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Noites traiçoeiras, o curta-metragem – segunda versão

Suzana Costa  protagoniza primeiro curta de João Lucas Melo Medeiros

Suzana Costa protagoniza primeiro curta de João Lucas Melo Medeiros

Conheço o trabalho de Suzana Costa desde a época de Muito pelo contrário (quando ganhou o importante prêmio Samuel Campelo) e O pequenino grão de areia, primeiros textos de João Falcão, respectivamente para os públicos adulto e infantil. Aquela trupe talentosa me inspirava para a vida. Eram espetáculos divertidos, poéticos, cheios de energia juvenil. Suzana especialmente me encantava pela força de sua atuação e pela dignidade de sua postura. Minha timidez nunca permitiu que chegasse perto dessa turma.

Do grupo de Teatro Vivencial, eu não assisti a nenhum espetáculo e o que sei foi adquirido através de depoimentos, fotos, vídeos, enfim, da memória alheia. Sei que a montagem de Sobrados e Mocambos, de Hermilo Borba Filho, foi um marco e todos os outros deixaram sua marca de irreverência, deboche e liberdade, nos tempo da ditadura, como Vivencial II, Genesíaco e Repúblicas Independentes, Darling!, de vários autores, sob a batuta do super Guilherme Coelho.

O currículo da moça é recheado e sua atuação a alça a um lugar de destaque no teatro pernambucano. Cordélia Brasil (de Antonio Bivar, com direção de José Francisco Filho), Toda Nudez será Castigada (de Nelson Rodrigues, encenada por Antonio Cadengue), No Natal a gente vem te buscar (texto de Naum Alves de Souza, por João Falcão), Sonho de uma noite de verão, (de Willian Shakespeare, de novo Cadengue).
Também esteve no elenco de As três Farsas do Giramundo( textos de Ionesco, Jean Tardieu e Woody Allen, com direção de Antonio Cadengue, Carlos Bartlomeu e Paulo Falcão). Investiu na dramaturgia com Super Léo, o menor, dirigido por Paulo Falcão.

Sua última personagem no teatro foi Blanche DuBois, de Um Bonde Chamado Desejo, do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, com direção de Milton Baccarelli. A montagem foi alvo de uma provinciana polêmica, sua Blanche não recebeu a bondade nem de estranhos, nem de conhecidos. E Suzana saiu de cena.

Nos últimos anos fez pequenas participações em produções cinematográficas. Aparece numa pontinha no filme Lula, o filho do Brasil, de Bruno Barreto, e está no elenco no Todas as cores da noite, de Pedro Severian.

Filmagens no Alto da Quintadinha

Filmagens no Alto da Quintadinha

Agora ela é a protagonista do curta de estreia de João Lucas Melo Medeiros, Noites traiçoeiras, uma história singela, tocante, de uma vida que está bulindo. Ele assina a direção, o roteiro e a montagem. Conheço João Lucas desde garoto, filho de Gracinha Melo (uma amiga muito querida). Ele é uma figura com um senso de justiça como poucas e de uma doçura desde pequeninho.

Seu primeiro filme de ficção é inspirado em Fátima, (que cuidou dele, da mãe dele e de muita gente e até de mim, em alguns momentos). Fátima é uma criatura desconcertante como seu humor certeiro. Ela é conhecida por titia. O curta faz uma homenagem a essa persona de sabedoria popular.

Locações no centro do Recife

Locações no centro do Recife

Suzana Costa é a alma do filme e sua atuação faz a diferença. Presente em todas as cenas, a atriz brilha no papel da cozinheira suburbana que insiste em crer na vida. Uma mulher brasileira, que quer ser feliz.

Noites traiçoeiras estreou no VII Janela internacional de Cinema, na competição de curtas. Foi o terceiro exibido no começo da noite, no cinema São Luiz, que fica às margens do Rio Capibaribe.

Essa sessão ganhou um significado especial. Domingo, 26 de outubro. Durante a exibição do filme anterior alguém grita. “Dilma está reeleita”. Um frenesi de alegria se fez em corrente dentro do cinema, com comemoração já se formando no lado de fora da sala, em direção ao Marco Zero.

Esta semana, no 16º Festcine – Festival de Curtas de Pernambuco, o público do Cinema São Luiz estava mais focado na exibição dos filmes. A empatia com o curta foi grande e plateia riu mais, entrou nas nuances da personagem ou no jogo da história na fraquezas do homens e torceu para um final feliz para a protagonista.

Vamos ao filme Noites traiçoeiras.

Protagonista busca um amor verdadeiro

Protagonista busca um amor verdadeiro. Na foto, Jomeri Pontes e Suzana

A protagonista não é jovem nem é velha. Tem vitalidade, brilho nos olhos. É meio rabugenta. Mora num morro longe do Recife – no Alto da Quitandinha, em Jaboatão dos Guararapes –, trabalha nas imediações do Mercado São José. E sonha com um grande amor. Noites traiçoeirasJoão Lucas, durante as filmagens João Lucas, durante as filmagens[/caption]

É interessante o olhar do diretor, que valoriza a mulher e nas suas escolhas transforma o machismo dos personagens em algo grotesco, risível. É como se ele colocasse um grande espelho distorcido e aqueles defeitos ganhassem uma proporção crítica.

E é nesse diapasão que são construídas as figuras masculinas que dialogam com a protagonista. Jomeri Pontes faz o “pretendente” cafajeste, grotesco e hilário. É uma composição que ressalta os aspectos cômicos do conquistador barato.

Cláudio Ferrário também vai na linha do caricato, um Zé Mané babão engraçado. O dono do bar decadente, que flerta com Dôri, mas ela já sabe que este não tem futuro. Os outros homens que cruzam o caminho da protagonista são seres fracos, em que as fissuras de suas personalidades ganham contornos de humor. Até a mudança de rota, que marca a esperança com a aparição do romântico bonitão no final do filme.

Marina Duarte interpreta a colega de Dôri, mais jovem que se diverte no mundo. É uma boa atuação de uma garota liberada e de bem com a vida. Luciana Canti defende o papel da cobradora de ônibus alegre e sempre disposta. É uma história contada sem grandes firulas com muita humanidade, respeito e emoção.

Primeira exibição do filme foi no dia do segundo turno das eleições. Esta semana foi projetado no FestCine

Primeira exibição do filme foi no dia do segundo turno das eleições. Esta semana foi projetado no FestCine

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Escracho e purpurina contra a caretice

Grupo Vivencial surgiu nas barbas da Igreja Católica. Foto: Ana Farache/Divulgação

Quatro décadas depois do surgimento dos grupos teatrais Dzi Croquettes e Vivencial, suas histórias peculiares ganham homenagens, livros e filmes

Eles queriam fazer diferente. E conseguiram. As afinidades entre dois grupos que apontaram novos caminhos para o fazer teatral começam com o direito que deram a si mesmos de questionar o estabelecido, no momento em que a repressão vinda com o AI-5 (1968) ainda reverberava.

Purpurina, cílios postiços, salto alto e escracho. O Dzi Croquettes surgiu no Rio de Janeiro, em 1972, por iniciativa de pessoas que já estavam próximas da arte, como Wagner Ribeiro, que queria reunir os amigos da escola de teatro para fazer um espetáculo.

Cláudio Gaya e Cláudio Tovar, atores do Dzi Croquettes

O Vivencial foi criado dois anos depois, em Olinda, nas barbas da Igreja Católica. O líder e mentor Guilherme Coelho era um paraibano que queria ser monge no Tibet, mas foi parar no Mosteiro de São Bento. Encontrou outros “desindexados”, como costuma dizer, e, para celebrar os 10 anos da Associação de Moças e Rapazes do Amparo (Arma), montou um espetáculo. A tensão libertária que havia em cada um dos grupos manifestou-se no palco. “Em Vivencial I, nossa primeira montagem, a proposta era ‘seja você mesmo, busque seu eixo, saia de casa, construa, mude o mundo’”, conta.

Mesmo tendo surgido depois, com proposta estética e conceitual semelhante, o Vivencial não tomou o grupo carioca como modelo. “Era a voz da contracultura. O teatro de revista, por exemplo, era muito forte aqui, com Barreto Júnior. Era pornochanchada, eles faziam coisas muito engraçadas e esse escracho a gente achava interessante. Mas não copiava. Tinha o teatro de revista, Nelson Rodrigues, Maria Bethânia, Secos & Molhados, o próprio Dzi Croquettes, a androginia. O mundo estava respirando isso”, avalia Guilherme Coelho. “Acho que fomos muito mais influenciados pelo Dzi Croquettes na época do Diversiones, que era um café-concerto que abrimos. Os números de plateia, por exemplo, eram uma influência descarada do Dzi, embora não copiássemos, era inspiração”, reconhece o ator Henrique Celibi.

Quase 40 anos depois da explosão em cena do grupo carioca e do pernambucano, suas experiências são lembradas em livros, filmes, menções. Em novembro de 2011, o Vivencial foi o homenageado do Festival Recife do Teatro Nacional, promovido pela Prefeitura do Recife, quando houve também o lançamento da obra Transgressão em 3 atos – nos abismos do Vivencial, assinada pelos jornalistas Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha. Nos próximos meses, deverá ser relembrado no cinema, já que é “referência afetiva” para o filme Tatuagem, primeiro longa dirigido por Hilton Lacerda, que tem como protagonista Irandhir Santos.

O Dzi, por sua vez, teve sua história recontada em detalhes e muitos depoimentos no documentário que leva o nome do grupo, assinado por Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Dzi Croquettes estreou no Brasil no Festival do Rio, em outubro de 2009, e saiu de lá como o melhor documentário, segundo o júri popular e também o oficial. Levou, ainda, o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Cine Fest Goiânia, no Torino GLBT Film Festival, e no Los Angeles Brazilian Film Festival.

Para sempre

“A gente não deixa de ser Dzi Croquettes. A gente não é ex-Dzi Croquettes, a gente é pra sempre. A maneira de pensar, agir, fazer, continua comigo”, diz o ator Cláudio Tovar. “Não existe ex-Viveca”, confirma Suzana Costa, uma das musas do Vivencial, ao lado da bailarina clássica que, quando percebeu, estava nos palcos “com os peitos de fora”, Ivonete Melo.

Vivencial não queria saber de rótulos - nem na vida, nem no palco. Foto: Gilberto Marcelino/Divulgação

Enquanto o Dzi Croquettes era formado só por homens – 13, no total (embora as mulheres, fossem namoradas, tietes, estivessem sempre rondando) –, o Vivencial tinha garotas na sua formação. Agregou, aliás, não só as mulheres. Quando, em 1978, no meio do mangue, no bairro de Salgadinho, construíram o Vivencial Diversiones, havia show de variedades e muitos travestis também se apresentavam. “Além de dar visibilidade positiva ao universo homossexual e se impor contra o autoritarismo político e moral da época, o Vivencial realizou um trabalho de inclusão social, oferecendo aos travestis uma oportunidade de seguir carreira artística. Ao instalar um café-concerto numa comunidade pobre de Olinda, o grupo não só incorporou aquela realidade à dramaturgia vivencial como também incluiu jovens do local nos seus espetáculos”, aponta Cláudio Bezerra.

Havia no Vivencial certo empirismo que se refletia na cena. “O teatro não era aquela coisa acadêmica. Quando você perguntava pelo método e ninguém respondia, é porque não tinha método nenhum. Mas, como salvação pela palavra, foi a melhor coisa que aconteceu”, avalia Suzana Costa. Já os Dzi tiveram a sorte de contar com o americano Lennie Dale, “pai do grupo”, embora eles também estivessem longe de qualquer fórmula acadêmica. “Quando fui assistir ao ensaio, notei que os meninos tinham, assim, uma garra, uma força de vontade tão grande. O que faltava neles era uma técnica de dança”, contou Dale, numa antiga entrevista. “Então, Lennie pegou os brasileiros ‘mocoronga’ e mandou pau em cima, oito horas de trabalho”, confirmou Wagner Ribeiro, também em antigo depoimento – tanto Lennie quanto Wagner já são falecidos.

O Dzi e o Vivencial tinham em comum, no entanto, o improviso, o humor, o sentido crítico no que levavam ao palco. Além, claro, da revolução comportamental vivida nos palcos e fora deles. Eram contra o maniqueísmo. “A cultura dizia que homem era assim, mulher era assim e quem fosse diferente não tinha vez. E a gente disse não: ‘Ser humano é para brilhar e não para morrer de fome’. As pessoas que eram diferentes eram obrigadas a entrar em papéis sociais restritos”, pontua Guilherme Coelho. “O espetáculo deles não era um espetáculo gay. Havia uma sexualidade boa, masculina, feminina, homossexual. Havia uma possibilidade absoluta do exercício da sexualidade”, depõe Pedro Cardoso, no documentário Dzi Croquettes.

Afetividades

Dzi Croquettes, as internacionais

Essa liberdade, os dois grupos levaram para a vida que, nem de longe, foi pacífica, sem conflitos. Até porque tanto os integrantes do Dzi Croquettes como do Vivencial moraram juntos. As relações eram intensas, as emoções viviam à flor da pele. Algumas Vivecas moraram juntas, antes mesmo da criação do café-concerto.
Até por conta do Dzi Croquettes ter surgido no Rio de Janeiro, o alcance que os dois grupos tiveram foi diferente. Os Dzi foram à Europa, tinham em Liza Minelli uma madrinha, fizeram temporada com teatro lotado em Paris. Com Repúblicas independentes, darling, que estreou em 1978, o Vivencial fez apresentações em São Paulo, no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, e no Rio de Janeiro, no Teatro Cacilda Becker. Era uma colagem de textos de jornais, crônicas, contos e poesias de Carlos Drummond de Andrade, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo e ainda depoimentos dos próprios atores.

“O nome do espetáculo era uma coisa extremamente engajada e depois vinha uma ‘pinta’. A gente relativizava tudo. Em São Paulo, lembro o Plínio Marcos, o Antunes Filho na plateia. E, depois, eles queriam saber como aquilo acontecia, porque para a gente era muito natural fazer teatro daquele jeito, usando todos os subsídios para fazer cenário, figurino. Transformando lixo em arte”, conta Fábio Coelho, bailarino do Vivencial.

Tanto o Dzi Croquettes quanto o Vivencial foram sucesso de público, nem sempre de crítica, embora os talentos fossem inegáveis. Talvez por isso mesmo, por reunir tantas possibilidades artísticas, os dois grupos acabaram se desagregando. O Dzi começou a ruir por conta de uma briga que tomou proporções muito maiores do que a sua causa: um cenário que Cláudio Tovar fez para uma apresentação e Lennie Dale não gostou. O Vivencial também se desfez por conta de conflitos. “Não podia faltar céu para tanta estrela brilhar. Todos eram muito brilhantes, com muito ego. Cada um era uma entidade, todos tinham projetos, e nós demos corda para esses projetos. Sempre poli o ego de todo mundo: ‘Você é linda, vai arrasar’, enchia de purpurina. O Vivencial nasceu para brilhar’, afirma Guilherme Coelho. Há um ditado, entre o cômico e o malicioso, que afirma, bem ao estilo de deboche dos dois grupos: “Bicha não morre, vira purpurina”. O Dzi Croquettes e o Vivencial, nesse caso, só nesse, não fugiram à regra.

(Matéria publicada na edição de Janeiro da Revista Continente)

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho. Foto: Henrique Celibi/acervo pessoal

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