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Transfiguração da carne

Crítica da peça Carnes Tolendas, do grupo Banquete Escênico
Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

A dramaturgia é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena

A dramaturgia é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena

Destas Carnes Tolendas, poderíamos fazer diversos cortes. O trabalho do grupo de Córdoba oferece, como anuncia seu nome, um banquete de possibilidades para a cena. Como numa refeição completa, a peça oferece entrada, salada, diferentes pratos, com temperos variados, sobremesa e aperitivo(s). A dramaturgia – assinada pela diretora María Palacios e pela atriz Camila Sosa Villada – é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena, que é ora depoimento, ora citação, ora comentário, deslizando do mimético ao performativo numa dinâmica que de tempos em tempos vai renovando o pacto com o espectador.

A imagem da atriz, seu corpo, sua voz e sua presença nos convidam a entender o seu organismo complexo, que supera a oposição entre homem e mulher e constrói um lugar de beleza da convivência entre masculino e feminino. A dimensão confessional do trabalho aparece tanto no corpo de Camila quanto na construção do texto e na encenação. Dos poucos objetos utilizados na cena, alguns fazem o papel de ponte com o real, são vestígios da história pessoal da atriz. E o desenho do seu corpo na visualidade da cena remete às mudanças que ela propôs a si mesma no processo de travestimento: ela se contorce, se provoca o desequilíbrio, se revira como se procurasse a identidade do lado do avesso.

Mas o recorte específico que proponho aqui, rapidamente, é a relação criada com os textos de Federico García Lorca. Alguns trechos de peças do poeta e dramaturgo espanhol são citados no espetáculo. As mulheres de Lorca são colocadas em situação de espelhamento com a condição complexa do corpo de Camila. A maternidade, tomada pela sociedade em que vivemos como o alfa e o ômega da realização de ser mulher, é uma impossibilidade para personagens com Yerma e D.Rosita, assim como para Camila. E esse “assim como” é um certo nó.

O corpo travesti faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne

O corpo travesti faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne


O discurso de Yerma sobre seu ventre seco ganha contornos angulosos na voz de Camila. A ideia de esterilidade é aqui subvertida, transfigurada. Por transfiguração entendo uma alteração de estatuto, uma passagem incomum – lembrando que o termo é usado tanto no contexto religioso (a Transfiguração de Cristo) quanto na teoria da história da arte moderna e contemporânea (a transfiguração do lugar comum no pensamento de Arthur Danto). O corpo travesti (e em uma medida mais profunda, transexual) faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne e dá à luz uma mulher feita. Uma transfiguração.

E todo esse processo traz em si uma teatralidade particular. Carnes Tolendas me parece falar dessa teatralidade de ser homem, de ser mulher e de estar em um mundo que insiste em dar as regras de uma dramaturgia clássica. O travestimento tem uma teatralidade na vida. Colocá-lo em cena, como questão e como condição, dobra a teatralidade do corpo e desdobra nosso entendimento do mundo.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Corpos de intervalo

Camila. Foto: Fernanda Pessoa.

Camila Sosa embaralha lembranças com o universo de Lorca. Foto: Fernanda Pessoa.


Ao explorar cenicamente uma condição de intervalo entre ser homem e mulher, a atriz Camila Sosa Villada, potencializa a poética do seu espetáculo confessional Carnes Tolendas: Retrato Escénico de un Travesti com trechos da vida e obra de Federico Garcia Lorca. No início da encenação, uma figura toca um tango. Uma outra se multiplica em várias identidades, mãe, pai, facetas da sociedade e o filho travesti. A tocadora de acordeon, que também é a diretora María Palacios, sai. A atriz Camila Sosa Villada se debulha física e emocionalmente e se mistura aos personagens lorquianos.

A atriz trouxe das experiências do passado o material para a construção desse documentário cênico. Mas esses fatos reais recebem camadas de ficção na cena. Seja pela inclusão do universo do poeta e dramaturgo espanhol; ou pelo distanciamento temporal dos episódios, que faz um “ajuste” nessa memória.

É uma narrativa fragmentada em várias vozes. Mas tendo como posto de enunciação a protagonista. Camila transita entre personagens com o seu gestual e o registro vocal, que delimita cada um. São cenas fortes e palavras duras, repressões e ofensas da sociedade. “Eu sangrei em beijos”; “Sois a essência da merda em pó”; “Nesta casa eu não quero travestis”; “Lubrificador transsexual sujo”.

A família rejeita a personagem, e a atriz expõe esses confrontos com as frases ditas como navalhas, para ferir. É uma performance dinâmica e com poucos gestos a intérprete se transforma no pai violento, na mãe submissa, nos exploradores sexuais.

Seu cavalo é bem treinado e exibe excelente técnica teatral. E vai se transformando. Se distanciado daquele ambiente caseiro, para um mundo nada acolhedor.

Carnes tolendas traz figurino e cenário minimalistas

Carnes tolendas traz figurino e cenário minimalistas


A atriz leva ao palco roupas do menino que foi: “Faz muito tempo eu estive dentro destas roupas”, constata num melancólico suspiro sobre a impossibilidade de ter filhos e numa alusão também a Yerma, de Lorca.

O figurino e o cenário são minimalistas. O que dá ainda mais destaque às palavras, aos gestos, à atuação.

O Grupo Banquete, de Córdoba, faz uma procissão dos deuses destronados. A carnavalização da cena para sobreviver ao insulamento, aos amores clandestinos, ao autoritarismo. Na concepção de Bakhtin, a carnavalização possibilita a inversão, com os marginalizados se apoderando do centro simbólico.

Essa subversão em Carnes Tolendas vem em torrentes de ironia, apontada para uma sociedade que nega, renega, despreza, diminui, desqualifica. Ao se maquiar, se travestir, ela fala: “Eu tenho nojo dos gordos. Eu tenho nojo dos judeus. Eu tenho nojo das pessoas que limpam os vidros e os sinais. Eu tenho nojo da empregada que limpa a minha casa. Eu tenho nojo dos meninos com síndrome de Down. Eu tenho nojo das prostitutas. Eu tenho nojo dos drogados. Eu tenho nojo dos ladrões”, e conclui dizendo que tem nojo de todos e de cada um da plateia. O público aplaude.

Carnes Tolendas é um espetáculo com dramaturgias textual e cênica fortes, que articula questões importantes da contemporaneidade, com uma poética que destaca as sutilezas humanas e suas frágeis condições. Para fechar sua atuação esmerada, a atriz se expõe em nu artístico num flash, numa imagem fugidia.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Vida de inseto no teatro

O malefício da mariposa

O malefício da mariposa. Fotos: Pollyanna Diniz

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

No seu O mal estar na civilização, Freud diz: “Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento, como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade”. O amor, as impossibilidades, a rejeição. Em O malefício da mariposa, o espanhol Federico Garcia Lorca, tratou disso tudo – mas através de personagens vindos diretamente do mundo dos insetos.

É um texto cheio de poesia, singelezas, metáforas e sonoridade. E a Ave Lola Espaço de Criação, de Curitiba, soube não só “respeitar” a dramaturgia de Lorca, mas aproveitar-se dela, no ótimo sentido da palavra, para alavancar uma montagem que tem no conjunto da sua teatralidade (e não apenas no texto) o seu trunfo – trabalho do ator (com um impressionante trabalho de corpo), figurino, maquiagem, cenário, iluminação e, com grande destaque, a música.

O malefício da mariposa

Peça é do grupo Ave Lola Espaço de Criação

O trabalho dos paranaenses, apresentado no Teatro Hermilo Borba Filho, durante o Palco Giratório (o grupo está participando da circulação nacional), é inspirado no do Théâtre du Soleil. Depois da sessão, durante o bate-papo com o público, eles contaram que fizeram oficinas com integrantes e ex-intregantes da companhia de Ariane Mnouchkine. A música, inclusive, foi um presente de JJ Lemêtre, que assina a composição musical; ela está lá não para reforçar ou mesmo recontar a dramaturgia, mas tem um pulsar muito particular.

Assim também é a composição dos personagens, um trabalho bem completo, incluindo muitos elementos que vão se amalgamando. A postura corporal se mostra bastante específica, já que os atores estão interpretando insetos e isso parece que se transforma num estado que define todo o resto. Há uma energia e uma sintonia grande entre o elenco, que se utiliza também do teatro de formas animadas, da manipulação de bonecos, para contar a história.

Apesar de ser uma história simples, a forma como é contada pode dificultar a sua compreensão. Mas geralmente é muito fértil a escolha pelo não óbvio, pode acrescentar bem mais ao olhar do público. O grupo decidiu, por exemplo, manter alguns textos em espanhol. Essa mistura causa estranhamentos. Já no início do espetáculo, há uma tradução “quase simultânea”. Fica difícil não se perder – não só na tradução: você quer entender o texto em espanhol sem a necessidade do português -, mas na sonoridade da língua. Bom, se algumas palavras escaparam, paciência! A música trazida pelo castelhano soma sobremaneira àquele conjunto.

A monocromia do cenário – algo como um tapete fofo trazendo a imagem de um jardim – nos remete à simplicidade. A olhar o mundo sem tantos filtros coloridos ou solarizações. E pode haver muita teorização na tela branca sob fundo branco. É a arte abstrata trazida ao palco.

Bonecos foram confeccionados pelos próprios atores

Bonecos foram confeccionados pelos próprios atores

Os três atores se revezam na interpretação dos personagens (alguns são interpretados por mais de um ator) e no interessante e difícil jogo da encenação de misturar atores reais e bonecos. Os bonecos, aliás, foram confeccionados pelo próprio grupo.

O malefício da mariposa é um espetáculo que aguça os sentidos e percepções. Que encanta por Lorca, pelos atores, pela música, mas sobretudo pela competência e trabalho árduo trazidos à cena. E é apenas o primero trabalho do grupo. Vida longa, pois!

*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.

Ficha técnica – O malefício da mariposa
Texto/concepção: Federico García Lorca
Adaptação: Ana Rosa Genari Tezza e grupo
Tradução e direção: Ana Rosa Genari Tezza
Elenco: Alessandra Flores, Janine de Campos, Val Salles
Atriz aprendiz: Tatiana Dias
Direção de arte: Cristine Conde
Composição musical: JJ Lemêtre
Cenário e figurino: Cristine Conde
Confecção de bonecos: Cristine Conde, Alessandra Flores, Janine de Campos, Val Salles
Consultoria de máscaras: Calu Monteriro
Sonoplastia: Ana Rosa Genari Tezza
Iluminação: Rodrigo Ziolkowski
Assistente de iluminação: Raul Freitas
Operadores de som: Tatiana Dias e Ana Rosa Genari Tezza
Operador de luz: Raul Freitas
Documentação e direção áudiovisual: José Tezza
Cenotécnica: Proscenium Cenografia

Montagem é a primeira do grupo paranaense, que mantém um espaço em Curitiba

Montagem é a primeira do grupo paranaense, que mantém um espaço em Curitiba

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Bonecos repletos de beleza

Arnaldo Antunes levou música ao Sesi Bonecos. Fotos: Ivana Moura

Um espaço de encantamento foi armado no fim de semana no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. O público teve oportunidade de apreciar a sofisticação técnica do russo Viktor Antonov, um virtuosi na manipulação das marionetes de fios; o teatro italiano Girovago & Rondella, que cria personagens excepcionais com as mãos; os Poemas visuais do espanhol Jordi Bertran, os divertidos personagens criados com partes do corpo dos grupos peruanos Hugo y Ines e La Santa Rodilla. Mas além dessas atrações internacionais, o Sesi Bonecos do Mundo reuniu bonequeiros populares como Chico Simões, do Distrito Federal, Mestre Tonho de Pombos, Mestre Zé de Vina de Glória do Goitá (considerado o mais vigoroso atualmente), Mestres Waldeck de Garanhuns e Josivan. Eles fizeram demonstração de como se constrói e manipula os mamulengos e divertiram com seus brinquedos nas barracas.

Mestres Amaro e Zé de Vina, de Glória do Goitá

O grupo paulista XPTO trabalha com uma estética mais contemporânea, mas desta vez o diretor Osvaldo Gabrieli foi buscar inspiração no popular. A trupe exibiu o espetáculo O teatrinho de Dom Cristóvão, um texto picante de Federico Garcia Lorca, em que expõem com humor figuras trapaceirass e traidoras, como o velho rabugento Dom Cristobal e Dona Rosinha. A encenação Caetana, da Duas Companhias, arrancou elogios da plateia que encarou a chuva no sábado, ao contar a história de Benta, que tenta driblar a morte.

XPTO buscou inspiração no popular

As chuvas e as temperaturas baixas alteraram a disposição dos paulistanos de sair de casa. O festival Sesi Bonecos do Mundo, que montou uma quadra cenográfica dentro no Ibirapuera, foi visitado por número bem menor do que era esperado.

“Oito mil pessoas assistiram ao Sesi Bonecos do Mundo em São Paulo. Se este número parece grande para as costumeiras plateias de teatro de marionetes, para o Festival que ampliou as possibilidades de acesso à arte titereteira é pequeno. É que, mesmo tendo escolhido o período de maior seca na região, uma frente fria surpreendeu a estação. Agora, o Festival segue para o Rio. E a previsão é de sol para o fim de semana”, diz a publicitária pernambucana Lina Rosa Vieira, idealizadora e produtora do evento.

Lívia Falcão e Fabiana Pirro apresentaram Caetana

As duplas sessões durante três dias no Teatro do Sesi, na Avenida Paulista, foram lotadas. No primeiro dia os grupos peruanos Hugo y Ines e La Santa Rodilla mostraram que há muitas possibilidades de exploração artísticas do corpo, transformando mãos, pés, joelhos, barrigas e outras partes em personagens da vida cotidiana. A trupe italiana Girovago & Rondella exibiu dois personagens absolutamente sedutores, apresentando números de circo. O russo Viktor Antonov deixou o público feliz com seu desfile de bonecos de fio: uma bailarina hindu, o halterofilista, macacos acrobatas, um camelo, os detalhes são preciosos para comunicar com a público.

Nas apresentações no teatro, o projeto adotou ações de libra e audiodiscrição. “Dentre tudo, o que mais me emocionou foi a inclusão dos cegos e surdos no projeto”, conta Lina. Ela chorou quando viu um garotinho cego feliz ao tocar nos bonecos do Viktor, enquanto sua mãe explicava quem era aquela criatura.

Uma baixa do Sesi Bonecos foi Gulliver, da Cia Viaje Inmóvel, do Chile. A trupe chegou, mas o grande cenário não.

A abertura com o desfile do grupo mineiro Giramundo levou seus monstros, princesa, dragão, sapo, entre outros personagens, para brincar com crianças e adultos e reforçou a ideia que cada um possui seus monstrinhos. O Giramundo apresentou suas Torres Andantes de Bonecos. O conjunto de 9 torres, 30 bonecos de vara e 2 bonecos de mochila, apresenta várias formas de construção de bonecos gigantes.

A exposição dos 40 anos do Giramundo também é deslumbrante. Personagens dos 33 espetáculos fazem parte da mostra, reunidos por peças e com dados históricos da montagem.

Exposição reúne bonecos dos 33 espetáculos do Giramundo

Giramundo está comemorando 40 anos

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