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Petrolina dança
a partir dos espetáculos
Onde Ele Anda é Outro Céu
e Rio de Contas
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#4

André Vitor Brandão em Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto: Thierri Oliveira / Divulgação

Rio de Contas. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Os espetáculos de dança são mais porosos que os de teatro na leitura, na recepção. Fornecem indícios e “obrigam” a espectadora/o espectador a se empenharem mais na percepção; agitar o sensorial, ativar a cognição. As reflexões, ideias, emoções são transformadas em movimentos, gestos, deslocamentos no espaço. As coreografias se abrem a muitas possibilidades de fruição e a dramaturgia se enlaça subjetiva ao ser da plateia (corpo/mente/espírito e mais) provocada pela cena. Aciona coisas indescritíveis.

A dança contemporânea gosta de jogar com o enigmático. Lança projeções, recupera resíduos. Pode sugerir temática, mas com tantas entradas (e saídas) prossegue desafiante.

Onde Ele Anda É Outro Céu, primeiro solo de André Vitor Brandão desliza no terreno da crise existencial do ser humano, um painel bastante amplo. Outra pista do espetáculo que estreou em 2016, em Petrolina, no Sertão de Pernambuco: A peça coreográfica tem por inspiração o conto O Homem Cadente, do livro Fio das Miçangas, do escritor moçambicano Mia Couto.

Nesse conto, a personagem de Mia Couto – Zuzé Neto, José Antunes Marques Neto, “em artes de aero-anjo” –  contraria as leis físicas. O homem Cadente trabalha com fronteiras entre sonho e realidade. O narrador-personagem observa o homem que cai, “pairando como águia real”, numa recriação linguística, traçando metáforas do cotidiano.

O espetáculo suscita muitas perguntas sobre os estados das gentes na contemporaneidade. Por que as pessoas caem? Aos montes? Em muitos aspectos? E nem percebemos? Isso na fricção de limites entre real e ficcional.

O solo complexifica mais quando chama o artista surrealista belga René Magritte (1898-1967) para a dança. A peça coreográfica traz referências das obras Golconda (aquela da chuva de estranhos homens, que caem do céu) O Filho do Homem (um autorretrato, com o indivíduo de sobretudo e chapéu coco, com o rosto em grande parte escondido por uma maçã verde suspensa no ar). Além da icônica A Traição das Imagens, que carrega a frase “Ceci n’est pas une pipe” (“Isso não é um cachimbo”), para lembrar que a pintura de um objeto é uma pintura e não o objeto real em si. Isso já é de uma grandeza…

E estão na dança do André. Nas imagens, nos símbolos, nos signos. Na quebra do jogo de representação do real, ele explode a potência do corpo; um corpo insubordinado – lembrando dos disciplinamentos citados por Foucault.

Fico pensando se fosse usada na montagem mais tecnologia de ponta que existe para o teatro, como outras soluções de flutuação ainda mais ilusionista, e utilização de técnicas vorazes de luz e fumaça. Como o espetáculo é de 2016 e muita tecnologia avançou, quem sabe?!!! Sei, sei… que esses expedientes custam caro e para o teatro não chega verba com facilidade, mas foi uma ideia; quem sabe?! Foi exercício de imaginação na esteira do que o próprio espetáculo diz, de que tudo é possível.

Projeto A Escola vai ao Sesc, durante apresentação de espetáculos na Aldeia do Velho Chico

Outras vozes se juntaram a André Brandão na composição desse solo. Para poetizar no corpo do bailarino essa figura que sonha e que segue outra lógica entraram na ciranda Jailson Lima na direção artística; Renata Camargo na direção de movimento; Renata Pimentel na dramaturgia; Orlando Dantas na criação do figurino; Fernando Pereira no designer de luz; Eugênio Cruz na trilha sonora original e Eugênio Junior na assessoria sobre técnicas de rapel.

A produção é da Qualquer um dos 2 Companhia de Dança, que e recebeu o incentivo do Governo do Estado de Pernambuco, através do edital Funcultura 2013/2014, para essa  montagem.

Assisti à peça numa sessão do projeto A Escola vai ao Sesc, uma das ações da Aldeia do Velho Chico. Mais uma constatação, dentre tantas outras, de como a arte é essencial e como faz uma diferença profunda na vida dos futuros cidadãos. Mais sensibilidade na lida com o mundo (como precisamos disso nesses tempos de intolerância de toda ordem), formação de sujeitos mais críticos.

Onde Ele Anda é Outro Céu. Foto Thierri Oliveira Divulgação

Quando questiona o real, Onde Ele Anda É Outro Céu propõe experiências diferentes, promove surpresa e impacto nos movimentos, gestos, sugestões, desenhos coreográficos. Nos conduz por caminhos do irreal, desperta emoção ao aproximar do fantástico, ao jogar com os paradoxos visuais, ao empurrar o controle da razão humana para fora do teatro em alguns momentos da peça.

O ator/bailarino desenha no palco um espaço-tempo em que tudo é possível. E vai alargando o campo desse encontro com a plateia. Solta indícios das sementes da criação artística. Nesse esquema onírico, a personagem segue outra lógica.

Brandão e seus artistas-cúmplices exploram o espaço da ficção, onde não existe um compromisso estreito com a realidade. Outras inspirações para o espetáculo chegaram com os colaboradores para serem plasmadas no corpo do bailarino: da trupe de comédia surreal britânica Monty Python, do genial Bach (amo!!!!), de Stela do Patrocínio (poeta psiquiatrizada), de Estamira – poesia encarnada, que protagonizou o documentário, que leva seu nome e morou por um tempo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro – entre outros.

A obra artística aposta com força na capacidade transformadora do sonho. E então compõe imagens sugeridas pelas obras inspiradoras, de pássaros, dos movimentos dos bichos e de e invenções criativas conjugadas, da profusão de referências dos artistas envolvidos no processo. A expressão de simplicidade e lirismo, trabalhadas em muitas camadas de estudos alusões e treinamentos.

Enquanto intérprete-criador, André fricciona a natureza dos sonhos numa investigação que expõe a dança como linguagem que provoca reflexões, traça leituras do mundo, investe com força na sensibilidade e subjetividade.

Salve o espaço utópico, alimento das transgressões humanas. A poética ganhou outras estratégias de voos, de travessias, avisando que mesmo com quedas há ludicidade e encantamento. Como sugere o conto do escritor africano, deixemos Zuzé, o homem cadente, voar.

Rio de Contas

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

O diretor Jailson Lima entende a dança como expressão e práxis emancipadora. Não por acaso, a dança é de todas as artes a que mais avança em Petrolina, essa cidade pernambucana orgulhosa de si, encravada na região semiárida nordestina. Isso norteia para uma cultura que assume onde estão fincados os pés e no esperançar freiriano; da autonomia dos sujeitos e ao mesmo tempo no caráter de comunhão do coletivo. São coisas fáceis de dizer e difíceis de executar. Jailson encara.

Envolvido na Cia de Dança do Sesc Petrolina desde sua criação, em 1995, ele se juntou aos seus escolhidos por afinidade para se lançarem ao exercício conjunto da constante libertação. A montagem de Rio de Contas é uma projeção disso tudo.

Inspirado num conto também do escritor moçambicano Mia Couto, chamado Nas Águas do Tempo, do livro Estórias abensonhadas, o espetáculo Rio de Contas brotou em 2014 e é atravessado pela metáfora “a água e o tempo são irmãos gêmeos nascidos do mesmo ventre”.

Com 18 intérpretes (com margem de 2 para mais ou para menos), trilha sonora assinada por Sônia Guimarães, cenários do artista visual Antonio Carlos Coelho de Assis “Coelhão”, Rio de Contas articula uma teia dançante ancestral a partir do São Francisco, que alimenta corpos e imaginários.

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

Rio de Contas. Foto: Fernando Pereira / Divulgação

A peça coreográfica vibra na sensibilidade delicada. A trilha sonora de Soninha Guimarães traça a grande dramaturgia do espetáculo acalentando, inspirando, promovendo movimentos, instigando, incentivando, lembrando que a vida tem dessas ondas e nós, projetando o futuro sem esquecer daqueles que vieram antes, que estão impregnados no presente.

A criação coreográfica, assinada por Jailson, valoriza os corpos dos dançantes envolvidos, potencializando a estrutura física de cada artista e respeitando suas limitações, ampliando suas capacidades de movimento, de gestual, erguendo uma corporeidade coletiva forte.

É arte contemporânea inspirada na tradição da oralidade, nos passos ancestrais das danças desse território – como o Samba de Veio. Estão impregnados nesses corpos resistentes, de predominância negra e indígena o traçado histórico das pontes erguidas, da dor de viver, do combate à violência, sem perder a alegria.

Os artistas dessa terra questionam na própria carne a linguagem da dança, do para quem dançar e como alargar essa troca.

Na busca do protagonismo da própria história, os artistas da peça Rio de Contas trabalham para derreter o colonialismo dentro das estruturas.

No espetáculo a vida é afinada pelo São Francisco que trafega, escoa. Os corpos cumprem suas funções vitais, entram em conflito, convivem, se desencontram. Entre afetos e atritos, as águas correm. Os tons dessa coreografia são suaves, há liberdade de movimentos que se expandem para proferir a rima da dança.

As práticas artísticas e formativas do grupo junto aos intérpretes/ criadores permitem que os integrantes e seu público ampliem as possibilidades de atuar no mundo. Isso é desempenho político, cidadão, de intervenção estética dentro da ética. É micropolítica trançando revoluções.

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Força desde a nascente
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#2

André Vitor Brandão. Foto: André Amorim Divulgação

Perguntei a André Vitor Brandão, supervisor de Cultura do Sesc Petrolina e coordenador do Festival, se a Aldeia do Velho Chico era feminino ou ile, André respondeu que a referência no nascedouro do festival são as mulheres e que Galiana Brasil fez a ponte com o Palco Giratório. “Então a inclinação é para o lugar do ile. A potência está nas diferenças estéticas, nesse conceito de diferenças”. Ele conta que em 2020 a proposta ao falar da transição foi o de pensar futuros nas várias linguagens.

2021 veio com a força de reencantar a vida, olhar para o mundo pós-transformado, com outras práticas de sociabilidade e afetos. “Neste ano, a Aldeia é uma retomada dos espaços, retomada das ruas, da economia”, pontua.

Brandão, que também é dançarino e coreógrafo, entende que o Rio São Francisco é um elemento fundamental tanto na vida social da cidade como na arte e na cultura. “A conexão é com o Rio. Como o Rio interfere na realidade simbólica, no modo de pensar. Na construção desse corpo ribeirinho. O Rio como elemento integrador da cidade. Tem a ver com as metáforas, com os fluxos”. E exemplifica com a rota flutuante das artes visuais, um espaço de produção da região, barco dispositivo.

Crianças durante apresentação do Samba de Veio da Ilha do Massangano. Foto Fernando Pereira

Jailson Lima, na minha chegada, dá o tom de que o festival busca valorizar a cultura de Petrolina, principalmente. Salienta, em outro momento, que não tem interesse de levar “qualquer” artista / pessoa /profissional para o seu festival. Aqueles que só pensem em usufruir dos banhos de rio e demais riquezas da região sem a intenção de trocar com a cidade estão dispensados. Aviso dado.

A realização da Aldeia assegura a entrada de 200 a 300 mil reais em Petrolina. Para além do dinheiro, a injeção de vida, a pulsação de Eros para reconectar com a alegria; isso não tem preço, como diz a sabedoria popular. O espírito de celebração impera nesses dias, é tempo de tomar fôlego.

André e Jailson, dois artistas e pensadores da dança de Petrolina, salientam que a cena da dança na cidade ribeirinha, transborda Pernambuco. Os dois têm razão para o orgulho. Além do trabalho criativo com a arte, a unidade do Sesc que eles tocam investe nas potencialidades no campo da educação e do pensamento crítico.

O espaço de apoio na formação da cidadania é desenvolvido entre crianças e adolescentes e ganham lugar de destaque durante a realização do festival. Um exemplo disso são os debates após os espetáculos, com alunos de escolas da região, quando é possível perceber a importância de ações como essas.

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Fluxos do Rio São Francisco
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#1

Junina Renascer do Sertão. Foto André Amorim / Divulgação

Marujada. Foto André Amorim / Divulgação

 Jailson Lima,  Thom Galiano, Galiana Brasil, André Vitor Brandão e Rita Marize na abertura da Aldeia do Velho Chico. Foto André Amorim / Divulgação

Reisado da Mata de São José. Foto André Amorim / Divulgação

Samba de Véio da Ilha do Massangano. Foto André Amorim / Divulgação

A Aldeia do Velho Chico instala /propõe / produz experiências para ficar viva na memória. Pelo espírito de celebração, por tudo que transborda do Rio São Francisco transformada em arte expandida, pela beleza captada de relance nas coisas simples, pelos momentos revigorantes, inspiradores e a convivência com os humanos com tudo que cabe nessa palavra nas múltiplas camadas. É aprendizado concentrado / na veia.

Realizado pelo Sesc de Petrolina, esse Festival de Artes do Vale do São Francisco, a Aldeia do Velho Chico alcançou a maioridade neste 2022. Em sua 18ª edição, essa jovem chegou sedenta de encontros, de confluência qualificada. A prática curatorial acionou a ideia de “retomada”. Depois da gravidade da pandemia e dos estragos do pandemônio, a vida em potência urge como ação, atuação, ato político e poético.

Assim se fez. Assim se vai fazendo.

Ser o que se é amplia o ato político e poético. A organização do festival articula o sentido de retomada de territórios e das identidades, que são coisas muito complexas, mas que podem estar refletidas até em gestos cotidianos. Projetado na programação.

A inclusão de artistas da cidade na equipe de produção, com a contratação de bailarinos e atores da cena petrolinense e de seus arredores, assegura uma renda para o pessoal. É prática constante dos gestores da unidade Sesc Petrolina, como braço de apoio aos artistas. Os exercícios utópicos estão antenados com as pautas afirmativas e levam para a roda questões dos pretos, das mulheres, das trans, contra a violência prioritária contra esses grupos.

A ação cultural ocorreu de 19 a 28 de agosto, em Petrolina, um município do estado de Pernambuco, distante da capital, Recife, cerca de 750 km, o que equivale a cerca de 12 horas de carro. A viagem de avião São Paulo-Petrolina dura 2h40, duração de voo menor do que para o Recife.

A cidade

Petrolina abriga uma população estimada em 350 mil habitantes. A cidade faz divisa com o município de Juazeiro (BA) e ambas são banhadas pelo Rio São Francisco. “Eu gosto de Juazeiro e adoro Petrolina”, diz o refrão da música Petrolina-Juazeiro, de autoria de Jorge de Altinho, composta há mais de 40 anos e que até hoje embala os corações dos seus habitantes.

Essa foi a primeira vez que visitei Petrolina, apesar de já ter pisado em várias outras cidades do Sertão Pernambucano.

Sempre me disseram que Petrolina é uma cidade rica. São bem faladas suas vinícolas irrigadas pelas águas do São Francisco e indústrias de produção de vinho. Em um dos  dias do festival fui em comitiva percorrer uma vinícola, uma portuguesa. Quando um técnico da empesa disse que seus patrões portugueses estavam no Brasil há 18 anos, alguém de rápido raciocínio perguntou: “Só?!!!” Ai ai ai ai ai ai humor pernambucano. Certeiro, cortante.

O clima semiárido quente petrolinense cedeu espaço para os ventos e temperaturas mais frias nesses dias de agosto do festival, coisa que até os nativos estranharam.  O mundo está estranho e os efeitos do Antropoceno chegam aos quatro cantos do planeta.

A cidade orgulha-se das esculturas de Ana das Carrancas (1923 – 2008) e de outros rebentos artesãos. São comentadas suas frutas de exportação. São conhecidos os políticos antiquados (provincianos), de perfil oligárquico, com a família Coelho dando as cartas há mais de sete décadas.  

Na contracorrente da práxis do privilégio para poucos, resvala uma atmosfera libertária que contagia as corpas de artistas, gestores, fazedores e cidadãos da cultura ribeirinhes.  

Muitos flashes no decorrer dessas jornadas reforçam esse entendimento de que a Aldeia trabalha esse território em sintonia com as lutas e os avanços das chamadas pautas afirmativas, ou seja a busca por respeito, dignidade e protagonismo das pessoas que sempre estiveram alijadas desse processo: população negra, trans, LGBTQIA+, pobres e outros.

Exemplos felizes desses reconhecimentos foram vistos no desfile de abertura do festival, entre muitas cenas, a de um jovem de 16 anos que fazia malabarismos como a baliza desafiando os costumes obsoletos. Ou as funções de lideranças ocupadas por pessoas que geram representatividade, transformando o lugar que poderia ser de medo num espaço de vida.

Isso não é pouco. As ações para valorizar as manifestações tradicionais. Ou a valorização dos artistas da região, que permite criar uma sustentação de carreiras artísticas. Movimenta as bases do contexto social.

Rapaz da baliza, no desfile da Banda M Poeta C Drummond – Foto Andre Amorim / Divulgação

Ciel no Gogo. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Ciel Foto Fernando Pereira / Divulgação

Fazendo um arco desse espírito de liberdade do início com o fechamento da programação destaco a atuação compositor, ator, bailarino e cantor de timbre raro Ciel dos Santos. Contratenor, ele solta a voz na tessitura feminina e seu canto vai do contralto ao mezzo soprano, o que alguns chamam de uma voz andrógina.

Ciel mistura um som nordestino com ritmos latinos, coco, afoxé, música de matriz africana, umas pitadas de jazz, outras sonoridades e com uma saia minúscula, músculos à mostra, batom e purpurina “joga fora no lixo” qualquer espécie de caretice. E performa uma liberdade que atravessa suas vivências rurais e contagia em grau avançado xs espectadores que se afinam com suas experiências. Ele tem atitude, representatividade.  

São contraditórios os cenários das cidades brasileiras. A partir dos paradoxos, percebo que a Aldeia do Velho Chico funciona como microcosmo experimental onde a cultura é regada como prioridade tanto na perspectiva do desenvolvimento econômico quanto da valorização humana.

Aldeia do Velho Chico

Produzida pelo Sesc de Petrolina, a Aldeia do Velho Chico foi concebida em 2005 pela então professora de artes visuais do Sesc Edneide Torres, pelo atual diretor do Sesc Petrolina Jailson Lima, pela gestora Galiana Brasil (agora no Itaú Cultural, mas à época no Sesc PE) e pelo artista Thom Galiano. Inspirado no fluxo do rio e suas reverberações, navegam no festival múltiplas linguagens. Seus criadores mantêm forte ligação com o festival e algum grau de ingerência na programação.

Com perspectiva multicultural, a Aldeia é um desdobramento do Palco Giratório, um projeto de circulação das artes cênicas, que foi reduzido nos últimos anos, mas tem muita importância para a área.

Na rota do festival está valorização da cultura de Petrolina, principalmente. E a ativação do senso de pertencimento na ocupação de territórios. Na execução isso se reflete num programa que considere os trabalhadores da cultura da região e revigore os intercâmbios entre criadores que atuam nos interiores do Nordeste. Sentir-se inserido e aceito faz parte do processo.

Cortejo Abre Alas Pro Velho Chico. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Maracatu Beira Rio. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Banda Marcial Osa Santana. Foto Fernando Pereira Divulgação

Junina Renascer do Sertão. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Marujada. Foto André Amorim / Divulgação

Galiana Brasil, Jailson Lima, Ana Dias, Oswaldo e Rudimar no Cortejo Abre Alas Pro Velho Chico. Foto Fernando Pereira / Divulgação

Desfile e Apresentações Palco Porta do Rio

Desde o primeiro dia da Aldeia do Velho Chico, um fim de tarde da sexta-feira 19 de agosto de 2022, a pisada seguia coesa à reconquista de identidades negro-indígenas. Sejam nas coreografias das quadrilhas juninas Buscapé, de Juazeiro e Renascer do Sertão, de Petrolina, que fizeram o esquente em frente ao Sesc Petrolina.

Ou nas apresentações no palco Porta do Rio do Reisado da Mata de São José (Orocó/PE), Reisado do Lambedor (Lagoa Grande/PE), Os Kongos (Sento Sé/BA), Marujada (Curaçá/BA) e Samba de Véio da Ilha do Massangano (Petrolina/PE).

Em cada passo, em cada gesto, nos cantos, palmas, partituras coreográficas, jogos de corpo eram reveladas constelação de lutas, orações e celebrações; a ancestralidade atravessada e manifesta, suas memórias de resistência, suas rotas de vivências negras e indígenas no Sertão do São Francisco.

Reisado do Lambedor na apresentação de abertura, no Palco Porta do Rio. Foto Fernando Pereira / Divulgação

O Reisado do Lambedor, da Comunidade Quilombola do Lambedor, localizada na zona rural de Lagoa Grande, por exemplo, tem quase 300 anos de tradição. Seus integrantes contam que Isaac Borges, um negro escravizado que fugiu das terras em que era explorado, no interior baiano, foi um dos fundadores da comunidade. O filho de Isaac, o líder quilombola José Borges formou a brincadeira do Reisado do Lambedor. Tornou-se uma das manifestações culturais mais tradicionais do Vale do São Francisco.  

No dia seguinte conhecemos um pouco mais da Comunidade Quilombola do Lambedor. Lá na comunidade, entre mugidos de bezerros, bodejar de bodes, os integrantes do Lambedor expõem suas lutas e desafios. Da sobrevivência do grupo à valorização do brinquedo para as novas gerações. Generosamente compartilham seus cânticos e danças, e oferecem uma mesa farta de alimentos que produzem no local.

Da abertura ao fechamento, muitas águas correram por baixo da ponte. O início estava carregado de uma ansiedade indisfarçável, a volta do evento à presencialidade. O Cortejo Abre-Alas para o Velho Chico com Bonecos Gigantes Zé Pereira e Vitalina, de Belém de São Francisco, e os petrolinenses Frevuca, Maracatu Beira Rio e Banda Marcial Osa Santana tomaram as ruas.

Esse ocupar as ruas tem também um sentido de resguardar corpas em festas pela vida, pela alegria e pela esperança.

Antes de chegar à beira do rio para as saudações, inalamos o cheiro do acarajé, atravessamos as bandeiras tremulando dos candidatos políticos locais a cargos elegíveis e flagrei olhares desatentos de uns, curiosos de outros e desejosos daqueles ainda “presos” às rotinas de trabalho.

O gerente do Sesc Petrolina, Jailson Lima enfatiza que o cortejo anuncia, vibrando, ao comércio que o Sesc produz cultura. “Chegue junto. Estamos há 18 anos celebrando a produção da cidade, independente do gosto”, assinala. “A tradição tem uma influência muito grande na produção cênica”, diz ele para mencionar ou assinalar que “aposta na produção daqui que não é visibilizada. Buscamos trazer o Rio em diálogo com a cidade. Olhar o contexto”, indica.

 

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Funcultura ignora pandemia soterrado em burocracias*

Inscrição para edital foi feita presencialmente na capital ou por Sedex. Foto: PH Reinaux Secult PE

Artista fez protesto com cartazes. Nas redes sociais, muitos se manifestaram

Visualize o cenário: Pernambuco, 2020, pandemia da Covid-19, crise em muitos âmbitos, inclusive na cultura. A continuidade de um edital público para o setor – mesmo que o resultado seja prometido apenas para o mês de dezembro -, além de obrigação do poder público, é bem-vinda. Mas, para concorrer ao Funcultura Geral 2019-2020, Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, produtores culturais precisaram imprimir uma via de seus projetos, encaderná-la, rubricar todas as páginas, salvar duas vias em pen drive ou DVD e enviar por Sedex para a Fundarpe (ou, no caso de produtores da Região Metropolitana do Recife, se deslocar até a Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista).

“Percebemos a dificuldade dos produtores no estado inteiro, mas no interior isso se agrava pelas distâncias. Por aqui, fizemos a conta: um produtor gasta, em média, R$ 100 para conseguir enviar um só projeto. Para algumas pessoas, isso é muito dispendioso. O que ouvimos na reunião da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco) é que falta empatia por parte da Fundarpe, principalmente neste momento de pandemia”, entende Caroline Arcoverde, atriz e produtora do grupo Teatro de Retalhos, de Arcoverde, cidade do Sertão pernambucano.

“Falta empatia por parte da Fundarpe, principalmente neste momento de pandemia”
Caroline Arcoverde, atriz e produtora do Teatro de Retalhos e integrante da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco)

“Este ano, em especial, o Funcultura foi extremamente burocrático. Gastamos algo em torno de R$ 100, R$ 120 para cada projeto, sendo que estamos numa pandemia. Os artistas não têm esse dinheiro para investir. Já vi isso aqui na realidade da cidade – muitos dos produtores não enviaram projeto este ano porque não tiveram condições, não tinham dinheiro para fazer um projeto”, reforça André Vitor Brandão, produtor e bailarino de Petrolina, também no Sertão.

No estado que se orgulha de ter um dos maiores parques tecnológicos do país, os artistas e produtores de cultura precisam lidar com um formulário burocrático e as implicações financeiras da inscrição no edital, quando tudo poderia ser feito pela internet, como um cadastro. “Este é um momento em que todo mundo está sem perspectivas e a gente está precisando do que é direito nosso; esse edital é uma conquista, dinheiro público que precisa ser empregado na cultura, especialmente agora, com tanta gente desempregada, tantos espaços em vias de fechar”, pontua Daniela Travassos, atriz e produtora da Companhia Fiandeiros de Teatro, do Recife.

“Esse edital é uma conquista, dinheiro público que precisa ser empregado na cultura, especialmente agora, com tanta gente desempregada, tantos espaços em vias de fechar”
Daniela Travassos, atriz e produtora da Companhia Fiandeiros de Teatro

O edital publicado no fim de 2019, antes da pandemia, não foi alterado. Mas, diante da situação de crise e de isolamento social, as imposições burocráticas se tornaram insustentáveis e geraram muitos posts de protestos nas redes sociais, de artistas de várias linguagens.

“Há uns dois anos, tínhamos decidido dar um tempo na concorrência ao Funcultura, porque tem sido muito sofrido lidar com tamanhas exigências e limitar as ideias a tantas questões que não tem nada a ver com mérito artístico. E isso se agrava agora. Então, por exemplo, tentaram diminuir o papel, mas aumentaram outras exigências, como o pen drive ou DVD e o tamanho do arquivo. Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, meu projeto cada currículo do meu projeto é limitado a ter 2MB e, se ultrapassar isso, simplesmente o projeto é eliminado”, explica a produtora da Fiandeiros.

Para quem nunca precisou preencher um formulário do Funcultura, as reclamações dos artistas podem parecer até prosaicas. Mas a burocracia do edital é uma questão real, que se arrasta há anos, sem avanços, ignorando a realidade para além dos muros da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco). “A gente perde um tempo absurdo formatando formulário, tipo de letra, parágrafo, alinhamento, inserção de linhas, tamanho de arquivo. Mas, para mim, o mais grave neste quesito é querer que a gente faça uma planilha de orçamento em Word. Deveria ser, no mínimo, em Excel. Isso facilitaria os cálculos, a incidência dos impostos. Se a gente modifica o valor de uma pequena rubrica, isso interfere no valor total. Então, você tem que ficar o tempo inteiro monitorando esses valores, porque o Word não é uma ferramenta de cálculo”, explica André Filho, diretor e produtor da Fiandeiros.

Leidson Ferraz, jornalista, ator e pesquisador de teatro, fez um protesto presencial, no momento da entrega do formulário na Fundarpe, com cartazes que carregavam dizeres como “Evolua, Funcultura! Cadê a prometida informatização?” ou “BuRRocracia excessiva! Exclusão de muitos”. “Um edital cultural tem que ser o mais simples, o mais fácil possível, para abarcar democraticamente todo mundo. Como imaginar artistas populares, do circo, de tantas manifestações, sendo obrigados a lidar com essa burocracia toda? Isso impõe que as pessoas tenham que contratar produtores que vão ganhar uma parcela do valor, já tão defasado. São imposições injustificáveis, que só fazem excluir uma grande maioria. O que deveria estar sendo julgado era o valor artístico de cada proposta”, avalia Ferraz.

“Um edital cultural tem que ser o mais simples, o mais fácil possível, para abarcar democraticamente todo mundo”
Leidson Ferraz, jornalista, ator e pesquisador de teatro

Os valores do Funcultura também são questionados pelo artista. “O primeiro projeto que eu aprovei, em 2004, na área de publicações em teatro, tinha uma rubrica de R$ 50 mil. Hoje, o valor disponibilizado é R$ 40 mil. Desisti de colocar um projeto em livro, porque com esse valor é impossível fazer uma publicação com a qualidade que eu sempre fiz. O orçamento mais barato que encontrei, com uma gráfica boa, foi R$ 31 mil. Como vou pagar os outros profissionais envolvidos na produção de um livro?”, questiona.

Novo mundo caótico, velho formulário de papel

Como ignorar a realidade de pandemia que se instalou no país a partir de março? Em meio a tudo que tem acontecido no Brasil, os produtores que propuseram projetos de criação, circulação, festivais, mostras, precisaram pedir carta de anuência aos teatros e espaços culturais – ainda que eles estivessem (estejam) fechados. Como pensar a circulação internacional de um espetáculo quando muitos teatros no mundo não estão funcionando e fronteiras de vários países estão fechadas para os brasileiros?

As inscrições para o Funcultura Geral estavam previstas para acontecer de 14 a 30 de abril. Por conta da Covid-19, o prazo foi prorrogado – ficou valendo o período de 20 de julho a 3 de agosto. O edital, no entanto, não abarcou mudanças, mesmo que artistas de linguagens diversas, através das suas comissões setoriais (que formam o Conselho Estadual de Política Cultural) tenham proposto sugestões.

Paula de Renor diz que era preciso vontade política para mudar edital

No dia 8 de junho, a Comissão Setorial de Teatro reuniu cerca de 70 artistas para uma reunião virtual que durou quase quatro horas. A proposta é que o edital focasse em projetos menores. As verbas destinadas à itinerância nacional e internacional de espetáculos seriam remanejadas para outras ações. A rubrica de manutenção de espetáculos, por exemplo, subiria de R$ 60 para R$ 100 mil e a de programação de espaços de R$ 90 para R$ 180 mil, sendo que, nessa última, seriam contemplados até quatro projetos no valor máximo de R$ 45 mil.

O edital não teria exigências como carta de intenção ou anuência para atividades em equipamentos públicos e atividades formativas poderiam ser propostas em formato virtual. “A pandemia aconteceu, não podemos ter um olhar de normalidade para as coisas. Não dá para prever ações como se nada tivesse acontecido”, opina Paula de Renor, atriz, produtora e representante de Teatro e Ópera na Conselho Estadual de Política Cultural.

“A pandemia aconteceu, não podemos ter um olhar de normalidade para as coisas. Não dá para prever ações como se nada tivesse acontecido”,
Paula de Renor, atriz, produtora e representante de Teatro e Ópera na Conselho Estadual de Cultura

A burocracia, no entanto, impediu que o edital fosse alterado. “Para que isso acontecesse, era preciso vontade política, agilidade jurídica, para que encontrássemos uma adequação. Porque o problema é que o governador precisaria cancelar esse editar e fazer um decreto normatizando o outro. E não tínhamos certeza dessa agilidade, não houve empenho para encontrar uma solução jurídica”, explica Paula de Renor.

Na prática, o que pode acontecer é que as execuções dos projetos tenham que ser postergadas, como uma itinerância de espetáculo, por exemplo. O edital já prevê esse adiamento. “O que a gente queria era que esse dinheiro entrasse logo na cadeia da economia criativa, que ajudasse o maior número de artistas e impulsionasse a produção no estado”, finaliza a conselheira.

Promessa de informatização

De acordo com Aline Oliveira, superintendente do Funcultura, o próximo edital, que deve ser lançado em dezembro, deve contar com inscrições pela internet. “Conforme já foi anunciado no Conselho Estadual de Política Cultural, a gestão assumiu um compromisso de implementar as inscrições virtuais até o exercício de 2021 e fará todo o esforço possível para antecipar as inscrições virtuais já para os novos editais do Funcultura”, explica.

A superintendente admite que “estamos atrasados nesse processo”. “Mesmo com um sistema pronto, seria necessária uma estrutura de equipe e de tecnologias que infelizmente o Funcultura não teria condições de manter no momento. Desde 2019, a atual gestão da Fundarpe e do Funcultura têm estudado as ferramentas disponíveis no mercado para resolução do problema. Antes de decretar-se o estado de emergência em Pernambuco, em função da Pandemia da Covid-19, estavam sendo realizadas tratativas para contratação de serviços com o objetivo de modernizar o Funcultura. Entretanto, os decretos de contingenciamento e a próprio isolamento social dificultaram o avanço dos debates”, complementa.

ERRATA*
Matéria atualizada no dia 31 de agosto, às 11h24. Na fala de Daniela Travassos, onde constava “Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, meu projeto é limitado a ter 2MB (…)”, a sentença correta é “Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, cada currículo do meu projeto é limitado a ter 2MB (…)”. Pelo erro, o Satisfeita, Yolanda? pede desculpas aos leitores.

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Dança questiona padrões de beleza

cena do espetáculo Que corpo é esse? Foto:  Rubens Henrique

Cena do espetáculo Que corpo é esse? Foto: Rubens Henrique

O corpo é também capital. E na sociedade de imagens, uma poderosa moeda de troca. Os apelos estão em toda parte. Na mídia, nas vitrines, no mundo virtual, nas conversas. Os olhares são de cobrança. “É preciso ser belo”! E para isso ter um corpo magro, esbelto e sarado. Isso parece uma ditadura? O Coletivo Incomum de Dança avaliou que sim. E preferiu uma posição de discordância, a seu modo.

O grupo de artistas do Sertão pernambucano questiona os padrões de beleza e ergueu como resistência o espetáculo de dança Que Corpo É Esse?. O solo da bailarina Carol Andrade fará sua primeira temporada, em Petrolina-PE, nos dias 30 e 31 de maio, às 20h.

O psicanalista Jurandir Freire Costa reflete em Violência e Psicanálise que “O corpo tornou-se um dos mais ‘belos objetos’ de consumo, no Capitalismo atual”. Então é preciso ter criticidade em meio a tanto bombardeio. Uma pergunta martelava a cabeça da bailarina: “existe um corpo ideal para a dança?”. E ela começou a pesquisar sobre o assunto.

cena de que corpo é esse?

É o primeiro solo da bailarina Carol Andrade

Além de estar em cena, Carol Andrade também é responsável pela criação coreográfica e direção do espetáculo. A iluminação é assinada por Carlos Tiago e o cenário por André Vitor Brandão. O figurino ficou a cargo de Diego Ravelli e a concepção de trilha sonora é de Ítalo Miranda. Paulo Junior, que criou as máscaras e Gracy Marcus, na função de preparadora corporal completam a equipe.

Espetáculo de dança Que Corpo É Esse?
Quando: 30 e 31 de Maio de 2015, às 20h.
Onde: Teatro Dona Amélia, no Sesc Petrolina. Rua Pacífico da Luz, 618 – Centro, Petrolina-PE.
Quanto: R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia-entrada)

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