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Amor com cheiro de naftalina

Maldito coração, me alegra que tu sofras foi uma das atrações do primeiro dia do Janeiro. Fotos: Ivana Moura

Maldito coração, me alegra que tu sofras foi uma das atrações do primeiro dia do Janeiro. Fotos: Ivana Moura

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“Maldito coração, me alegra que tu sofras” é um verso de uma antiga canção interpretada por Angela Maria. É também o título de uma peça, um clássico do teatro gaúcho, em cartaz ontem e hoje (16), no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro. O solo da atriz Ida Celina já está em cartaz há 19 anos e é uma das referências e orgulho do palco dos sulistas de Porto Alegre. Há méritos para isso. Paris também ostenta os seus clássicos. E o Recife tem Um Sábado em 30, de Luiz Marinho, com o Teatro de Amadores de Pernambuco que, por sinal, está na grade de programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Ida Celina é uma atriz de recursos vocais, corporais e de intenções. Ela é a essência e a alma do espetáculo Maldito coração, me alegra que tu sofras. A artista extrai nuances, alguma beleza, nostalgia e muita pieguice do amor (e seus desejos), mote da peça, que na sua dramaturgia não vai além da esquina.

O texto e a trilha sonora são assinados por Vera Karam. Na cena, uma senhorinha modela seu passado amoroso ao narrar sua vida para desconhecidos. Na cena há apenas um banco de balanço como elemento da cenografia de Alexandre Magalhães e Silva, também responsável pelo figurino. Tudo indica que é um internato para velhos ou coisa parecida. E que a protagonista com algum desvio de personalidade recria sua existência banal, acrescentado cores e valorizando seus feitos, mais imaginários que reais.

Como o título indica, tudo gira em torno de uma “relação” amorosa travada na juventude. Mas a tese em si não avança. Ela retoma a narrativa a partir da suposta duração do seu caso, namoro, casamento. E brinca com a importância dada pela sociedade às uniões duradouras. A primeira, segunda, terceira vez em que ela amplia esse tempo, tudo soa muito engraçado. Mas com a repetição, o efeito vai se esgarçando.

Há algumas sacadas realmente fortes pelo teor da sua ironia, quando ela fala coisas do tipo “vocês não estão aqui” e reforça com um “Ainda”. E essa palavra soa cheia de sarcasmo e ameaça como se fosse um destino inexorável da humanidade. Mas o texto é raso.

A atuação de Ida Celina traz suas pulsações. Sozinha no palco ela extrai as potencialidades e subverte as fragilidades do texto ao seu favor. Articula as ideias (mesmo os clichês), com postura, vocabulário gestual e ondulações de registros vocais.

Intérprete extrai as nuances da personagem, que criou um mundo próprio

Intérprete extrai as nuances da personagem, que criou um mundo próprio

Ida Celina desliza pelo espaço, encara o público e se joga no passado da personagem com audácia; com bocarras e olhos arregalados. Lógico que depois de tanto tempo fazendo a mesma personagem vemos em alguns momentos as bengalas, o que já pode ter sido feixes de luz.

A direção de Mauro Soares é equilibrada, mas sem ousadia. O desenho do diretor no espaço facilita a narração da história. E parece muito generoso ao explorar as potencialidades da atriz. O figurino é básico, mas permite que a intérprete se mostre mais voluptuosa nas suas fantasias/alucinações do passado. A maquiagem ressalta as marcas do tempo. E a iluminação, de João Acir, se torna um elemento poderoso para destacar algumas situações e exerce sua função com eficiência.

O que é mais bonito em Maldito coração, me alegra que tu sofras é acompanhar uma atriz se entregar com tanta paixão a essa arte tão efêmera.

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