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Comovente O jardim, da Companhia Hiato

O jardim, da Companhia Hiato, espetáculo comovente. Fotos: Ivana Moura

É muito difícil um espetáculo despertar tantas sensibilidades. Mérito de O Jardim, da Cia. Hiato, dirigido por Leonardo Moreira. A recepção nos dois dias foi muito parecida. Gente chorando após as apresentações. É um trabalho comovente que vai tecendo suas teias para tocar na emoção do público aos poucos.

Seus personagens perderam algo e tentam se agarrar a todo custo a um passado que foge implacavelmente. Restam as lembranças.

É uma peça que trata da memória a partir do cruzamento de três episódios de uma mesma família em épocas distintas.

Em meio a um amontoado de caixas de papelão, – que já indica separação, despedida, abandono,- os personagens expõem situações-limite. A jovenzinha que busca manter o casarão ou o que sobrou dele; o último encontro de um casal que já se amou e o acerto de contas de duas filhas com seu pai que será levado ao abrigo.

Espaço e tempo são fragmentados e o público fica dividido em três plateias e dependendo da localização assiste a sequências diferentes. As três ações se desenvolvem ao mesmo tempo, mas o espetctador só acompanha uma de cada vez. Há uma sobreposição e algumas lacunas o espectador deve preencher.

A sequência que vi foi a partir da terceira trama, que se passa em 2011. A neta de Thiago luta pela conservação da história sua família. Ela dialoga com a moça que trabalhou a vida inteira na casa, uma propriedade que tem um grande jardim e faz alusão ao clássico O Jardim das Cerejeiras, de Tchékhov. Nesse primeiro quadro há o confronto da que sempre teve e perdeu e da que quase nada teve mas também perdeu. Há um sutil choque social e um humor fino para destacar essas diferenças.

Depois vi um casal em processo de separação. É 1938. A mulher tenta de todo jeito manter o casamento, eles brigam, se abraçam, choram,se beijam. Rememoram, se acusam. Ela faz chantagem emocional, mas Thiago está irredutível. Eles perderam um filho, e o futuro.

Quatro décadas depois, o Thiago de 1938 é um senhor que sofre de Alzheimer, prestes a ser internado numa clínica por suas filhas. Uma está grávida e foi abandonada pelo marido. Esta ficou para cuidar do paí. A outra é uma atriz que se mudou para a França, para cuidar da sua vida. Há acusações mútuas e a culpa que cada uma tem que aprender a conviver. O velho tem um olhar perdido no tempo. E essa situação, de decidir internar seus velhos queridos em asilos já é um detonador de sentimentos contraditórios.

Episódio de 1938, separação do casal

Como atesta Carlos Drummond de Andrade em seu poema Resíduo:
“De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco”.

Para mais adiante em tom maior:
“E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.”

Lembrei desses versos, da memória como algo que cheira e fede. E os odores são como senhas que nos transportam, quase num passe de mágica, para um outro tempo, outro espaço…

Episódio de 2011, da neta de Thiago

Os ótimos atores da peça trabalham valorizando a sutiliza e os detalhes emocionais. É uma poesia dramática, com direção delicada, iliminação que acompanha esse sentimento. Um espetáculo que marcou esta versão do Festival Recife do Teatro Nacional, na primeira curadoria de Valmir Santos.

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