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Contra o feminicídio, por todas nós

Para Aquelas que Não Mais Estão. Foto: Roderick Steel

Para Aquelas que Não Mais Estão. Foto: Roderick Steel

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Há muito pouco tempo, questões cruciais da nossa sociedade, como violência contra a mulher e racismo, estavam colocadas dentro de um espaço de penumbra. A imagem que vem à mente neste momento de escrita é que funcionava mesmo como se um voal, daqueles fininhos e que deixam entrever o outro lado, envolvesse tudo que não poderia ser realmente dito, gritado, urrado. Mas todos, de alguma forma, enxergavam. Sabiam o que se passava, mas não necessariamente precisavam se posicionar. É como se não nos sentíssemos no lugar de corresponsáveis pela construção de um tecido muito mais amplo, estrutural.

Desse modo, a consciência crítica que poderia surgir a partir do debate coletivo sobre temas fundamentais até hoje não conseguiu se instaurar de modo mais amplo. Finalmente, ao custo de muita dor, lágrimas, violência de todos os tipos, as coisas parecem estar mudando. O verdadeiro “monitoramento” social que se instalou principalmente com a internet e, depois, com as mídias sociais, para o bem e para o mal, tem provocado transformações significativas na maneira como nos colocamos diante de situações que, antes, estariam restritas praticamente à vida privada.

Por exemplo: é da minha conta sim quando mais uma mulher é vítima de qualquer tipo de violência. Seja a violência de se privar de fazer alguma coisa – usar uma roupa curta ou justa, sair à noite, sentar no bar para tomar uma cerveja sozinha -, seja o preconceito no ambiente de trabalho, a obrigatoriedade de se encaixar em padrões pré-estabelecidos, ou o feminicídio. Vivemos por muito tempo numa sociedade que culpabilizava as vítimas, como se coubesse às mulheres o papel de evitar estupros, assédios, mortes. Não, não é crime passional. É feminicídio.

O “textão” que poderia se encaixar em algum post no facebook – são muito significativas campanhas que denunciam, por exemplo, o primeiro assédio, ou atitudes que não seriam normalmente enquadradas na categoria de machismo, além de todas as comunidades feministas que surgiram na rede – na realidade é para tratar de arte. A performance Para Aquelas Que Não Mais Estão, vista durante a II Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo, foi fruto de uma parceria entre a atriz, performer e ativista mexicana Violeta Luna e o Coletivo Rubro Obsceno, de São Paulo.

Performance foi fruto de uma parceria entre a atriz, performer e ativista mexicana Violeta Luna e o Coletivo Rubro Obsceno, de São Paulo. Foto: Reprodução Twitter Tusp

Performance foi fruto de uma parceria entre a atriz, performer e ativista mexicana Violeta Luna e o Coletivo Rubro Obsceno, de São Paulo. Foto: Reprodução Twitter Tusp

Assim como a performance Espaço de silêncio, da dramaturga, professora e atriz Nina Caetano, também apresentada durante a Bienal, Para Aquelas que Não Mais Estão tratou do feminicídio sem subterfúgios, de maneira clara e direta. De fato, são posturas que trazem como resultado a ampliação, ou a renovação, do potencial político da arte. Estamos falando de um teatro que não se esquiva de pensar a realidade na qual que vivemos, que consegue manusear os dados concretos de violência e expandir significados através da articulação entre discurso, ação e poética.

No espaço delimitado por faixas de construção, um verdadeiro ringue de horrores, mas também uma arena de libertação, Violeta Luna, Letícia Olivares e Stela Fischer deram a ver histórias de muitas mulheres. Mortas com tiros de revólver, pedra, cabo de vassoura, faca, tesoura. Fica absolutamente claro que, geralmente, o criminoso é alguém com envolvimento afetivo com a vítima, e que a violência em si não carrega preconceitos: todas são vítimas, mulheres de todas as raças, classes sociais, idades.

Uma pilha enorme de roupas colocada no centro da cena traz associações óbvias com a tarefa cotidiana de vestir-se, mas também com a brutalidade com que simplesmente essas mulheres são limadas da existência. Histórias de jovens, adultas e até de crianças vítimas de violência são trazidas à tona. A cenografia foi organizada de forma que em cada pequeno nicho uma ação se desdobra, como quando uma das performers de fato simula ser vítima de um feminicídio e tem seu corpo estendido no chão, coberto por areia.

Durante toda a performance, os espectadores estão em pé ou sentados no chão, se assim desejarem. Não foram disponibilizadas cadeiras no espaço. Mesmo que não fosse objetivo ainda da cena promover uma interação mais direta, quando as três performers estavam sozinhas no ringue, a situação é mesmo de desconforto e também, talvez, de fazer refletir sobre passividade. De maneira mais generalizada, tudo o que se passa ali – ou nas imagens projetadas fora do ringue – deixa claro o quanto somos coniventes como sociedade, o quanto falimos na proteção às nossas mulheres.
Essas mulheres ainda estão à margem, ignoradas e invisíveis.

O espetáculo termina depois de um momento muito significativo. As performers iniciam uma espécie de memorial às vítimas, um velório ritualístico. As velas acessas carregam os nomes e as idades das vítimas, ditas em voz alta. Trata-se de uma construção da nossa memória coletiva, que não registra, por conta de uma lógica perversa fundamentada no machismo, milhares de mulheres mortas todos os dias. Para Aquelas que Não Mais Estão termina com um silêncio ensurdecedor. O tema tratado na performance, e a maneira como foi abordado, não deixam espaço para aplausos, por exemplo. Não temos ainda o que comemorar, mas podemos dizer que a arte, a partir de algumas iniciativas desse tipo, também está fazendo a sua parte nessa luta contra o feminicídio.

Performance promoveu um velório simbólico para as vítimas. Foto: Reprodução Twitter Tusp

Performance promoveu um velório simbólico para as vítimas. Foto: Reprodução Twitter Tusp

Ficha técnica:
Criação e atuação: Violeta Luna e Coletivo Rubro Obsceno (Leticia Olivares e Stela Fischer)

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Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12).

A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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