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A tentativa de cristalizar a memória

Espetáculo resgata história de família do autor e diretor. Foto: Divulgação TUSP

Espetáculo resgata história de família do autor e diretor. Foto: Divulgação TUSP

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Tudo que é presente, logo ali, no próximo instante, já se mostra passado. Assim é mesmo a vida. Já no teatro, pensando especificamente no enredo dramático, presente, passado e futuro estão circunscritos dentro dos limites da sessão de um espetáculo. Talvez por isso, analisando sob esse aspecto, esses tempos tenham a possibilidade de se tornar mais cristalizados, palpáveis. Ainda assim, por outro viés, o teatro é a arte do efêmero, do que foi e já não é, da impossibilidade da repetição. O argentino Ariel Zagarese recorreu não só ao teatro, mas ao conceito de museu, para resgatar a história do seu próprio pai e da sua família, lá pelas décadas de 1980 e 1990, no espetáculo Família Museu, apresentado na II Bienal Internacional de Teatro de São Paulo.

Logo que as portas da sala de espetáculo são abertas, podemos caminhar pelo espaço e observar, contemplar, tal qual um museu tradicional, os objetos de uma coleção: uma máquina de barbear, fotos, caixa de ferramentas, por exemplo. Uma das especificidades, no entanto, é que aquela exposição conta com a presença de um homem, meia-idade, sentado, lendo o jornal. A tensão entre os tempos começa a se estabelecer exatamente ali. Quando os objetos remetem a um passado, mas o corpo se faz presente.

Montagem começa com exposição de objetos

Montagem começa com exposição de objetos

O homem, interpretado por Alejandro Ruaise, é Rubén Carlos Zagarese (1948-1999), pai do diretor e dramaturgo Ariel Zagarese, cujo papel ficou sob a responsabilidade de Manuel Reyes Montes. Há ainda a mãe e a irmã do ator, vividas pelas atrizes Sabrina Loza e Manuela Iseas. Os atores se apresentam e dizem ao público quais serão os seus personagens. A relação entre representação e não-representação, no entanto, não tem outros desdobramentos para além desse momento inicial da peça.

A escritura cênica de Família Museu se propõe pontuada por fricções e pontos de encontro/embate. Nessa história, o público se questiona o tempo inteiro sobre ficção e realidade; principalmente quando as memórias que são levadas à cena são, de fato, a tentativa de reconstrução de um passado visto sob um único olhar, o do dramaturgo/diretor, pontuadas pela atuação de outras pessoas. Na construção da cena, é o passado “museu” que logo vira presente, mas traz lembranças a muitos dos espectadores, o que de fato se materializa como presente em cena, o que há de ficção a partir dessa história.

Nesse caminho permeado por afetos e desencontros, o foco está na relação familiar. No cotidiano que poderia ser o de qualquer família. A briga entre os irmãos, as questões que permeiam o casamento, mas, principalmente, a falta de diálogo. O pai é retratado como alguém distante, endurecido pela vida, que faz pouca questão de construir sentimentos, como na cena em que o garoto tenta ajuda-lo a consertar o carro. São elementos trazidos pela dramaturgia que, em alguma medida, aproximam o público da montagem, embora o espetáculo não consiga superar um estado, digamos, de certa conformidade e apatia.

As relações/fricções que poderiam surgir na aproximação entre teatro e vida real, entre os elementos do real no espaço da ficção, não extrapolam os limites, de maneira que possam, de fato, trazer tensão à relação com o espectador. É uma linha de dramaturgia que se mostra monocórdica, sem pontos de virada ou oposição.

Apesar de tratada de forma sensível, a abordagem fica tão localizada no microuniverso familiar, que as outras dimensões que poderiam surgir a partir da proposta da montagem, da dramaturgia e da própria encenação, não tomam vulto. Aqui, o que acontece de fato é que o particular, o autorreferente, não se torna universal e saímos com a sensação de que a proposição foi mais interessante do que a sua realização em cena.

Montagem se limita às questões familiares

Montagem se limita às questões familiares

Ficha técnica:
Texto: Ariel Zagarese
Elenco: Manuela Iseas, Sabrina Loza, Manuel Reyes Montes, Alejandro Ruaise
Direção: Ariel Zagarese
Cenografia: Ariel Vaccaro
Iluminação e operação técnica: Jessica Tortul
Assistência de direção: Julia Troiano
Coreografia: Pablo Lugones
Produção: Javier Torres Dowdall

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Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12).

DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Pela livre circulação de identidades complexas

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

Spiritus Mundi VS Aztec Ouroborus é o nome da performance do coletivo La Pocha Nostra. Foto: reprodução Facebook Tusp

No recém-inaugurado Centro Compartilhado de Criação, na Barra Funda, em São Paulo, as pessoas tomam um café, bebem uma cerveja, se reúnem em pequenos grupos de conversas animadas. Nada muito diferente dos minutos que antecedem qualquer espetáculo; mas esse não era o caso. Pouco antes do horário marcado, performers começaram a circular pelo espaço. Uma garota vestia calcinha de algodão e, por cima, outra com renda vermelha, além de um corpete na mesma cor. Cordas amarravam seu corpo. Nos braços, pernas e no bumbum, palavras ou frases sobre exploração sexual. Uma delas, por exemplo, relacionava a Fifa e o turismo sexual. Outra performer, de vestido preto elegante, tinha a cabeça presa por uma gaiola. E assim outros também andavam por ali, chegavam perto das pessoas, iniciavam um contato.

Quando o espaço para apresentações, um galpão bem grande, foi aberto, o público pode ter uma noção mais exata de como seriam os próximos minutos compartilhados com o coletivo La Pocha Nostra, criado no México, que começava a performance Spiritus Mundi VX Aztec Ouroborus. Isso foi no último dia 12 de dezembro, dentro da programação II Bienal Internacional de Teatro da USP.

A profusão de ações e imagens que se estabeleceu por todos os cantos, simultaneamente, faz com que, acreditem, seja difícil tentar descrever o que se passou ali, embora isso talvez seja bem importante para que quem não acompanhou a performance, possa tentar reproduzir mentalmente o que estou falando. Um homem deitado, com o corpo coberto por alguma coisa comestível, e o pênis encalacrado por um adereço prata; uma mulher que mostra os seios, mas, ao mesmo tempo, também tem pau. Figuras de índias, bailarinas, comunistas, “macho power”. A música alta variou muito – teve muita eletrônica, rock, samba e até Chico Sciense, além da projeção de imagens diversas, inclusive performances antigas do coletivo.

O público circulava livremente no espaço, podendo entrar e sair do galpão, pegar uma bebida, voltar; e, em certa medida, foi até convidado a interagir, mas de uma forma muito soft, sem nenhuma pressão ou agressividade – a não ser quando, já no final, os espectadores foram estimulados a atirar garrafas na parede, que estilhaçavam ao baterem em figuras de políticos, por exemplo, ou em números de homicídios de mulheres ou índios.

O Coletivo La Pocha Nostra, que tem integrantes espalhados por vários lugares do mundo, trabalhou alguns dias com performers em São Paulo. Essas pessoas ajudaram a compor as ações principais, fazendo uma certa “assistência” aos membros do coletivo. O que presenciamos, ou melhor, construímos juntos, performers e espectadores, aquela noite, foi uma performance diversa, rica, ampla em possibilidades de aproximação reflexiva. Uma espécie de instalação performática de corpos inteiramente presentes e disponíveis. Prontos para questionarem todos os padrões estabelecidos, desde aqueles que podem ser mais pessoais, que passam pela discussão de gênero, até os econômicos e sociais.

Performances questionaram e quebraram padrões

Performances questionaram e quebraram padrões

Embora a questão de gênero tenha sido uma das vertentes que permeou praticamente todas as performances, é interessante notar como, de fato, a discussão não é se alguém é homem, mulher, transgênero, travesti. A mulher de seios, moicano, cabelo no sovaco e pau está ali para levantar outras problematizações, que vão além do seu direito de existir. O seu direito de existir é inalienável e a personificação dele de forma tão natural mostra o quanto a nossa sociedade está atrasada no que se refere ao respeito, à garantia de liberdades e igualdades.

A colonização, o capitalismo, as migrações, o consumo, a corrupção, todas essas questões estão intrinsecamente ligadas às performances dos artistas que se colocam na cena como ativistas. Um lugar onde é impossível dissociar a arte e o político no sentido mais amplo do termo. Recentemente, durante o 1º Encontro sobre Curadoria em Artes Cênicas, realizado pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em parceria com o Goethe Institut e o Observatório dos Festivais, discutiu-se um texto do curador independente e dramaturgo Florian Malzacher, no qual ele retomava a ideia do teatro político na Europa nos anos 1970 e 1980, afirmando que à época, embora o teatro fosse capaz de propor uma compreensão das questões que estavam sendo discutidas, geralmente essa representação se tornava muito mais uma representação das misérias e das realidades que desejava combater.

As possibilidades hoje estão muito mais amplas e complexas quando pensamos no que significa teatro político. E o trabalho do coletivo La Pocha Nostra amplia nossas percepções com relação a uma arte capaz de trazer à tona questões da realidade, ligadas ao consumo, ao capital, às opressões, mas subvertendo o caminho, sem linearidades e enxergando o espectador como suficientemente preparado para lidar com as idiossincrasias que possam surgir a partir do trabalho. Embora alguns textos lidos durante a performance ofereçam caminhos (muito bem-vindos, inclusive), chaves interpretativas para que o público possa perceber todas aquelas ações e signos, há uma compreensão por parte do grupo, atuando de uma maneira não-autoritária, da emancipação do espectador, para lembrar um conceito de Jacques Rancière.

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Público assistiu à várias ações simultaneamente, como uma instalação

Caminhando por esses trilhos e ainda seguindo o texto de Malzacher (que faz parte do livro Not just a mirror, looking for the political theater of today), podemos pensar exatamente na situação do público dentro do universo das performances, da arte política, do ativismo. O autor diz que o teatro político contemporâneo precisa evitar uma falsa participação do espectador, mas ao mesmo tempo reivindicar a sua participação. Pensando na performance do La Pocha Nostra, percebemos de fato como os caminhos são múltiplos. Não é preciso que o público suba no palco para participar de uma ação, nem ao menos que seja tocado fisicamente (não que isso não possa acontecer e ser bastante interessante), para que aquele trabalho possa reverberar e se mostrar extremamente potente em significados e simbologias e o público esteja de fato numa situação ativa. Precisamos somente de espectadores disponíveis para enveredar por espaços de trânsito, especialmente transgressores e capazes de despertar novos sentidos. Assim como dizia uma placa que circulou com a ajuda do público, um local de “livre circulação de identidades complexas”, como a arte e o teatro.

Ficha técnica:
Criação Coletiva de Guillermo Gómez-Peña, Michèle Ceballos, Saul Garcia Lopez, Daniel B., Dani d’Emilia.

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***A cobertura crítica da II Bienal Internacional de Teatro da USP é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente. A DocumentaCena realizou coberturas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, da MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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