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Teatro para os ouvidos e outros sentidos
Crítica da peça sonora “Maré”

A atriz Cássia Damasceno, da companhia brasileira de teatro.

A companhia brasileira de teatro propõe um encontro diferente. Em vez de reforçar o apelo feito à exaustão para os olhos, o grupo privilegia outro sentido: a audição. É a partir do ato de ouvir – se quiser, de olhos fechados, e imaginar e compor e criar as paisagens sussurradas nessas Escutas Coletivas – que se instala o ato teatral

A primeira edição apresenta a peça sonora Maré, com dramaturgia e direção de Marcio Abreu; desenho sonoro do músico e compositor Felipe Storino; e conduzido pelas vozes de Cássia Damasceno, Fabio Osório Monteiro, Felipe Storino, Giovana Soar, Grace Passô, Key Sawao e Nadja Naira.

É uma criação cênica fincada na dimensão sonora. As falas, nas quatro perspectivas do acontecimento, foram gravadas pelos atores individualmente, com seus celulares e enviadas a Abreu e Storino.

Com os espectadores, cada qual no seu canto, com seus fones de ouvidos ou caixas de sons de olhos fechados, ou abertos (naveguei melhor com os olhos cerrados), acomodados em sofás, camas, chão ou onde preferisse, sentados, de pé, deitados, de lado, do jeito que quisesse, durante 40 minutos, ouvimos uma história.

O episódio está dividido em três movimentos. Um prólogo em que o diretor expõe e contextualiza a ação, a escuta sonora compartilhada ao mesmo tempo pelas pessoas presentes na sala virtual e a conversa entre a equipe artística e o público.

Maré foi escrita em 2015 por Marcio Abreu a pedido do mineiro Grupo Espanca. É situada como uma reação artística ao real: uma chacina ocorrida na Maré em 2013. O Complexo da Maré é um dos maiores conglomerados de favelas do Rio de Janeiro, na zona norte da cidade. Naquele ano, o Brasil foi sacudido por uma série de protestos e manifestações de reivindicações várias, que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho.

Infelizmente esse não é um caso isolado. Extermínios e carnificinas são comuns nas áreas mais periféricas e empobrecidas, não só do Rio de Janeiro, como nas diversas cidades do país. São crimes cometidos normalmente pela polícia ou pela milícia. Atrocidades frequentemente acobertadas ou não combatidas com eficácia pelo Estado.

As figuras desta peça sonora moram num espaço exíguo – “uma lata de sardinha”, o que não facilita a intimidade do casal: “Esse homem é gostoso me pega quietinho” – expõe a alta voltagem de amorosidade dos seus integrantes. Os adultos trabalham longe de casa e perdem muito tempo no trajeto. A avó assume a ancestralidade, a viga mestra; as crianças, os tesouros; a mãe e o pai.

Cada um desses quatro focos narra, do seu ângulo, a violência policial em um dia de brincadeiras, televisão apaziguadora, “o melhor feijão do mundo”, o chamego no canto.

O fenômeno teatral se confere pela escuta. A dimensão acústica se faz corpo, que quase podemos tocar. Os materiais sonoros sobrepondo em camadas sucessivas, entrecruzadas pela entendimento individualizado num presente compartilhado. Imersos nessas sonâncias, cargas mnésicas pessoais, imaginação, marcas na carne, pele e osso se cruzam para cortar resquícios de indiferença. É pela escuta que poderemos transformar o espaço público.

A Avó, de Grace Passô, traça uma musicalidade tão própria, tão acolhedora, quase uma cantilena que brinca com fluxos vocais de espacialidade, temperatura, texturas. Todas as quatro perspectivas de Maré incitam a raras percepções e sensações de pertencimento a uma presença coletiva costurada pelo tempo de comunhão pelas vozes, pelo som.

As escolhas sonoras do músico Felipe Storino para materializar a chegada da polícia, levam a lugares mais poéticos, menos óbvios do que uma representação hiperrealista que inunda os noticiários, das imagens sonoras exatas. É uma fábula contada com paleta de tons acústicos mais sutis.

Maré nos chega como insights performativos de uma experiência relacional. De um tempo que ativa o entrecruzamento de universos individuais sensíveis, compartilhados um pouco na conversa depois da audição. No primeiro dia, uma das participantes levantou uma questão interessante dessa partilha do sensível carregada por memórias ditas ou silenciadas, que permitem a criação de sentidos tão particulares, íntimos até. No segundo dia, um homem cego comentou como foi afetado pela obra. Sua fala destaca o quanto precisamos ampliar nossa percepção do mundo, para além de nós mesmos.

Ouvir como exercício revolucionário, que tanto precisamos, nesses tempos de lacração. Possibilidade de expandir o fio do diálogo humano. Na oitiva grupal a arte assume papel político, convocando para o presente essa necessidade de sentir o outro. Ou tentar, ao menos.

A dramaturgia textual do Marcio Abreu, sem pontuação intermediando as intenções, faz jorrar sentidos diversos. A primeira edição da série Escutas Coletivas enfrenta o paradigma da supremacia do olhar, desde sua etimologia de ser o teatro o lugar onde (e de onde) se vê, para deslocar a possibilidade de “ver” com os ouvidos, sentir com o som, ser tocado pelo invisível, ser afetado pelo audição, por uma dramaturgia sensorial.

Mergulhar nessa Maré com seus timbres e texturas, ritmos sonoros, camadas, dinâmicas e insubordinações do encontro e do toque energético, tensiona a linguagem por ser ainda e mais música e poesia.  

Escutas Coletivas
peça sonora MARÉ
Quando: dias 29, 30 e 31 de agosto, às 20h30
Contribuição: R$ 25, à venda no Sympla

Ficha técnica:

Dramaturgia e direção: Marcio Abreu
Desenho sonoro:  Felipe Storino
Vozes: Cássia Damasceno, Fabio Osório Monteiro, Felipe Storino, Giovana Soar, Grace Passô, Key Sawao, Nadja Naira.

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