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Gabriela provoca pequenas explosões interiores

Último encontro entre Nelsinho e Luis Antônio

Último encontro entre Luis Antônio e Nelsinho

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

“I hope you don´t mind that I put down in words”

Não só em palavras. Em Luis Antonio – Gabriela, o diretor Nelson Baskerville levou ao palco uma profusão de imagens que vão compondo um quadro caótico. Lembra uma pintura de Pollock e o seu processo de feitura, o ritmo da action painting. Como se o pintor fosse uma extensão da sua arte, com as tintas gotejando, escorrendo, enquanto ele anda descalço pelo próprio quadro. É esse ritmo alucinante de work in progress, de camadas que vão se sobrepondo e de uma obra que não tem as arestas de “bem-acabada”, que está na montagem da Cia Munguzá de Teatro, apresentada em duas sessões dentro do festival Palco Giratório.

Não foi a primeira vez que o grupo esteve na cidade. Em 2011, Valmir Santos, que era curador do festival Recife do Teatro Nacional, trouxe o repertório do coletivo; e Luis Antonio – Gabriela foi apresentada no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu. Definitivamente, não era o melhor espaço para a peça. Apesar de obviamente ocuparem toda a extensão daquele palco italiano enorme e do final ter tido um efeito lindo, com a vista da esplanada do parque, a montagem ficou distante do público. No Santa Isabel a encenação já me pareceu completamente diferente. E despertou uma multiplicidade de sentimentos difíceis de serem traduzidos, digeridos; é como algo que vai causando pequenas explosões interiores.

Para realizar a montagem, Baskerville revirou o baú das próprias memórias, de uma família desajustada, do falecimento da mãe no parto, das brigas entre o pai e a madrasta e, o mais importante, das histórias com um dos irmãos, oito anos mais velho, que desde cedo enfrentou problemas por causa da sua sexualidade e mais tarde se tornaria Gabriela.

 Verônica Gentilin que assina a dramaturgia e faz a figura do drietor

Verônica Gentilin assina a dramaturgia e interpreta a figura do diretor

Os elementos do jogo proposto pelo diretor ficam muito claros ao espectador. Os atores começam a peça se apresentando e dizendo quais personagens irão interpretar e como eles poderão ser identificados, seja por uma peruca ou por um lençol. E a ficção vai se misturando à realidade, já que a história é verídica, mas aqui contada segundo os recortes de alguns familiares e, principalmente, de Baskerville. Há inclusive uma opção, talvez uma necessidade, muito gritante na montagem de que a figura de Nelson esteja em cena. A imagem dele é projetada no telão e no meio da encenação há mais uma ruptura na estrutura dramática, quando o vídeo de uma reunião do diretor com os atores é projetado.

Seguindo ao pé da letra a cartilha do teatro contemporâneo, o discurso cênico é construído num território completamente híbrido, que traz performance, música, cinema, artes plásticas. Uma narrativa que é muito imagética e tocante – com resoluções simples, cenas de grande força e densidade são executadas. E isso faz com que o choque, a identificação, se dê não pela maneira como estão sendo mostradas em si, já que são recobertas por um cuidado artístico grande, mas pelo que realmente está sendo contado.

São imagens dispersas no palco, mas há a construção de um sentido muito claro; o que se quer, apesar do caos e da multiplicidade de signos e elementos, é contar uma história. Neste caminho, a qualidade dos atores é fundamental – o elenco mostra uma sintonia muito grande em cena, uma cumplicidade e se entrega com verdade ao jogo. Para contar uma história que se propaga, que não acaba quando as luzes apagam. Um pedido de desculpas que encontra eco e reverbera de diferentes maneiras não só no palco, mas na plateia.

Luis Antônio - Gabriela participa do circuito Palco Giratório nacional

Luis Antônio – Gabriela participa do circuito Palco Giratório nacional

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Imperdível Luis Antônio – Gabriela

Luis Antonio - Gabriela faz mais uma apresentação neste domingo, às 20h, no Teatro de Santa Isabel. Foto: Ivana Moura

Luis Antonio – Gabriela terá mais uma sessão neste domingo, às 20h, no Santa Isabel. Fotos: Ivana Moura

Aprendizado de estrela

Aprendizado de estrela

Reencontro com a irmã em Bilbao, na Espanha

Reencontro com a irmã em Bilbao, na Espanha

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Muito já se falou da coragem do diretor Nelson Baskerville de expor parte da história de sua família e de sua apaixonada e traumática relação com seu irmão mais velho Luis Antônio (que se transformou em Gabriela). Como um documentário cênico, a narrativa apresenta conflitos dessa família paulista, muitos deles provocados pela intolerância do pai de ter um filho com diferente orientação sexual. (Parênteses: Mas isso, lá nas décadas de 1960/1970 não era assim tão fácil de ser discutido. O menino Luis Antônio apanhava para ser curado de sua homossexualidade). Como um espetáculo ousado, esse mosaico não linear expõe performances simultâneas de tirar o fôlego, num vai e vem eletrizante.

Precisaria de mais de dois olhos para acompanhar cada detalhe que se passa no palco. Essa montagem é diferente de tudo que já vi em seu conjunto. E tem uma verdade cênica seguindo as pegadas de Bertold Brecht. Os elementos juntos na encenação, naquela disposição, provocam incômodo, muito incômodo, comovem e inquietam, perturbam, tiram do eixo.

A história de Baskerville é forte. E por si só já é grande. Mas essa grandeza aumenta quando pensamos nos estilhaços que chegam a cada espectador, com mundo particular, não tão diferente, cheio de covardia e preconceito, de regras estúpidas de normalidades e anormalidades.

O espetáculo Luis Antônio – Gabriela toca nas fragilidades humanas, no medo e no amor que queremos sempre e nem sempre sabemos como dar.

Um espetáculo poético e cruel

Um espetáculo poético e cruel e cheio de humor

Nada é linear. O resumo pode ser assim: Luis Antônio nasceu em Santos/SP, em 1953. Primogênito de uma família de seis filhos. Viúvo, o pai se casa novamente, com uma mulher que tem três garotas. No Brasil, a ditadura militar fazia barbaridades com as pessoas, desde mortes e desaparecimentos até torturas. A tortura também ocorre na casa e Luis Antônio é quem mais sofre com os espancamentos do pai. O irmão Bolinho foi abusado por Bolota na infância. O clima na casa é sempre tenso. Quando o personagem que dá nome à peça resolve ir embora, gera um quase inconfessável alívio por parte de todos.

Ganhou as ruas. Prostituiu-se. Aplicou silicone. Já travestido de Gabriela, segue para Bilbao, na Espanha. Faz show. Vira estrela. Vítima da Aids e dependente de várias drogas, Gabriela morre em 2006, aos 53 anos.

Espetáculo da Companhia Munguzá de Teatro

Espetáculo da Companhia Munguzá de Teatro

Foram muitos anos, 20 talvez mais, para esse acerto de contas afetivo de Bolinho com Bolota. O protagonista é defendido com maestria pelo ator Marcos Felipe, e o irmão da figura central, por Verônica Gentilin. Ela inclusive assina o texto da montagem da Cia. Mungunzá de Teatro com Baskerville. Além deles, estão em cena Lucas Beda, Sandra Modesto, Day Porto e Virgínia Iglesias formando um grande time. Esse espírito coletivo de grupo permite uma confiabilidade, uma solidariedade entre seus integrantes, que faz a diferença.

A entrega é tão grande que os atores aprenderam a tocar instrumentos para a executar a trilha de Gustavo Sarzi. O elenco hipnotiza a plateia com sua atuação e manipula efeitos simples e eficazes, muitos feitos às vistas do público, como acender e apagar de lâmpadas, a cobertura dessas luzes com panos vermelhos, a filmagem e a troca de roupas.

O cenário aparentemente é caótico, são muitos objetos que apontam para significados e ressignificações. Um quebra-cabeça intrigante. No telão, além do que ocorre no palco são projetados imagens da infância e documentos da família. E tem até uma reunião entre o grupo teatral em que só aparece o diretor.

As telas do artista plástico Thiago Hattner “caem” do teto, na cena em que Gabriela e a irmã  visitam o Museu Guggenheim de Bilbao.

 É uma das muitas pequenas surpresas do espetáculo.

A barra era pesada naqueles anos e Luis Antônio pagou um preço alto por exercer sua liberdade, com a solidão, a distância (talvez a palavra mais certa seja rejeição) da família.

Virgínia Iglesias, atriz e produtora da Cia Mungunzá de Teatro

Virgínia Iglesias, atriz e produtora da Cia Mungunzá de Teatro

O mundo anda meio virado. É uma contradição. A palavra diversidade é falada com orgulho, os temas já não são tabus (no discurso), mas assumir a homossexualidade e exigir direitos de cidadão são batalhas ainda grandes, com o avanço de intolerância e de fundamentalismos de todas as ordens.

Gabriela morre. Mas isso não é motivo para autopiedade. A ironia, o sarcasmo, a crueldade, o humor estão lá, quando o protagonista diz “No Céu é tudo alma” e convida os habitantes do paraíso a praticar sexo.

O elenco canta Your Song do Elton John no final fechando o ritual de nascimento, vida e morte. Um espetáculo do poético ao cruel, com as erupções de vulcões pela estrada da existência.

Ator Marcos Felipe faz Luis Antônio - Gabriela

Ator Marcos Felipe faz Luis Antônio – Gabriela

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