Arquivo da tag: Aristides Vargas

É urgente entender as Histórias de Nossa América

Maria Bonita é ficcionalizada pela dramaturga Dione Carlos e ganha leitura com direção de Malú Bazán

O diálogo histórico, social e político das Crônicas de Nuestra América,- escrita por Augusto Boal quando exilado pelo regime militar brasileiro nos anos 1970 – com os dias de hoje são disparadores que acendem reflexões inadiáveis dos atuais processos políticos novamente conturbados com anúncios e atos da repressão. O texto funciona como bússola para o projeto Histórias de nossas Américas, do Coletivo Labirinto, núcleo de pesquisa e criação cênica de São Paulo, que investiga a relação dos sujeitos com o seu panorama social através da dramaturgia latino-americana contemporânea.

Essas pequenas histórias da verve mordaz e bem-humorada de Boal foram escritas entre 1971 e 1976, no exílio forçado do dramaturgo em Buenos Aires, publicadas pelo jornal O PASQUIM, e lançadas em conjunto em 1977. Documento da época obscura das ditaduras, a escritura de Augusto Boal entra em diálogo com uma tendência do teatro contemporâneo de trazer a política do cotidiano para a arte. No programa Histórias de nossas Américas, do Labirinto, pulsa questões sobre as causas que desorientam pessoas e as conduzem a oprimir o outro e a si próprias.

Nesse conjunto de ações continuadas do Coletivo , o projeto Histórias de Nossa América inclui a montagem de dois espetáculos inéditos, a circulação de seu repertório por escolas públicas, um laboratório permanente de pesquisa aberto ao público, a criação e lançamento do site, a primeira edição da Revista impressa O Labirinto e um Ciclo de Leituras Encenadas de dramaturgia latino-americana. A programação começa nesta quarta-feira, 18/11, com a leitura interpretada de Bonita, texto de Dione Carlos, com direção de Malú Bazán, sobre a mulher mais famosa do Cangaço.

O Ciclo de Leituras destaca nove textos de nove países latino-americanos, escritos nos últimos 10 anos e que carregam relações entre os processos estéticos e políticos de cada região. São textos de autores do Uruguai, Peru, Argentina, Colômbia, Chile, Venezuela, Equador, Cuba e Brasil, que traçam um breve retrato da produção dramatúrgica contemporânea na América Latina.

São 9 encontros semanais, em três fases (novembro, janeiro e fevereiro). Cada leitura dramatizada conta com uma direção diferente, potencializando essas dramaturgias em diálogo com a perspectiva estética dos encenadores convidados. Ao final de cada leitura, o Coletivo promove uma reflexão com o público sobre os dispositivos e procedimentos utilizados, temáticas e abordagens.

Os encontros ocorrem às quartas-feiras, às 20h, por uma plataforma de vídeo-chamada. A entrada é gratuita. Para participar, basta preencher breve inscrição (https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScd_5haIRjAFwHDeMW1V43oVT6Pw2hZmD5M61A01Mz0-1jRdA/viewform), disponibilizada nas redes sociais do Coletivo Labirinto (@coletivo.labirinto) no início de cada semana de evento.

A realização desse Ciclo de Leituras Encenadas também envolve a tradução de oito textos teatrais de língua espanhola para a portuguesa, realizada pelos integrantes do Coletivo Labirinto, com revisão da encenadora e tradutora Malú Bazán. Essa compilação é a base para a formação de um acervo digital permanente, que será disponibilizado gratuitamente no site do Coletivo.

O projeto Histórias de Nossa América foi selecionado pela 35ª. Edição do Fomento ao Teatro Para a Cidade de São Paulo, que começa com o Ciclo De Leituras Encenadas e prevê para o primeiro semestre de 2021 a montagem do espetáculo Onde Vivem Os Bárbaros.

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 01 – NOVEMBRO DE 2020

18/11 – BONITA, de Dione Carlos – Brasil (2015); direção: Malú Bazán
A vida de Maria Bonita (1911-1938), sua relação com a sexualidade, a violência e o companheiro Lampião norteiam a trama e apresenta a participação das mulheres no Cangaço.

25/11 – EU QUIS GRITAR, de Tânia Cárdenas Paulsen – Colômbia (2017); direção: Érica Montanheiro
Nina e seu marido. A deterioração da relação do casal e a metamorfose de Nina, depois de  passar por zonas de extrema violência, ela vai se transformando em uma mulher que, pouco a pouco, devora seu esposo.

02/12 – A VIDA EXTRAORDINÁRIA, de Mariano Tenconi Blanco – Argentina (2018); direção: Lavínia Pannunzio
Aurora e Blanca são amigas de uma vida toda. Sem grandes conquistas, histórias trágicas ou aventuras inesquecíveis, Aurora é professora, tem um filho, um amante, um marido. E escreve poesia. Blanca é costureira, mora com a mãe, tem um namorado, depois outro, depois outro, sofre sempre. E também escreve poesia. 

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 02 – JANEIRO DE 2021

20/01 – IF – FESTEJAM A MENTIRA, de Gabriel Calderón – Uruguai (2018); direção: Carlos Canhameiro
Uma família perde o avô e terá dificuldades para lhe dar um enterro decente. Os sobreviventes, carregam a herança de erros e problemas não resolvidos, a acumulação histórica de tudo que é negativo e de tudo que é positivo.

27/01 – SOPA DE TARTARUGA, de Ana Melo – Venezuela (2017); direção: Rudifran Pompeu
Oito venezuelanos se encontram uma noite em um bistrô parisiense. Cada um deles personifica a Venezuela e a carrega como um casco de tartaruga. Mas algo que não esperavam acontece naquela noite. A obra é sobre a migração venezuelana e suas contradições, esperanças e frustrações.

03/02 – A REPÚBLICA ANÁLOGA, de Aristides Vargas – Equador (2010); direção: Dagoberto Feliz
Comédia que foca um grupo de intelectuais que, contrários à realidade que vivem em seu país, decidem formar uma nova república. Esse grande projeto será constantemente prejudicado por pequenos acidentes, entre cômicos e patéticos, que os farão enfrentar a realidade e as dificuldades para construir o país com o qual sempre sonharam.

CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – FASE 03 – FEVEREIRO DE 2021

24/02 – SÊMEN, de Yunior García Aguilera – Cuba (2012); direção: Joana Dória
Parte do decálogo As 10 Pragas, a trama de Sêmen gira ao redor de uma família disfuncional – uma mãe que já não está mais, um pai anacrônico e duas filhas que veem o assassinato e a prostituição como formas para tentar sair do país. 

03/03 – LAPEL DUVIDE, de Vanessa Vizcarra – Peru (2017); direção: Rubens Velloso
Toda vez que olha para o vazio, Lapel sente vontade de se lançar. É sua condição de nascência. Ele não se sente atraído pela morte, mas pela queda. Ele busca evitar todos os acidentes, mas está cada vez mais difícil. Lapel vive em uma cidade sob um regime político autoritário, com a população insatisfeita, entretanto é difícil rebelar-se.

10/03 – VIENEN POR MI, de Claudia Rodriguez – Chile (2018); direção: Janaína Leite
Com o objetivo é incentivar a biografia de travestis, transgêneros e transexuais, fazendo disso uma ferramenta política para quem ainda não disse nada, a peça é fruto de um devir da artista transgênere Claudia Rodriguez. Vienen Por Mi é um texto de poesia e denúncia, que traz um convite para perturbar a autoridade vigente de forma rude e coreográfica. É um ensaio inesgotável entre arqueologia, maquiagem e filosofia travesti, para propor metáforas que produzem pontes entre imagens e textos de xamãs, deusas, virgens, santas e loucas, num único corpo. Com: Fábia Mirassos.

FICHA TÉCNICA – CICLO DE LEITURAS ENCENADAS – HISTÓRIAS DE NOSSA AMÉRICA

ELENCO: Abel Xavier, Carol Vidotti, Emilene Gutierrez, Fábia Mirassos, Jhonny Salaberg, Marina Vieira, Ton Ribeiro e Wallyson Mota
DIRETORES CONVIDADOS: Malú Bazan, Érica Montanheiro, Lavínia Pannunzio, Carlos Canhameiro, Rudifran Pompeu, Dagoberto Feliz, Joana Dória, Rubens Velloso e Janaína Leite
AUTORES: Dione Carlos (Brasil), Tânia Cárdenas Paulsen (Colômbia), Mariano Tenconi Blanco (Argentina), Gabriel Calderón (Uruguai), Ana Melo (Venezuela), Aristides Vargas (Equador), Yunior García Aguilera (Cuba), Vanessa Vizcarra (Peru) e Claudia Rodriguez (Chile).
TRADUÇÃO: Coletivo Labirinto e Malú Bazán

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Um autêntico documento ficcional*

Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador. Foto: Jennifer Glass

Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Atores trabalham com diversas linguagens no espetáculo

Atores trabalham com diversas linguagens no espetáculo

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Ficha Técnica:
Autor: Arístides Vargas
Direção: Arístides Vargas, Maria Del Rosário Francés e Gerson Guerra
Elenco: Maria Del Rosario Francés e Arístides Vargas
Iluminação: Gerson Guerra

——

*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

Postado com as tags: , , , , , , , ,