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Mostra de Mulheres Pretas discute visibilidade

Aline Gomes performa Mãe Maria. Foto: Shilton Araújo

Nesta quinta-feira, 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola do século 18, O Poste Soluções Luminosas abre a programação de uma iniciativa fundamental: a PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas.

A invisibilidade da mulher negra é um dos muitos reflexos do racismo institucional. Quando pensamos no contexto da arte, essa realidade não é diferente. Talvez por isso, os trabalhos que compõem a PretAção tratem sobre representatividade, o enfrentamento cotidiano do preconceito e de todas as formas de violência sofridas pelas mulheres negras.

“Queremos visibilizar todas essas artistas que estão participando da primeira edição da PretAção, visibilizar as que vieram antes de nós e, inclusive, quem vem depois, como Eloísa, minha filha, que tem só dois anos. A gente quer deixar esse espaço de representatividade, esse lugar de fala, para que outas pretas, as que estão vindo, as que vão chegar, possam assumir esse lugar. E que o discurso não seja de resistência, mas de existência”, afirma Agrinez Melo, uma das idealizadoras da ação, que não conta com nenhum apoio governamental.

Muitos dos espetáculos e performances transitam pelo documental, pelo autobiográfico, como é o caso de Mi Madre, de Jhanaína Gomes, que traça relações entre a sua história e as histórias de mulheres da sua família, explicitando uma relação de tensão entre a presença masculina e feminina. Ou do solo da própria Agrinez Melo, Histórias Bordadas em Mim, um convite para um chá e para ouvir sobre a trajetória da atriz.

Na PretAção, essas mulheres pretas, artistas, são protagonistas das próprias narrativas. “Os quatro espetáculos falam de nós mesmas, das nossas experiências, das novas vivências ressignificadas. Ressignificar é uma palavra forte neste momento. A partir das nossas vivências, falamos de várias questões, como empoderamento, a reafirmação da mulher negra na sociedade e da artista negra nesse espaço, questionar o porquê dessa invisibilidade”, comenta Agrinez. Para a atriz, a mostra é também um espaço de irmandade. “É uma mostra de comemoração, que festeja o nosso encontro, a nossa união. E nada melhor do que essa data, que nos representa”.

A programação montada por Agrinez e Naná Sodré, ambas do grupo O Poste Soluções Luminosas – um espaço de referência e resistência do teatro negro em Pernambuco e no Brasil –, em parceria com várias artistas, inclui espetáculos, performances e rodas de diálogos.

A programação vai até o próximo domingo (28), no O Poste Soluções Luminosas (Rua da Aurora, 529, Boa Vista). Os ingressos custam R$ 15 + 1 quilo de alimento não perecível ou R$ 20. Os alimentos arrecadados serão doados a instituições que trabalham com o empoderamento da mulher negra e contra a violência.  

Agrinez Melo no solo Histórias Bordadas em Mim. Foto: Fernando Azevedo

Programação:

25 de julho (quinta-feira), às 18h
Abertura PretAção – I Mostra de Mulheres Pretas
Onde:  Ao ar livre, no entorno do Espaço O Poste
Performance de abertura com Camila Mendes (Nós), Jhanaína Gomes (Mi Madre), Yasmmyn Nejaim (poesia) e Odailta Alves (poesia).

26 de julho (sexta-feira)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
19h: A Receita
Sinopse: Morte, violência, loucura e a intolerância de uma maneira peculiar são narradas nesse solo, que traz uma personagem no seu processo limite. A dramaturgia é de Samuel Santos. Atuação: Naná Sodré
20h: Performances Mãe Maria, De Corpo e Dandara
Sinopses:
Mãe Maria: A personagem Mãe Maria nasceu dentro do espetáculo O Mensageiro, a partir da necessidade da atriz, dançarina e pesquisadora Aline Gomes de trazer à cena a condição feminina no início do século XX na Região Metropolitana do Recife. Atuação: Aline Gomes
De Corpo: Resgata a exposição das maranhas ancestrais que percorrem o corpo feminino. Dos fios que cercam de chagas nativas e genéticas a vivência da pele negra. Narra em movimentos o grito do pulso, da pausa, da prosa, da carne, da víscera, da dor e da beleza da mulher preta. Atuação: Brunna Martins
Dandara: Inspirada na heroína Dandara, que lutou ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas e ataques a Palmares, a atriz Érika Nery nos mostra sua força, fé e ancestralidade traduzida em arte. Atuação: Érika Nery
20h30: Roda de Diálogo com as performers

Dandara. Foto: Fernando Azevedo

27 de julho (sábado)
Onde: Espaço O Poste Soluções Luminosas
17h: Mi Madre
Sinopse: Inspirada por imagens e histórias contadas durante seu período de infância, Jhanaína Gomes remonta memórias de suas antepassadas alinhavando pontos de convergência entre sua própria história e a de suas matriarcas, tecendo uma correlação de tensão entre a presença masculina e o feminino ferido no percurso da vida dessas mulheres. Atuação: Jhanaína Gomes
18h15: Performances Kami** e Nada Mais me Deixará Calada
Sinopses:
Kami**: Traz à tona o corpo presente e potente da mulher. Construída a partir de técnicas utilizadas no Teatro Antropológico, das referências dos orixás Oxum e Iansã, e de elementos da natureza, mostra de forma muito simples, coesa e poética, que as mulheres querem liberdade. Atuação: Camila Mendes
Nada Mais me Deixará Calada: Durante sua jornada, enfrentando o processo de aceitação, a mulher negra se depara sempre com a solidão. Entretanto, em um momento crucial, ela acaba descobrindo que toda sua essência foi posta em segundo plano, e depois de ser enganada, maquiada e sexualizada, ela se rebela, mostrando que não irá aguentar mais nada e nem ficará mais calada. Atuação: Yasmmyn Nejaim
19h: Histórias Bordadas em Mim
Sinopse: Uma atriz, um baú, uma borboleta e uma conversa…é assim que se inicia Histórias Bordadas em Mim. Um convite para um chá, acompanhado de tareco e pão doce, e assim vão se alinhavando as histórias reais, vividas pela atriz em diversos momentos de sua vida. Atuação: Agrinez Melo
20h: Roda de Diálogo com as performers

28 de julho (domingo)
18h: Ombela
Sinopse: Ombela é uma palavra africana na língua Umbundo angolana, que em português significa “chuva”. É através da sacralidade da água que o espetáculo se desvela ao público; do elemento físico, Ombela se transforma em duas entidades que ganham corpo e voz. Atuação: Agrinez Melo e Naná Sodré.
19h10: Roda de Diálogo com as performers e encerramento da mostra

Ingressos: R$15,00 + 1kg de alimento não perecível ou R$20,00, sem o alimento.

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Abreviação da vida útil

Flávia Pinheiro em Dispositivo versão beta

Flávia Pinheiro em Diafragma Dispositivo versão beta

O que é o mundo real e o  virtual para os seres contemporâneos? Essas coisas produzidas pelo capitalismo interligam humanos, maquinas e os confundem. “O corpo é uma máquina; o trabalhador, um maquinista”, abalizava Vsevolod Meyerhold. Em Kafka, Por una literatura menor, Gilles Deleuze e Félix Guattari atestam: “O maquinista é parte da máquina, não somente durante sua atividade como maquinista, como também depois”. Essas citações estão carregadas de conceitos complexos, transpassadas por questões do capitalismo e suas ações de disciplinamento e relação poder versus resistência.

Na performance manifesto Diafragma dispositivo versão beta, do Coletivo Mazdita, a bailarina e performer Flavia Pinheiro utiliza objetos analógicos, como uma televisão antiga, uma vitrola, um projetor de slides para destacar a obsolescência programada no capitalismo. A limitação da vida útil atinge o corpo e a própria existência. O espetáculo está em cartaz de hoje a 14 de abril, às quartas e quintas-feiras, às 20h, no Edf Texas, na proposta “pague quanto puder”.

Confira a crítica sobre o espetáculo.

Ao hackear o corpo, a performer Flavia Pinheiro interage com diferentes artefatos, criando reposicionamentos no jogo. Ao mesmo tempo em que amplifica a obsolescência programada desses objetos que mal funcionam, estremece o estatuto da verdade das ofensivas do capitalismo.

Ao lado do argentino Leandro Olívan, a performer investiga a constituição de sujeitos, produção de subjetividade, as relações transversais de corpos e biopolítica sociais. Para isso emprega alguns princípios de Gerald Raunig, Michael de Certeau, Vilém Flusser, Gilles Deleuze.

Ficha técnica:
Produção: Coletivo Mazdita
Performer/Direção: Flavia Pinheiro
Objetos e ruido: Leandro Oliván

Serviço:
Diafragma Dispositivo Versão Beta
Onde: Edf Texas (Rua Rosário da Boa Vista 163)
Quando: 6,7,13, 14 de abril, quartas e quintas-feiras às 20h
Quanto: Pague quanto puder
Duração: 40 minutos

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Esse silêncio grita por humanidade

Nina Caetano denuncia omissão da violência contra a mulher. Foto: Frederico Chigança e equipe

Nina Caetano denuncia omissão da violência contra a mulher. Foto: Frederico Chigança e equipe

bienal-usp2Em média, 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Uma a cada duas horas, segundo o Mapa da Violência Contra a Mulher. Os dados são alarmantes, mas essa realidade pode ser ainda pior. As políticas públicas são insuficientes para barrar a cultura machista, apesar de alguns avanços, como a lei do feminicídio. A indiferença da maioria da população é um grave problema. Como em outros quesitos da vida contemporânea, o entorpecimento da sensibilidade chega a patamares tão elevados que cada um só se preocupa com os seus problemas. Mas violência que fere ou abate as mulheres não distingue classe social, nem idade. Todas podem ser vítimas. E isso é assustador.

Mas as estatísticas revelam que as mais atingidas são as pobres e negras. A elite brasileira, que poderia contribuir mais, aparenta se importar pouco, de verdade, com isso. Parece que as figuras encasteladas, sob as vigilâncias de todas as ordens,  – e principalmente que ocupam posições de poder – só são tocadas quando lhes rasgam a carne: matam seu filho, sequestram seu neto, estupram sua filha. Quando uma infelicidade dessa acontece, atinge os nervos, os ossos, os músculos e o coração dessa gente.

Talvez esse não seja o principal público da performance Espaço de Silêncio, da dramaturga, professora e atriz mineira Nina Caetano, que se insurge contra esse quadro aterrador. Mas outra plateia, subjugada pelo capitalismo e desatenta ao poder submerso dentro de si, que em dinâmica coletiva seria (será) capaz de provocar mudanças. Espaço de Silêncio é uma atuação política, de denúncia e repulsa pelas mulheres mortas. Mostra-se necessária e comovente. Normalmente é apresentada em lugares de intenso fluxo de pedestres.

Na sexta-feira em que parte do país saiu às ruas em manifestação contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Nina Caetano estava na Praça da República, no centro de São Paulo. Sua performance integrou a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP. Era um dia especial. As pessoas passavam apressadas. Umas para correr da passeata, outras para engrossar a mobilização.

Uma pausa para ler o manifesto. Foto: Ivana Moura

Uma pausa para ler o manifesto. Foto: Ivana Moura

Os transeuntes pareciam em dúvida se era um protesto, uma dessas pegadinhas da TV ou até mesmo teatro. Uma ação de poucos gestos, nenhuma fala, vários textos escritos, como listagem de mulheres mortas, micro obituários e manifesto poético. Vestida de vermelho, com um turbante também vermelho na cabeça, a atriz e cofundadora do agrupamento mineiro Obscena traçava seu ritual pagão.

Durante quase uma hora, um lençol branco é seu palco. A atriz aparece com uma fita vermelha em cruz afixada na boca. Desprende a fita adesiva dos lábios. Corta com os dentes outros pedaços de fita para formar cruzes sobre o tecido branco. Um cemitério simbólico, com suas histórias de massacres que a omissão covarde quer fazer parecer banal, uma consequência “natural” da postura da mulher vítima da violência de pessoas que deveriam cuidar delas, como maridos, noivos e namorados.

Representação de um cemitério sobre o lençol branco.

Representação de um cemitério sobre o lençol branco. Foto: Ivana Moura

Esse ritual silencioso vocifera de historicidade e traça seu legado de injustiças. O gestual é suave e decidido. O olhar duro carrega uma revolta contida. Quem cruzou o olhar com a atriz sente que ela cobra a parcela que cabe a cada um da responsabilidade de estar no mundo. Essa performance atesta que essa brutalidade não pode ficar por isso mesmo. Perturbadora.

É artivismo vigoroso e contundente. Chega a ser lancinante. A cada nova cruz posta no chão amplifica a potência desse grito. Aquelas mulheres simbolizadas ali insuflam os pedidos de socorro. Com os sentidos débeis, fala-se em demasia. Vivemos saturados pela superprodução mercantil de signos, de informações descartáveis. Espaço do Silêncio vem interromper o falatório vazio das coisas. Nesse espaço-gesto que ressalta a omissão adotada em torno dessa violência, a intervenção explode de indignação na paisagem urbana. A performance foi criada a partir da Ideia-Situação do artista visual Artur Barrio, uma proposta feita para a Documenta 11.

Nessa atuação performativa e micropolítica prevalece a arte do inacabado. A poesia que se instaura a cada nova ação. Temporária e nômade. Na Praça da República, a artista encarou e desafiou os presentes. Um homem tentava fazer um discurso inócuo sobre como ele valoriza a mulher. Nina Caetano pegou o cabra pela mão e “ordenou” que ele lesse o manifesto. O rapaz não suportou. Uma mulher apareceu e queria explicações sobre o trabalho. Outros paravam um minutinho, eram tocados e partiam. E Espaço do Silêncio segue afrontando as estruturas de controle. Investe na provocação para despertar os desejos de que somos todos humanos.

Dramaturgia contundente para tirar os sentidos da letargia cotidiana. Foto: Ivana Moura

Dramaturgia contundente para tirar os sentidos da letargia cotidiana. Foto: Ivana Moura

Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12).

DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Pela livre circulação de identidades complexas

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

No recém-inaugurado Centro Compartilhado de Criação, na Barra Funda, em São Paulo, as pessoas tomam um café, bebem uma cerveja, se reúnem em pequenos grupos de conversas animadas. Nada muito diferente dos minutos que antecedem qualquer espetáculo; mas esse não era o caso. Pouco antes do horário marcado, performers começaram a circular pelo espaço. Uma garota vestia calcinha de algodão e, por cima, outra com renda vermelha, além de um corpete na mesma cor. Cordas amarravam seu corpo. Nos braços, pernas e no bumbum, palavras ou frases sobre exploração sexual. Uma delas, por exemplo, relacionava a Fifa e o turismo sexual. Outra performer, de vestido preto elegante, tinha a cabeça presa por uma gaiola. E assim outros também andavam por ali, chegavam perto das pessoas, iniciavam um contato.

Quando o espaço para apresentações, um galpão bem grande, foi aberto, o público pode ter uma noção mais exata de como seriam os próximos minutos compartilhados com o coletivo La Pocha Nostra, criado no México, que começava a performance Spiritus Mundi VX Aztec Ouroborus. Isso foi no último dia 12 de dezembro, dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP.

A profusão de ações e imagens que se estabeleceu por todos os cantos, simultaneamente, faz com que, acreditem, seja difícil tentar descrever o que se passou ali, embora isso talvez seja bem importante para que quem não acompanhou a performance, possa tentar reproduzir mentalmente o que estou falando. Um homem deitado, com o corpo coberto por alguma coisa comestível, e o pênis encalacrado por um adereço prata; uma mulher que mostra os seios, mas, ao mesmo tempo, também tem pau. Figuras de índias, bailarinas, comunistas, “macho power”. A música alta variou muito – teve muita eletrônica, rock, samba e até Chico Sciense, além da projeção de imagens diversas, inclusive performances antigas do coletivo.

O público circulava livremente no espaço, podendo entrar e sair do galpão, pegar uma bebida, voltar; e, em certa medida, foi até convidado a interagir, mas de uma forma muito soft, sem nenhuma pressão ou agressividade – a não ser quando, já no final, os espectadores foram estimulados a atirar garrafas na parede, que estilhaçavam ao baterem em figuras de políticos, por exemplo, ou em números de homicídios de mulheres ou índios.

O Coletivo La Pocha Nostra, que tem integrantes espalhados por vários lugares do mundo, trabalhou alguns dias com performers em São Paulo. Essas pessoas ajudaram a compor as ações principais, fazendo uma certa “assistência” aos membros do coletivo. O que presenciamos, ou melhor, construímos juntos, performers e espectadores, aquela noite, foi uma performance diversa, rica, ampla em possibilidades de aproximação reflexiva. Uma espécie de instalação performática de corpos inteiramente presentes e disponíveis. Prontos para questionarem todos os padrões estabelecidos, desde aqueles que podem ser mais pessoais, que passam pela discussão de gênero, até os econômicos e sociais.

Performances questionaram e quebraram padrões

Performances questionaram e quebraram padrões

Embora a questão de gênero tenha sido uma das vertentes que permeou praticamente todas as performances, é interessante notar como, de fato, a discussão não é se alguém é homem, mulher, transgênero, travesti. A mulher de seios, moicano, cabelo no sovaco e pau está ali para levantar outras problematizações, que vão além do seu direito de existir. O seu direito de existir é inalienável e a personificação dele de forma tão natural mostra o quanto a nossa sociedade está atrasada no que se refere ao respeito, à garantia de liberdades e igualdades.

A colonização, o capitalismo, as migrações, o consumo, a corrupção, todas essas questões estão intrinsecamente ligadas às performances dos artistas que se colocam na cena como ativistas. Um lugar onde é impossível dissociar a arte e o político no sentido mais amplo do termo. Recentemente, durante o 1º Encontro sobre Curadoria em Artes Cênicas, realizado pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em parceria com o Goethe Institut e o Observatório dos Festivais, discutiu-se um texto do curador independente e dramaturgo Florian Malzacher, no qual ele retomava a ideia do teatro político na Europa nos anos 1970 e 1980, afirmando que à época, embora o teatro fosse capaz de propor uma compreensão das questões que estavam sendo discutidas, geralmente essa representação se tornava muito mais uma representação das misérias e das realidades que desejava combater.

As possibilidades hoje estão muito mais amplas e complexas quando pensamos no que significa teatro político. E o trabalho do coletivo La Pocha Nostra amplia nossas percepções com relação a uma arte capaz de trazer à tona questões da realidade, ligadas ao consumo, ao capital, às opressões, mas subvertendo o caminho, sem linearidades e enxergando o espectador como suficientemente preparado para lidar com as idiossincrasias que possam surgir a partir do trabalho. Embora alguns textos lidos durante a performance ofereçam caminhos (muito bem-vindos, inclusive), chaves interpretativas para que o público possa perceber todas aquelas ações e signos, há uma compreensão por parte do grupo, atuando de uma maneira não-autoritária, da emancipação do espectador, para lembrar um conceito de Jacques Rancière.

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Caminhando por esses trilhos e ainda seguindo o texto de Malzacher (que faz parte do livro Not just a mirror, looking for the political theater of today), podemos pensar exatamente na situação do público dentro do universo das performances, da arte política, do ativismo. O autor diz que o teatro político contemporâneo precisa evitar uma falsa participação do espectador, mas ao mesmo tempo reivindicar a sua participação. Pensando na performance do La Pocha Nostra, percebemos de fato como os caminhos são múltiplos. Não é preciso que o público suba no palco para participar de uma ação, nem ao menos que seja tocado fisicamente (não que isso não possa acontecer e ser bastante interessante), para que aquele trabalho possa reverberar e se mostrar extremamente potente em significados e simbologias e o público esteja de fato numa situação ativa. Precisamos somente de espectadores disponíveis para enveredar por espaços de trânsito, especialmente transgressores e capazes de despertar novos sentidos. Assim como dizia uma placa que circulou com a ajuda do público, um local de “livre circulação de identidades complexas”, como a arte e o teatro.

Ficha técnica:
Criação Coletiva de Guillermo Gómez-Peña, Michèle Ceballos, Saul Garcia Lopez, Daniel B., Dani d’Emilia.

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***A cobertura crítica da II Bienal Internacional de Teatro da USP é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente. A DocumentaCena realizou coberturas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, da MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Um elogio à gambiarra e à precariedade

Performance de Flavia Pinheiro convoca objetos obsoletos para fazer um paralelo entre  corpo e tecnologia

Performance de Flavia Pinheiro convoca objetos obsoletos para traçar paralelo entre corpo e tecnologia

A vida corre alucinante. A tecnologia joga no mercado milhares de objetos, em substituição a outros. Invenção, alimentação, subversão. A hiperatividade estético-midiática é um desafio para a arte contemporânea. A artista Flavia Pinheiro opera na contramão dessa velocidade na performance Diafragma: dispositivo versão beta e enaltece os dispositivos low tech e as tecnologias obsoletas.

Criado pela atriz, bailarina e performer Flavia Pinheiro em parceria com o músico argentino Leandro Oliván, Diafragma: dispositivo versão beta integra o projeto de ocupação da Galeria Capibaribe chamado O Solo no CAC. As apresentações começaram ontem e seguem até sexta-feira, sempre às 18h. A curadoria do programa é de Francini Barros, Bruno Siqueira e Luís Reis.

Diafragma, essa performance-manifesto, pensa o papel das tecnologias na vida cotidiana. E reflete sobre a urgência de substituição de objetos na lógica do capitalismo, que produz e joga no mercado bens altamente perecíveis. Para serem substituídos, trocados. Expõe formas de automatização como parte de um dispositivo motor. A partir de uma série de exercícios constrói a experiência do corpo-metáfora dessa reinvenção de objetos em desuso.

A atriz interopera com diferentes peças criadas e reutilizadas por Leandro Oliván. Amplifica o estado obsoleto desses artefatos.

Seu corpo atua no tempo de forma nômade na busca de (des)territorialização

Diafragma atua no tempo de forma nômade na busca de (des)territorialização

Flavia realiza um trabalho sofisticado, fruto de um treinamento duro para produzir significados do seu corpo-máquina. Incorpora as provocações teóricas de filósofos como Gilles Deleuze e Flusser, Gerald Raunig e Michael de Certeau.

Sobre dispositivos deleuzeanos e suas linhas de força heterogêneas que se interconectam em processos dinâmicos e fluidos que desembocam no desequilíbrio, a artista explode em sentidos de uma poética de constatação/contestação de crítica social e política.

De Vilém Flusser ela carrega para a cena os vetores estéticos de fabricação de sentidos produzidos no interior desses aparelhos.

Sobem e descem escalas em hibridação não cronológicas. Os procedimentos de Diafragma exigem do corpo da artista posicionamento e movimentação de grande esforço dos músculos e moléculas, na primeira parte; e alta inventividade em toda a composição que envolve as tecnologias de produção de ruídos, imagens, sensações e narrativas.

Diafragma:dispositivo versão Beta
Quando: 16,17 18 e 19 de junho, às 18h
Onde: Galeria Capibaribe (CAC- Centro de Artes e Comunicação -UFPE)
Quando: A entrada gratuita .
Duração: 42 minutos

Ficha técnica
Criação e Performance: Flávia Pinheiro
Objetos e Ruídos: Leandro Oliván
Fotografia: Pri Camara
Produção: Coletivo Mazdita

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