personagens brinca com isso. “Isso não vai dar certo, está muito didático”. Talvez o grupo tenha mesmo que aceitar que a identidade do espetáculo está na formalização do “caos”.

Se não dá mesmo para apresentar a história do teatro, como o próprio grupo percebe, há que existir uma apropriação maior e mais natural dessa história, para que o público possa compreendê-la, mas de forma mais fluida. Mesmo caótica, como se propõe a encenação de Thom Galiano, a dramaturgia (e para isso ela não precisa perder os pontos de fuga para a improvisação) precisa ser melhor costurada, repensada. Ao mesmo tempo em que é bom ver as atrizes refletindo em cena sobre o seu papel, assumindo os seus nomes e não o de personagens, não dá para que o espetáculo vire uma terapia de grupo. Isso até é possível, mas se a proposta for mesmo esquecer o público ou ao menos não se importar com a recepção do espetáculo.

Ainda assim, apesar das falhas na sua execução, Amaranta reflete a coragem de um grupo jovem, mas com muito talento. Nesse espetáculo, estão em cena Brisa Rodrigues, Joedson Silva e Raphaela de Paula. Dá para perceber o quanto há empenho e superação das dificuldades, seja na iluminação, nos elementos de cena, no próprio trabalho do ator. A musicalidade é um elemento que acrescenta e a participação do público, se eles conseguirem surpreendê-lo assim como no início da montagem, pode ser bastante efetiva. É um trabalho que tem tudo para amadurecer.

Três atores estão em cena no espetáculo

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A experiência do invisível

O presente, com Kellia Phayza e Paula Carolina. Foto: Rodrigo Moreira

Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
(Mateus 6:19-21)

Homens e mulheres invisíveis. Estão bem perto de nós, mas é muito difícil que consigamos enxergá-los. A vida é mesmo tão corrida. Não posso perder o ônibus, a aula, o horário do trabalho, a sessão do cinema. Será que a vida acontece tão depressa assim para todos? Os atores da companhia Fiandeiros dizem que, para os moradores de rua, é como se o tempo simplesmente não passasse. Uma eterna espera por algo que não se materializa. Não bastava que esses atores pesquisassem, discutissem. Precisavam ver de perto, sentir na pele – mesmo sabendo que voltariam para as suas casas depois – o que era ser um morador de rua. Essa vivência se transformou no espetáculo Noturnos, apresentado na V Mostra Capiba de Teatro.

A experiência da invisibilidade – como contam, pessoas conhecidas cruzaram com eles nas ruas, mas nem notaram – é comum aos três quadros dramatúrgicos independentes que compõem a montagem. No primeiro, O presente, a relação entre duas mulheres (Kellia Phayza e Paula Carolina); em A cura, a loucura de um homem (Jefferson Larbos); e, por fim, dois artistas frustrados (Manuel Carlos e Daniela Travassos) em Salobre.

Escrevi sobre esse espetáculo, que à época ainda era só a conclusão do projeto de pesquisa Paralelas do tempo – A teatralidade do “não ser”, em maio, quando ele foi apresentado no próprio espaço da Fiandeiros, na Boa Vista, durante o Palco Giratório. Já ali, me provocava. Por expor algo que normalmente não queremos ver. Por trazer ao palco o dedo na ferida. Mas não a partir de uma visão elitista. Claro que sempre será um olhar externo; mas pelo menos há a tentativa de se desatar da relação opressor – oprimido.

Jefferson Larbos em A cura

Um dia depois do espetáculo no Capiba, ouvi um questionamento: “será que a montagem, no caso de ser apresentada para moradores de rua, iria reverberar? Eles iriam se identificar com aquele discurso?”. Seria uma experiência bastante interessante. E eu me arrisco a dizer que não é preciso que os atores falem como os moradores de rua ou que o texto, em toda a sua poesia, seja captado por completo. Acho que algumas teias de aproximação se formariam sim.

O tema não é fácil. Pelo contrário, traz o desafio, que esses atores souberam superar. Manuel Carlos, também responsável pela cenografia, maquiagem (estava um pouco exagerada…todo mundo ficou igual, branco!) e figurino, dá todas as nuances de um palhaço que não tem mais graça, mas teima, como num ritual, em se despedir do ofício. Segurar um monólogo sobre a loucura também não é nada fácil, mas percebo que Jefferson Larbos cresceu desde a última vez que o vi, está caminhando com muito mais naturalidade pelo seu personagem. Ah…não podia também esquecer a luz, pesquisada por Suzana Vital, e a sonoplastia, que ficou sob responsabilidade de André Filho.

Estamos vivos ou mortos? Sentir fome é bom, é sinal de que ainda se está vivo. Embora castigo de morte seja não saber para quê se vive. Qual o endereço da rua onde existe amanhã? Todo mundo tem um pedaço invisível dentro de si. (colagem de trechos da peça)
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Fui ao teatro Capiba na última quinta-feira de carro, com uma amiga. Passávamos numa rua esquisita, não sei nem que bairro era aquele, quando vi algumas poucas pessoas na calçada e um homem tendo um ataque que parecia ser de epilepsia. Paramos o carro. O homem parecia voltar, aos pouquinhos. Recusou remédio. Disse que morava muito longe dali. Que tinha ido fazer uma visita. Alguém disse para termos cuidado naquela área. De repente um motoqueiro para: “isso é mentira. Já vi esse homem fazer isso três vezes só para ganhar algum dinheiro. Vão embora”. Saímos todos, rapidamente. O homem ficou na calçada, sentado. Não sei se era mentira, se era verdade. Senti um vazio, uma tristeza.

Daniela Travassos e Manuel Carlos

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De: Pollyanna / Para: Ophélia

Ophélia conversando com o seu amigo coveiro. Foto: Rodrigo Moreira

Querida Ophélia,
Foi tão bom encontrá-la na última semana na V Mostra Capiba de Teatro! O público ficou encantado com a atuação segura e ao mesmo tempo delicada de Pollyanna Monteiro. Trazer ao primeiro plano a sua história, dizer o que ela – e o que nós – pensamos e traçar uma relação tão íntima e sem atropelos com o texto de William Shakespeare é uma descoberta. De que existem maneiras de recontar os clássicos sem a sisudez dos “grandes” atores e diretores. De que dá para ser um “galo de campina” como Paulo Michelotto, diretor, conseguindo dar leveza, mas ao mesmo tempo sustentação, para um trabalho que agarra a plateia pela simplicidade e pouca pretensão.
É bem verdade que existem muitos pontos de fuga na sua dramaturgia – e isso nem é um defeito, já que os atores da Cia de Teatro e Dança Pós-Contemporânea d’ Improvizzo Gang estão bem acostumados a lidar com o imponderável. A participação do público, embora eu ache que isso possa se tornar mais natural ainda à montagem, é um desses elos com o inesperado. Vai que o príncipe não aceita ser príncipe? Não teria o menor problema, tenho certeza. Você logo conseguiria outro. Eram muitas pessoas na plateia que podiam também ocupar os papéis de rei, rainha, coveiro.
De maneira muito informal, a dramaturgia nos alcança, vai nos tomando aos pouquinhos; é forte, profunda. A conversa que você trava com o coveiro e a capacidade de passear tão tranquilamente entre esses personagens, já que a participação do rapazinho de cabelos cacheados ficou restrita à ótima dublagem, são pontos fortes na sua história. Também há intrigas, relacionamentos perdidos, mas há bem mais o encontro com o que se é de verdade, com a realidade que nos cerca, com a dimensão que tomamos de nós mesmos.
A iluminação desenhada por Cleisson Ramos dá os contornos da sua trajetória. E como é lírica a forma como o espetáculo começa. Contando exatamente o seu fim, embora isso nem de longe signifique que a esperança para você acabou. O silêncio é temporário.
Dê um beijo por mim em Pollyanna Monteiro, mesmo nome, mesma terra e, quem sabe se tivermos mais um tempinho juntas, descobrimos até parentes em comum. Mande minhas saudações ao diretor Paulo Michelotto. É ótimo ver a sua irreverência e a maneira com que quebra as regras no palco e constrói as suas próprias, para depois tornar a quebrá-las.
Espero reencontrá-la em breve,
Pollyanna Diniz

Pollyanna Monteiro como Ophélia

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Memórias de um corpo que dança

Tainá Barreto em Guarda sonhos. Foto: Rodrigo Moreira

É como uma poesia corporal. Em seu solo Guarda sonhos, a brasiliense Tainá Barreto dá a sua própria configuração para as manifestações populares, especificamente para o cavalo-marinho e o frevo. O contato com os brincantes da Zona da Mata Norte de Pernambuco impregnaram o corpo dessa bailarina que teve uma formação acadêmica – do clássico ao contemporâneo.

O espetáculo, apresentado na V Mostra Capiba de Teatro, é esse encontro com a cultura popular. Um encontro em que as duas partes trocam, respeitam os seus limites, crescem. Se não fosse assim, haveria o grande perigo de o espetáculo ser uma reprodução dos passos do cavalo-marinho, uma exibição de alguém que aprendeu os passos eletrizantes do frevo. Não. Tainá assume o seu olhar estrangeiro, mas se permite enveredar nesse universo para, a partir daí criar as suas próprias referências e desfiar suas impressões e memórias.

O corpo se modificou nesse processo. Há momentos de quebra, tensão, mas também de extremo lirismo e encantamento. O espetáculo se constrói nas zonas de limite entre a dança e o teatro, embora a dança ocupe um espaço muito maior na cena. A partir de símbolos simples, como uma série de miniaturas de sombrinhas de frevo, ou uma saia cheia de retalhos, Tainá ergue belas imagens aos olhos do público. É assim, por exemplo, quando ela demarca o espaço em que está dançando com uma areia muito fininha ou quando joga em si mesma uma chuva de papéis coloridos.

Nesse sentido, música e iluminação propõem um ambiente lúdico, onírico, como deixa entrever o título do espetáculo. Desde o início, quando os músculos da bailarina são vistos em movimentos e ângulos incomuns, aos pouquinhos, como algo que vai tomando forma devagar. O desenho da iluminação (e é mesmo como uma pintura) é de Lineu Gabriel; e quem assina a direção musical é Helder Vasconcelos. A interferência de Helder, músico, ator, dançarino, que tem uma relação muito próxima com as manifestações populares, vai além da criação da direção e da criação da trilha (que também é de Johann Brehmer). Ele foi um dos “provocadores cênicos” do trabalho da bailarina, ao lado de Carolina Laranjeira e Lineu Gabriel.

Se não há incorporações apenas, o que Tainá viveu quando do contato com essas manifestações populares já se embrenharam em sua pele, em sua musculatura tão visivelmente marcada pela dança contemporânea. São referências que a bailarina agora carrega e que certamente ajudarão a delimitar novos passos.

A direção musical do solo é de Helder Vasconcelos

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