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Crimes contra a cidade

Quase nada, um drama psicológico, remete ao tônus épico da metrópole

Quase nada, um drama psicológico, remete ao tônus épico da metrópole. Foto: Ivana Moura

X Festival de Teatro de Fortaleza

Quase nada. O título da peça já convoca para a banalidade de algo sem importância. O fato “irrelevante”, no caso, é o assassinato de um menino de rua no semáforo de uma grande cidade. Um casal de classe média alta foi abordado, se assustou com a presença do garoto e o marido atirou à queima-roupa. O pivete morreu e foi largado no asfalto. Alguns jornais noticiam esse tipo de crime, mas nem sempre são apontados os culpados. A violência tornou-se tão corriqueira que a dor da perda e o valor da vida caíram de cotação no imaginário do brasileiro, principalmente quando o alvo são esses seres invisíveis.

O texto do dramaturgo cearense Marcos Barbosa é de 2002 (ele tinha 20 e pouco anos quando criou a peça) e já foi encenado em Londres, Itália, EUA, São Paulo e Bahia. A montagem que participa da 10ª edição de Teatro de Fortaleza é assinada por Altemar di Monteiro, com o grupo Nóis de Teatro.

A primeira apresentação dentro do festival foi no sábado, no Cuca Barra; e a segunda será no Centro Cultural Banco do Nordeste, na quinta-feira (27/11), às 19h.

Personagens sofrem com o crime cometido, mas não o suficiente para pagar por ele

Personagens sofrem com o crime cometido, mas não o suficiente para pagar por ele

Para discutir a violência urbana, a montagem mostra uma intricada conexão com a impunidade, a consciência individual e a falta de senso de coletividade. E ainda traz ideias de superioridade baseada no poderio econômico, desrespeito às leis e negação de cidadania. Todo esse arcabouço poderia cair num panfletário social. Mas a montagem, apesar de apregoar toda a questão política, vai por outro caminho. Percorre a trilha psicológica.

Os personagens estão metidos em espaços claustrofóbicos, que alimentam o sentido dos diálogos. As frases curtas e os silêncios ecoam. Os atores se encarregam de modificar o cenário formado basicamente por módulos de persianas que delimitam o espaço.

Temos três posições nesse drama. O casal amedrontado em ser descoberto; uma mulher que diz ter presenciado o homicídio e é supostamente a mãe da vítima, que aceita dinheiro para ficar calada; e um pistoleiro profissional, que se oferece para apagar as pistas do crime. Compra-se consciência, passa-se por cima das leis ou de convenções sociais.

O espaço público é negado como lugar democrático e se mostra um território perigoso. Mas isso é exibido a partir do ambiente doméstico, de cômodos do apartamento em que o público também exerce esse olhar indiscreto, acusador. A apresentação ocorreu no palco do Teatro Cuca Che Guevara (Cuca Barra, um dos Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte que funcionam na periferia de Fortaleza), com a plateia em volta da cena. Isso contribuiu para criar um clima intimista.

Cena de ameaças e chantagem entre o casal e a suposta mãe do garoto assassinado

Cena de ameaças e chantagem entre o casal e a suposta mãe do garoto assassinado

O espetáculo Quase nada abre e fecha com um vídeo. Antônio e Sara na madrugada. O tiro. Com medo da marginalidade, o marido comete um crime. Abandona o corpo. E eles aparecem em casa. A opressão da violência urbana se volta por algum tempo contra os autores em forma de depressão.

A atmosfera é dos filmes noir, uma guerra de nervos. A direção utiliza desse clima claustrofóbico para situar o estado de penúria psicológica do casal. Tudo é uma ameaça. Inclusive a relação dos dois.

Eles se estranham, não se reconhecem. A violência cometida detona algo dentro deles. A peça está dividida em três movimentos. Nesse primeiro momento, os dois tentam aceitar a situação. A pouca iluminação contribui para o clima opressivo. Dois outros atores leem rubricas ao microfone e complementam falas, grunhidos.

Há uma ligação com roteiro de cinema e plano-sequência. Silêncios secos ou amplificados, desconfortantes, que intercalam as falas dos personagens. Houve um crime. O autor que não deseja pagar por seus atos. A sociedade está anestesiada. E o casal busca assegurar o lugar de conforto e segurança. Para falar de uma cidade em crise, do tônus épico, a montagem investe no miudinho da relação interpessoal.

O jogo cênico é bastante intrigante enquanto possibilidade de levantar a dúvida. Os atores Edna Freire, Magno Carvalho, Kelly Enne Saldanha e Henrique Gonzaga defendem com garra os papeis. De marido e esposa que passam por um turbilhão de emoções, mas se agarram à impunidade do crime cometido para seguir a vida. Da provável mãe do garoto que comete a chantagem e tem pouca articulação verbal. E do pistoleiro mestre da intimidação. O elenco é jovem e trabalha com desenvoltura seus personagens. Talvez falte um pouco mais de repertório gestual e vocal para verticalizar em densidade as questões. Mas o que apresentam já é de grande valia, com os recursos metalinguísticos estruturados a partir do uso das rubricas do autor.

Um espetáculo que ajuda a pensar no jogo de aparências, no ambiente familiar que esconde ações puníveis. E da responsabilidade ética de cada um com seu território urbano.

Boas atuações dos jovens atores do Nóis de Teatro, de Fortaleza

Boas atuações dos jovens atores do Nóis de Teatro, de Fortaleza

Serviço:
Quase nada
Nóis de Teatro
Direção: Altemar di Monteiro
Texto: Marcos Barbosa
Elenco: Edna Freire, Magno Carvalho, Kelly Enne Saldanha e Henrique Gonzaga
Quando: dia 27/11/14, às 19h
Onde: Centro Cultural Banco do Nordeste (Av. Conde d’Eu, 560 – Centro, Fortaleza – CE)
Informações: (85) 3464-3108

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