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Porque tradição e reinvenção não se opõem*

Tu sois de onde?, solo do grupo Peleja. Foto: Renata Pires

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

*Valmir Santos
jornalista, crítico, pesquisador, curador

O ator-dançarino Lineu Gabriel, do Grupo Peleja, reflete sobre as formas e conteúdos que o mobilizaram na criação de Tu sois de onde?. É seu primeiro trabalho solo, tendo convidado para a direção a atriz Ana Cristina Colla, do Grupo Lume (SP).

A obra estreou em novembro de 2012, passou pelo Janeiro de Grandes Espetáculos e participa do Festival Palco Giratório Recife em sessão única nesta quinta-feira (23), às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho, seguida de bate-papo mediado por Leandro Regueira.

Ao buscar conexões com sua subjetividade, Lineu, que estudou em Campinas (SP) – graduado em antropologia e mestre em artes pela mesma instituição, a Unicamp –, foi prospectar o campo fértil, complexo e sofisticado das manifestações tradicionais da Zona da Mata Norte de Pernambuco.

Tu sois de onde? é atravessado pela questão da identidade a partir das corporeidades e sonoridades do maracatu de baque solto, resultado de residência artística apoiada pelo Funcultura e realizada entre 2011 e 2012 no município de Condado, junto aos artistas populares do Leão de Ouro, sobretudo os cabeças de lança.

A seguir, a íntegra das questões enviadas pelo Jornal Ponte Giratória, publicação semanal que circula durante o Palco Giratório (a versão impressa foi editada no formato de reportagem).

Confiram aqui o Jornal Ponte Giratória.

ENTREVISTA // Lineu Gabriel

Jornal Ponte Giratória – O solo Tu sois de onde? sugere conteúdos em torno da identidade e do depoimento pessoal. É desafio para o intérprete-criador tocar raízes sem ensimesmar-se numa época, a nossa, em que a figura do eu é ostensiva?

Lineu Gabriel – Antes de responder objetivamente sua pergunta, creio que seja válido abordar brevemente o processo criativo do espetáculo. O solo surgiu de necessidades pessoais, todo o repertório do Grupo Peleja é autoral, ou seja, nossas criações sempre partem (ao menos até aqui) da necessidade de suprir anseios como artistas. No caso das criações solo eu acredito que elas precisam encontrar conexões com a subjetividade do criador, ao contrário, a obra fica sem estofo, sem força.

Outro ponto que tem de ser considerado é que este é meu primeiro trabalho solo, então, além do tema em si, existia uma necessidade de estar sozinho em cena para tratar de algumas deficiências que sinto em relação a minha formação. Assim, o solo também é um lugar para que eu possa me desenvolver enquanto artista em um nível muito diferenciado do que acontece em uma criação coletiva.

Bom, dito isto, eu acho que é, sim, um desafio o não ensimesmamento. Aliás, diante do que acredito que seja a função social do artista: sempre foi um desafio, uma doação. A contemporaneidade em que vivemos é sim marcada pelo o que você chamou de “figura ostensiva do eu”, porém, paradoxalmente minha formação como artista me leva a encarar a questão sob outro ângulo: a obra é muito maior do que a pessoa, ou seja, eu estou ali no palco apenas em função de algo maior, que pretende, através de mim, tocar as pessoas. Trato de questões que são minhas, mas ao mesmo tempo já existiam quando nasci, de modo que essas questões me atravessam, podendo reverberar (ou não) no público. Meu espetáculo parte do desejo de compartilhar questões universais por meio de uma costura de fragmentos (e reinvenções destes fragmentos, já que estamos falando de arte) de minha história pessoal, afetiva.

Entendo quando menciona a “ostensividade”, mas tenho certeza de que, apesar de ser um solo, o espetáculo parte de outras necessidades… Na realidade, é preciso confessar que, apesar da escolha profissional, sou tímido, não gosto de me expor.

Lineu Gabriel

Lineu Gabriel

JPG – Como você percebe o diálogo com a tradição popular sem abdicar do rigor da invenção artística ou sucumbir ao lugar-comum?

Lineu – A abordagem que realizo das expressões artísticas tradicionais não é superficial, assim, é impossível não relacionar tradição com reinvenção, atualização. Ou seja, essas expressões artísticas são extremamente dinâmicas, são reinventadas, atualizadas cada vez em que seus atores a realizam. Até ouso dizer que em muitos casos o “rigor da invenção” é muito mais latente neste “lugar” do que no teatro ou na dança contemporânea. Eu acredito muito no potencial artístico das expressões tradicionais, acho que ainda é possível encontrar nelas uma força que nem sempre vemos em criações que seguem caminhos mais formais. Acho uma pena que ainda hoje exista uma prerrogativa de que estas manifestações são “menores”, menos importantes que as demais… Aí entramos em outro ponto de sua pergunta: o “lugar-comum” em que se encontram as criações que abordam o “popular”.

Existe uma coisa que acho que é fundamental para que possamos compreender o “popular” de forma mais generosa: precisamos derrubar esta classificação que divide o “popular” e o “contemporâneo”. É uma questão complexa para a qual ainda sinto que tenho muito para desenvolver. Porém, na minha interpretação o que vejo nas manifestações que tive a oportunidade de conhecer de perto é que elas são extremamente contemporâneas. Se ousarmos questionar esta classificação parcial e hierarquizada onde o popular encontra-se em desvantagem, vamos encontrar muitos pontos de diálogo, ou seja, existem muitas contribuições que um lado tem para ofertar ao outro (isto insistindo neste equívoco de separar em dois lados, dois lugares).

Sobre a questão do “lugar-comum”, não acredito que exista risco do Tu sois de onde? somar a isto. Não digo isso por vaidade ou prepotência, mas apenas por que existe um caminho trilhado. Existe uma pesquisa de nove anos, que passou por momentos diferentes, uma pesquisa que envolve vivência, convivência, laços afetivos. No meu caso o “popular” não é um tema, ele entra como ferramenta. Como conteúdo que faz parte de minha formação.

Atualmente, quando brinco carnaval com caboclo de lança (no Maracatu de Baque Solto Estrela de Ouro de Condado), não me preocupo com o que vou fazer com aquilo tudo… Eu simplesmente sou mais um ali brincando, vivenciando esta contradição que é brincar carnaval. Assim, todas essas informações ficam gravadas em mim e podem, ou não, ser acessadas quando entro em um processo criativo. São vivências que fazem parte de mim, mesmo não sendo originalmente daquele contexto.

JPG – A assimilação das técnicas de treinamento de ator no Lume, dada sua convivência e estudos na Unicamp, foram reprocessadas aqui, no Recife ou na Zona da Marta Norte, como um terceiro caminho, de singularidade própria?

Lineu – O trabalho do Lume leva a esta singularidade por si só. Na minha interpretação o foco do que eles edificaram é justamente este empoderamento do artista em relação às suas possibilidades criativas. O que me encanta nesta metodologia (ou no que consegui acessar do que eles desenvolvem) é justamente esta conexão com a subjetividade. Como disse anteriormente, não como um processo egocêntrico (sim, existe certo risco de cair nisto também), mas como uma exploração sistematizada da subjetividade.

Acho que a vinda para Recife, dentro de minha história, inclui muitas coisas. A distância da família, do primeiro “lar” é carregada de processos.

Profissionalmente foi também o momento de aprender a me situar e me posicionar diante de outros profissionais. Acho que este deslocamento nos obriga a organizar nosso discurso, nossa prática. Eu vivenciei muitas crises (e com certeza outras virão) até começar a traçar um esboço de meu caminho profissional dentro das artes.

Voltando a sua pergunta, eu acho que tanto a convivência em Recife como na Zona da Mata Norte tem peso igual para este processo de formação profissional. São lugares diferentes de certo ponto de vista, pois o diálogo com os artistas acontecem de modo muito distinto em cada um desses lugares. Porém, busco respostas para minhas inquietações transitando nesses lugares. Acredito muito no fluxo, no deslocamento. Portanto, acho que o que realmente ressignifica meu fazer artístico é transitar entre lugares diferentes. Talvez seja esta uma das poucas heranças que permaneceram de minha formação em antropologia, a capacidade de enxergar a beleza na diferença.

Serviço:
Tu sois de onde?, grupo Peleja (PE)
Quando: Quinta-feira (23), às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada)

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O grupo Peleja apresenta ainda, dentro do Palco Giratório, Gaiola de moscas. Já escrevemos sobre o espetáculo, que participou da Mostra Capiba ano passado. Leiam e confiram o trabalho. As Yolandas indicam!

Serviço:
Gaiola de moscas, grupo Peleja (PE)
Quando: Sexta-feira (24), às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada)

Gaiola de moscas. Foto: Pollyanna Diniz

Gaiola de moscas. Foto: Pollyanna Diniz

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Mia Couto na Zona da Mata

São só quatro atores-brincantes-bailarinos em cena. Mas parece que eles conseguem extrapolar os limites do palco. Cheguei esbaforida no Teatro Capiba depois de pegar um trânsito gigante; quando entrei, o Grupo Peleja já estava apresentando Gaiola de moscas (#coisafeiachegandoatrasada). E aquela presença no palco, o trabalho de corpo, a forma de contar a história simplesmente me encantaram de cara. Não foi aos pouquinhos não! É de uma lapada só que você diz: “que negócio bom é esse?!”.

Não há quebras – música, dança e interpretação andam juntos. O conto homônimo de Mia Couto casa perfeitamente com a musicalidade do grupo que nasceu em Campinas, mas funciona em Pernambuco e, mais do que isso, bebe nas raízes da Zona da Mata, nas brincadeiras populares, nas nossas tradições, no cavalo-marinho, no frevo para compor um trabalho sólido. Como eles mesmos dizem: não levam ao palco o cavalo-marinho; o que vemos é a recriação, um trabalho que do terreiro do interior chega ao mais contemporâneo dos universos.

Ano passado, também na Mostra Capiba, eu tinha visto Guarda-sonhos, solo da bailarina Tainá Barreto, do Grupo Peleja. Mas naquele era muito mais dança do que exatamente teatro. Em Gaiola de moscas não. As coisas são equilibradas e a ideia é contar uma história, que passa pelo comerciante que vende moscas na vila, por outro que chega de fora e encanta as moças comercializando batom. Interessante que mesmo que o grupo tenha optado por não “traduzir” algumas expressões utilizadas pelo moçambicano Mia Couto, o linguajar não soa estranho. É como poesia.

As cenas se constróem permeadas por muita música e dança. A trilha sonora pensada por Alexandre Lemos e João Arruda é executada ao vivo por esse último e por Pedro Romão. Uma das cenas mais lindas é o embate final entre os dois comerciantes.

A poesia e o humor do conto de Mia Couto são muito naturais ao universo de cores saturadas criado pelo Grupo Peleja. A direção e concepção desse espetáculo, que é de 2007, é de Ana Cristina Colla, do Lume Teatro, de Campinas, local onde o grupo se reuniu. No elenco atual estão Carolina Laranjeira, Eduardo Albergaria, Lineu Gabriel e Tainá Barreto. Não é preciso formalizações, definições rígidas para este grupo. Mas se é na dança que está a raiz, no teatro e, especificamente, na palavra o grupo encontrou um pouso seguro e ao mesmo tempo encantador aos olhos do público.

Confira a crítica de Guarda sonhos, solo de Tainá Barreto, outro espetáculo do repertório do grupo.

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Mia Couto no teatro

Chuva pasmada. Fotos: Pollyanna Diniz

“Acontece que eu estou escritor. Ninguém é escritor, como se fosse uma condição de essência, uma coisa biológica, que nos marca. A escrita pra mim é uma maneira de eu olhar o mundo e, portanto, posso perdê-la e não me perder nisso”. Esse é um trechinho da entrevista que Mia Couto deu ao Roda Viva na última segunda-feira. A obra desse escritor moçambicano nos concede mesmo o prazer de encontrar muitas visões de mundo. E cada uma tão particular, mas todas geralmente plenas em poesia. Os textos nos absorvem aos pouquinhos, despretensiosamente. Quase como se não quisessem nada, entende? E de repente você se depara com uma frase daquelas que te tiram do prumo.

Essa sensibilidade está no espetáculo Chuva pasmada, adaptação do texto homônimo de Mia Couto, feita em parceria por Eduardo Okamoto e o Grupo Matula Teatro, de São Paulo. A peça foi encenada ontem no Marco Camarotti, dentro do projeto Travessias poéticas, que reúne três espetáculos criados a partir da obra do moçambicano. Além de Chuva pasmada, tem Gaiola de Moscas, do Grupo Peleja (PE) e Mar me quer, da A Outra Companhia de Teatro (BA).

Chuva pasmada é um espetáculo muito simples. Um encontro entre dois bons atores – Eduardo e Alice Possani – e um texto sensível. E isso basta. Eduardo e Alice se conheceram na época de faculdade e foi ideia de Eduardo criar o grupo; mas há alguns anos ele decidiu seguir carreira solo. O espetáculo é então um reencontro.

A história é narrada em terceira pessoa e os dois se revezam dando vida a vários personagens. Até numa mesma cena eles podem trocar de personagens. O pai, a mãe, a tia, o avô, o menino. E os atos se desenrolam a partir da história que cada um desses personagens nos traz. É uma história de memórias, encontros, sonhos e paralisias. De humanidade. Em algum momento, aquele texto te provoca, te surpreende, te traz pra perto, mesmo que tudo teoricamente se passe lá na África, na aldeia onde o rio secou e a fábrica insiste em fazer estragos.

Eduardo Okamoto e Alice Possani

Eduardo e Alice conduzem essas narrativas sem exageros. É emoção na medida, limpeza de movimentos e texto, texto e texto. Sem que nada fique pesado; até porque a poesia que fica como ‘chuva pasmada’ ali na sala de espetáculos não deixa que isso aconteça. O texto foi adaptado por Cássio Pires. A direção e iluminação são de Marcelo Lazzaratto, que não precisou de nada mirabolante não. A iluminação nos convida àquele ambiente de terra laranja, clara. Que compõe com a cenografia e figurinos de Warner Reis. A música está lá no momento certo; é de Michael Galasso.

Programação – Hoje é a vez do grupo Peleja apresentar Gaiola de Moscas; e amanhã o projeto segue com Mar me quer. As sessões são sempre às 16h30 e às 19h30 e a entrada é gratuita, já que o grupo foi contemplado pela Funarte no Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro 2010. Aqui em Pernambuco, o projeto ainda vai pra Arcoverde.

Sinopses:

Gaiola de Moscas:
Zuzé é um curioso comerciante, vendedor de cuspes que, para salvar os negócios, se torna vendedor de moscas. Sua mulher, cansada das ideias do marido, se encanta por um forasteiro vendedor de “pintadas” de batons.

Mar me quer:
Cinco atores contam a saga de Zeca, um pescador cheio de histórias que tenta fugir de seu passado, num diálogo eterno com seu Avô, morto. Apaixonado por Luarmina, sua vizinha e outrora amante de seu pai, ele necessita recorrer as suas memórias para conquistar seu amor e continuar vivo, uma vez que ele é castigado por uma promessa que não cumpriu.

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