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Plateia assume protagonismo em Topo da Montanha

Sessão de O Topo da Montanha no Recife, com Lázaro Ramos e Thaís Araújo. Foto: Reprodução do Facebook

Sessão no Recife da peça sobre Martin Luther King, com Lázaro Ramos e Taís Araújo. Foto: Facebook

Teatro Guararapes lotado na sessão de ontem (sábado, 29/04) de O Topo da Montanha, com Taís Araújo e Lázaro Ramos. Há muito tempo eu não presenciava uma movimentação assim. Anos, diria. Praticamente todos os 2.405 lugares, distribuídos entre plateia e balcão, ocupados. E com um público colorido, festivo, aguerrido. Pretos de melanina mais e menos acentuadas. Cabelos Black Power, turbantes e muitos acessórios de “eu sou mais eu”. Depois das 20h, filas gigantescas formavam caracóis no saguão do teatro, se espalhando por todo o piso. Filas ainda para comprar ingressos. Até a produção local ficou surpresa. Afinal a noite desse sábado balançava ao som pesado do Abril pro Rock, ali do lado no Chevrolet Hall; o Teatro de Santa Isabel com ingressos esgotados para apresentação da Orquestra Ouro Preto com The Beatles, sem contar com programas de concentração menor de público de teatro, dança e música.

O Topo da Montanha é um fenômeno de público. E tem muitos bons apelos para isso. O fio da história de Martin Luther King, líder pelos direitos dos negros nos anos 1960, as repercussões dessas ideias e a peleja contra o preconceito nesse século 21. E o celebrado casal de atores brasileiros negros. A representatividade deles, juntos também no programa televisivo Mister Brau, a postura cidadã de ambos e até mesmo o caso de racismo que Tais Araújo foi vítima na internet, denunciou e virou símbolo de luta contra o preconceito.

A dupla multiplica empatia diante da plateia. O Topo da Montanha é um acontecimento. Foi assim no Recife. Com o público de atitude. Devido à demanda, às filas gigantes já mencionadas, a encenação atrasou meia hora em seu início. Depois do terceiro toque, alguém puxa um Fora Temer que parece uma senha para grito de guerra, que não é retórica. Grito que não quer calar diante de qualquer desmando. Arrepiante um teatro com quase 2.500 pessoas a bradar em uníssono Fora Temer.

Conversa vai do banal, passa pelo existencial até o sobrenatural. Foto: _Jorge Bispo / Divulgação

Conversa vai do banal, passa pelo existencial até o sobrenatural. Foto: Jorge Bispo / Divulgação

Território preparado para ouvir as palavras de Luther King em defesa pacífica pela igualdade.
A ação se passa no quarto de um hotel em Memphis, para onde o líder negro se recolheu depois do último discurso, horas antes de ser assassinado, em 4 de abril de 1968. A narrativa retrata de forma ficcional as últimas cinco horas de vida dele, que trava uma conversa com a camareira Camae, que vai do banal, passa pelo existencial e chega ao sobrenatural.

Lázaro faz um Luther King erudito, um doutor, prêmio Nobel da Paz, mas interessado e atencioso com uma mulher comum, sem papas na língua, que contrapõe suas argumentações. 

Teatro convencional, palco com 1.050m² e boca larga. O cenário (André Cortez) do quarto gaiola transparente ocupa o centro. Uma plateia ligada aplaudiu em cena aberta algumas falas sobre a força e a beleza negras ou o estranho silêncio de outros que se dizem de bem. Uma energia circulava de que estávamos ali também contra o retrocesso, para nos fortalecer.

Peleja entre a cmareira e o líder negro

Peleja entre a camareira e o líder negro

Os temas são densos, mas a opção da dramaturgia de Katori Hall e da direção de Ramos é por escapes de comédia. Ambientação realista, com efeitos de raios e trovões (iluminação de Valmyr Ferreira); elementos de comédia romântica e realismo mágico na narrativa e nas soluções. As trepidações políticas são entrecortadas de humor.

Alguns recursos dramáticos são explorados. com ponto de giro para revelar a verdadeira identidade da camareira atraente e falante, que saca do pensamento de Malcolm X na sua argumentação. A reviravolta para falar sobre desígnios divinos e mistérios da vida – que em princípio provoca estranheza – anuncia a pergunta de quem vai conduzir o bastão.

A peça arremata com homenagem às mulheres e homens de fibra e seus fatos históricos que vieram antes de nós, em vídeos e fotos da composição de Rico e Renato Vilarouca.

Apesar da centralidade do texto e da cena estruturada no diálogo, o espectador está potencializado enquanto criador, que sabe que há uma luta em comum. No palco e na plateia; e principalmente fora do teatro. A refletir sobre os vínculos humanos dentro do sistema capitalista. Essa relação de intersubjetividade traduz a luta antirracismo e por direitos civis, que se materializa no corpo dos atores e do público. E esse espectador, que pleiteia o protagonismo, articula esse deslocamento espaço-temporal do discurso de Memphis para o Brasil de hoje.

Ovacionados após a apresentação, os atores Taís Araújo e Lázaro Ramos se posicionam no circuito da esperança, mesmo com a realidade que exige o debate sobre preconceito e racismo. Emocionados com aquele mar de gente, Lázaro comentou “Momento de luta… Grito junto, claro!”, seguido por mais um Fora Temer! Esses dois vibram e estimulam coragem, autoestima e poder do afeto.

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