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Que caiam as máscaras brancas!
Crítica do espetáculo Pele negra, máscaras brancas

Pele negra, máscaras brancas. Foto: Adeloyá Magnoni

Montagem da Cia de Teatro da UFBA foi dirigida por uma artista negra pela primeira vez. Foto: Adeloyá Magnoni

Em 2019, pela primeira vez em 38 anos, uma peça da Companhia de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) foi dirigida por uma mulher negra. Ao longo da trajetória da companhia, esse foi o segundo espetáculo que pode ser considerado Teatro Negro, pela temática, pela poética, pela equipe envolvida em sua realização. Pele negra, máscaras brancas, 53ª montagem no repertório do grupo, tem a assinatura de Onisajé (Fernanda Júlia) e dramaturgia de Aldri Anunciação a partir do texto homônimo de Frantz Fanon. A gravação do trabalho foi exibida on-line na programação do festival Janeiro de Grandes Espetáculos.

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Tão logo o espetáculo começa, a pergunta que vai permear toda a dramaturgia é feita de cara, através da potência da música: o que quer o homem negro? O que quer a mulher negra? O questionamento também está na introdução do livro que é considerado uma obra fundamental na discussão sobre negritude e colonialidade: “Por mais penosa que possa nos parecer esta constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, existe apenas um destino. E ele é branco”. Se na sociedade ocidental, branco seria sinônimo de humano, Frantz Fanon (1925-1961) vai se debruçar sobre as consequências da alienação colonial, que impede que os negros sejam sujeitos de suas próprias histórias, e da tentativa de embranquecimento em vários âmbitos da existência do povo negro.

O psiquiatra e filósofo político nascido na Martinica, uma ilha francesa no Caribe, teve o esboço da sua tese de doutorado, que mais tarde seria o livro que dá título à peça, rechaçado por seu orientador. No espetáculo, Fanon vira personagem e encara novamente uma banca, defendendo as ideias que dão embasamento ao espetáculo. São três tempos dramatúrgicos: 1950, quando a tese não foi aceita, 2019, ano de estreia do espetáculo, quando o psiquiatra faz sua argumentação, e 2888, mil anos depois da abolição da escravatura no Brasil.

Nesse último, uma família, todos negros, vive sob um “regime único mundial”. Não existe mais a moeda, as necessidades são satisfeitas por esse regime, mas os rastros de colonialidade estão presentes sob várias perspectivas. Não há, por exemplo, liberdade, seja de corpos ou de pensamentos: os livros da velha biblioteca, que contam a história de como eles chegaram até ali, são proibidos. O conhecimento é cerceado.  

Não é possível compreender quem de fato são aquelas personagens, suas subjetividades, quais os seus desejos. São muitas as camadas de máscaras, numa narrativa que vai sendo reproduzida ao longos dos anos. A empregada, por exemplo, diz que quer servir, enquanto os filhos que tiveram acesso à biblioteca retrucam – ela não pode querer isso. Como desvelar subjetividades que foram marcadas por um sistema de opressão e subjugação? Como questionar os padrões que referenciamos, que fazem parte do nosso cotidiano sem que a gente ao menos se aperceba? Como os traços da colonialidade se revelam nos corpos negros?

Pele negra, máscaras brancas. Foto: Adeloyá Magnoni

Espetáculo possui três tempos dramatúrgicos. Foto: Adeloyá Magnoni

A peça tem uma pegada de futuro distópico na elaboração visual da cena e na fisicalidade proposta aos atores da família, como se aquela realidade estivesse noutra dimensão, no tempo distante de 2888. Mas, como sugere a professora Leda Maria Martins, talvez faça muito mais sentido se enxergarmos essa cronologia como espiralar: passado, presente e futuro. Há muito de presente e de passado na elaboração desse futuro.

Um dos principais desafios do espetáculo é a sua intenção declarada de defesa de tesa, de explanação de argumentos. De alguma maneira, está muito próximo, por exemplo, dos textos políticos da década de 1960, escritos com um propósito muito claro. Neste caso, a referência é utilizada muitas vezes na íntegra: trechos do texto de Fanon são reproduzidos exatamente como escritos nas vozes dos personagens.

Como a sua escrita tem uma força muito efetiva, uma construção de sentidos que favorece a oralidade, um dos pontos na encenação é como esses corpos vão carregar esse texto e como construir esse espetáculo sem que ele se torne uma aula, uma explanação acadêmica. Além da preparação dos atores, que fica muito evidente na cena, a solução encontrada está na ritualidade, no coro e na música, que quebra o caráter epistolar do espetáculo. Que traz para o palco a cultura negra, a movimentação de corpos que estão nas ruas, nas baladas, no show de Elza Soares. 

Nesse sentido, não há discrepância entre conteúdo e forma nos momentos em que o espetáculo se torna mais musical. A afirmação do empoderamento desses corpos negros, a luta pela representatividade, pela liberdade em sua plenitude percorre toda a montagem. É um espetáculo negro, político, pelas cores das peles que estão em cima do palco, que estão nas coxias, pela maneira como abordam a necessidade de descolonizar corpos e pensamentos.

No contexto do espetáculo, discussões de gênero e de raça estão relacionadas, já que há uma mulher trans no elenco, já que não podemos esquecer que é uma peça que tem uma mulher negra na função de diretora. Você consegue enumerar uma lista dos espetáculos dirigidos por mulheres negras a que você assistiu na vida? A luta por representatividade é urgente e, aqui do meu lugar de mulher branca, não posso deixar de pensar que é esse o teatro que me transforma. Que desse tipo de teatro precisamos nos banhar. Que, cada vez mais, a escolha dos espetáculos para ver, para escrever, para tentar estabelecer um diálogo, precisa passar por filtros da representatividade.

Como se empretecer? Peça-manifesto-ritual-defesa de tese, Pele negra, máscaras brancas reivindica o desejo de saber, o resgate da subjetividade, o conhecimento ancestral de que corpo é lugar de memória, possibilidade de resistência e transformação de existências. Que caiam as máscaras brancas! 

Ficha técnica:
Pele negra, máscaras brancas, da Cia de Teatro da UFBA
Direção: Onisajé (Fernanda Júlia)
Codireção: Licko Turle
Texto: Aldri Anunciação
Elenco: Akueran Neiji, Iago Gonçalves, Igor Nascimento, Juliette Nascimento, Manu Moraes, Matheus Cardoso, Matheuzza Xavier, Rafaella Tuxá, Thalia Anatália, Victor Edvani
Assistência de direção: Fabíola Nansurê
Orientação de pesquisa: Alexandra Dumas e Licko Turle
Colaboração em pesquisa: Cássia Maciel, Edson César e Lucas Silva
Estudantes-pesquisadores: Camila Loyasican, Juliana Bispo, Juliana Luz, Juliana Roriz
Trilha sonora: Luciano Salvador Bahia
Preparação vocal: Joana Boccanera
Operação de som e vídeo: Fabíola Nansurê
Coreografia e preparação corporal: Edileusa Santos
Cenografia, figurino e maquiagem: Thiago Romero e Tina Melo
Costura: Márcia Cardoso e Saraí Reis
Cenotecnia: Luiz Antônio Sena Jr., Luiz Buranga, Thiago Romero e Tina Melo
Desenho de luz: Nando Zâmbia
Operação de luz: Milena Pitombo e Nando Zâmbia
Produção: DA GENTE Produções
Direção de produção: Luiz Antônio Sena Jr
Produção executiva: Anderson Danttas e Bergson Nunes
Assistência de produção: Eric Lopes
Assessoria de imprensa: Théâtre Comunicação (Rafael Brito)
Design gráfico: Diego Moreno
Registro fotográfico: Adeloyá Magnoni
Registro audiovisual: Adriano Machado
Legendagem: Letícia Ranzani
Realização: Escola de Teatro da UFBA

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Equilíbrio nos trilhos de Williams

Propriedade condenada, texto de Tennessee Williams, direção de Érico José. Foto: Pollyanna Diniz

Quem conheceu Tennessee Williams diz que estar ao lado dele não era exatamente agradável. O dramaturgo e diretor Arthur Laurents, em entrevista a Richard Eyre, registrada no livro Talking Theatre, diz: “You should never have met Tennessee. He was usually drunk. He made silly jokes. I didn’t know him all that weel. He wasn’t the kind of person you wanted to spend time with. For me particularly because I revered his work, so I didn’t want to be disappointed in the person”.

Bêbado ou não; perturbado por um biografia punk-hardcore, que inclui uma lobotomia sofrida pela irmã; Williams era genial. Tanto é que foi o vencedor do Pulitzer por duas vezes, com Um bonde chamado desejo e Gata em teto de zinco quente. A história guardada na memória e na gaveta do encenador Érico José por alguns anos, no entanto, não é desses mais badalados, que viraram inclusive filme, mas o texto curto Propriedade condenada, de 1946. Foi essa a montagem (o texto foi traduzido por Diego Albuck) que Uerla Cardoso e Augusto Nascimento, da Escola de Teatro da UFBA, apresentaram no último sábado na VI Mostra Capiba de Teatro.

O texto de Tennessee é extremamente político. Fala do esfacelamento de um sociedade a partir de uma história particular: da garota Willie – a mãe dela fugiu com um homem, o pai desapareceu, a irmã foi abusada e morreu de tuberculose, e a menina herdou os seus amantes. Um enredo por demais indigesto. Willie e o adolescente Tom se encontram nos trilhos de um trem e é quando Willie começa a contar ao amigo parte da sua história.

Embora seja forte e fundamental, não é só no texto que está o vigor da montagem proposta por Érico José e por seu assistente de direção Vinícius Lírio; mas sim no trabalho de corpo dos jovens atores. Érico partiu das suas pesquisas sobre butô e biomecânica para levar ao palco algo que não tem necessariamente a ver com emoção – mas com energia. Há uma interação entre os atores que transcende o diálogo.

Para completar, as cenas são construídas como verdadeiras coreografias, como a entrada do garoto com uma pipa; a dança dos dois; um rio que aparece nos meios do trilho. A montagem também é rica em signos que podem ser interpretados a partir do olhar de cada espectador. Os personagens, por exemplo, têm os corpos pintados de branco numa referência clara ao butô, o que não exclui outras camadas de significados.

Pode existir, por exemplo, uma relação com o imaginário, com o sonho, com o surreal – em certo momento Tom diz algo do tipo: “mas essas histórias parecem ter sido inventadas, Willie”. Será que aconteceram mesmo? Há ainda uma dicotomia que se estabelece muito – entre o equilíbrio e o desequilíbrio; desde o andar nos trilhos, até a relação de energia entre os dois atores.

Apesar de muito jovens, Uerla e Augusto estão muito bem em cena (até cantam em inglês). Cenografia (trilhos de madeira cortam o palco) e iluminação ajudam na tarefa de trazer o espetáculo ainda mais para perto do público. Se o texto é mais um dos elementos dessa encenação, tudo parece ter sido muito bem dosado. E, além de tudo, Propriedade condenada ainda serve para mostrar como as pesquisas surgidas dentro da universidade podem ser levadas ao palco de forma muito bem sucedida.

Uerla Cardoso como a garota Willie

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