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Sobre desejos, descolonização e mal-estar
Acompanhamento de processo de Práticas Desejantes

Práticas Desejantes utiliza dispositivo do jogo de tabuleiro. Foto: Guto Muniz

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A abertura de processo da pesquisa Práticas Desejantes me instigou a pesquisar sobre a mexicana sor Juana Inés de la Cruz (1648 ou 1651-1695), uma freira poeta, dramaturga, considerada a primeira escritora de língua espanhola na América. Uma matéria da revista Época diz: “Sor Juana manejou como ninguém os maneirismos do barroco – a retórica elevada, o virtuosismo linguístico, o gosto pela contradição e pelo exagero. Compôs poemas, comédias teatrais, defendeu o direito da mulher à educação e se envolveu num acirrado debate teológico com o padre Antônio Vieira, expoente do barroco luso-brasileiro”. Octavio Paz escreveu sobre a mexicana no ensaio Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, uma obra de fôlego misturando biografia, história, antropologia e crítica literária, que entrou na lista de próximas leituras depois da minha breve pesquisa.

Sor Juana é uma das mulheres que compõem o jogo “Who´s She?”, dispositivo utilizado no processo de Práticas Desejantes para desencadear uma série de possibilidades de sentidos. Frestas de luz que são abertas a cada nova interação entre as jogadoras, Daniele Avila Small e Andrezza Alves. Quem foi criança ou interagiu com uma nas décadas de 1980 e 1990 provavelmente vai lembrar do jogo que inspirou Who´s She?: Cara a Cara, era muito comum.

Descobri que é vendido ainda hoje, inclusive numa versão princesas da Disney. Duas pessoas jogam e a ideia é descobrir, pelas características físicas, quem é o personagem do seu adversário. Em Who´s She?, as perguntas sobre aparência foram substituídas pelas biografias, conquistas, feitos de mulheres de tempos diversos, desde o Egito Antigo, até a jogadora de tênis Serena Williams e a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz, Malala. Ela era artista? Ativista? Inventou algo? Ocupou algum cargo político? Pelo que vi no site da fabricante do jogo, Playeress, ainda não há uma versão em português.

Como espectadores, acompanhamos o jogo e a só aparente, pelo clima de descontração, despretensiosa conversa entre Daniele e Andrezza. Não há aleatoriedades – nem na forma e nem na escolha de dar espaço a biografias de mulheres que é, por si, política, ainda mais quando lembramos do contexto de pandemia e de como as mulheres são as mais prejudicadas nessa situação de tragédia sanitária, seja pelas consequências no mercado de trabalho, seja pelo aumento do trabalho não-remunerado, como os cuidados com a casa, com os filhos, com os parentes mais próximos. 

No Cara a Cara versão Who´s She? que Daniele e Andreza jogaram, entre tantas mulheres incríveis, como Hedy Lamarr, Aretha Franklin, Yoko Ono, Chimamanda Ngozi Adichie, só há duas latino-americanas: a freira Juana Inés de la Cruz e Frida Kahlo. Numa versão mais recente, a brasileira Marielle Franco foi incluída. No instagram da marca, o anúncio dizia: “Como muitos de vocês pediram, nós decidimos fazer uma pequena substituição no nosso jogo de cartão. A partir de agora, vocês poderão aprender mais sobre a história de Marielle Franco, feminista e política brasileira que sacrificou sua vida para lutar pelos direitos humanos, especialmente daqueles que vivem em bairros pobres do Brasil”.

Marielle Franco é uma das cartas da nova versão do jogo Who´s She?. Foto: reprodução Instagram

A pesquisa do projeto Práticas Desejantes tem muito a ver com Há mais futuro que passado – um documentário de ficção, dramaturgia de Clarisse Zarvos, Mariana Barcelos e Daniele Avila, que também assina direção. São cruzamentos e expansões: a peça resgata as obras e as histórias de artistas latino-americanas que não têm vez diante da narrativa hegemônica, masculina, sobre a história da arte. A encenação percorre  os caminhos de uma palestra-performance, tema que Daniele estudou no doutorado em Artes Cênicas na Unirio.

A abertura de processo experimenta na forma, manejando os códigos teatrais, fazendo com  que o espectador se pergunte: o que é mesmo uma peça de teatro? Quais as características que definem o que convencionamos chamar de espetáculo? Se desestabilizar esses limites já trazia fricções interessantes, como o formato da palestra levado ao palco, com a explosão do teatro digital, parece que as fronteiras estão sendo alargadas cada vez mais. A questão é se perguntar se aquela forma atende às aspirações com relação ao conteúdo. Alinhar essas expectativas é uma das questões que o grupo deve encarar ao longo do processo, já que os desejos ainda são maiores do que o que está posto como encenação e dramaturgia.

Andrezza Alves e Daniele Avila Small jogam Who´s She?. Foto: Guto Muniz

 

Desejos e descolonização – Na segunda metade da abertura do processo, outras pessoas entraram na live exibida durante a programação do festival Reside Lab – Plataforma PE: Ana Paula Sá, Analice Croccia e o namorado, Carlos Manoel Valença, Geraldo Monteiro e Lais Machado. No mesmo registro da conversa, da coloquialidade, as discussões sobre as intenções do projeto foram esmiuçadas a partir do jogo do tarot, indicando caminhos de como será o processo desse grupo, decidido a enveredar pelo desejo de descolonização dos pensamentos e da prática artística.

Neste momento de retrocesso do mundo, em que constatamos mais uma vez as desgraças do “capitalismo do desastre”, como pontua Naomi Klein, estamos lutando a duras penas para resguardar e manter a luta, nos nossos processos de emancipação. Pelo que percebo, Práticas Desejantes faz parte disso, uma tentativa, ao mesmo tempo aguerrida e afetuosa, de causar fissuras aos modelos do nosso inconsciente colonial.

No prólogo que Paul B. Preciado escreve para Esferas da Insurreição – notas para uma vida não cafetinada, de Suely Rolnik, tem um trecho que me parece ser exatamente o que esses artistas discursivamente expressam que estão buscando, tateando, transpondo ao ambiente das artes da cena, mas explodindo para a vida: “A revolução não se reduz a uma apropriação dos meios de produção, mas inclui e baseia-se em uma reapropriação dos meios de reprodução – reapropriação, portanto, do ‘saber-do-corpo’, da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo. A autêntica fábrica é o inconsciente e, portanto, a batalha mais intensa e crucial é micropolítica”.

Pela interpretação de Lais Machado, comentada pelos demais participantes da live, as cartas do tarot falaram em conflito, em trabalhar mesmo longe dos holofotes, em buscar as reais motivações, em reconhecer privilégios e lugares de descoberta. Continuo com Preciado citando Rolnik, porque os textos imbricados agregam muito significado aos mistérios do tarot: “Diferentemente das receitas de felicidades instantâneas e do feel good, a condição de possibilidade de resistência micropolítica é ‘sustentar o mal-estar’ que gera nos processos de subjetivação a introdução de uma diferença, uma ruptura, uma mudança. É preciso reivindicar o mal-estar que tais rupturas supõem: resistir à tendência dominante da subjetividade colonial capitalística que, reduzida ao sujeito, interpreta o mal-estar como ameaça de desagregação e o transforma em angústia (…)”

O mal-estar faz parte do processo de quem deseja descolonizar práticas e pensamentos. O conflito, os erros e os acertos. Mas há vários caminhos possíveis e as artes da cenas são espaço pulsante para essa investigação e experimentação. O processo parece longo, desafiador e exaustivo. Mas precisamos, não só os artistas de Práticas Desejantes, na vida, percorrê-lo, se estivermos interessados em construir outros mundos possíveis.

Jogo de tarot é o dispositivo utilizado na segunda parte da abertura de processo. Foto: Guto Muniz

Uma das etapas do projeto, contemplado pela Lei Aldir Blanc de Pernambuco, é a “Semana da Invasão”, com conversas abertas com artistas pernambucanas. Confira a programação:

Tema: Interfaces Artísticas e Matrizes de Identidade
Quando: 21 de abril (quarta-feira), às 18h30
Com Anne Mota, Iara Campos, Íris Campos e Lau Veríssimo
Onde: Youtube e Zoom 

Tema: Produção, ocupação de territórios e identidades coletivas
Quando: 22 de abril (quinta), às 18h30
Com Odília Nunes, Paula de Renor e Sophia William
Onde: YouTube  e Zoom 

Ficha técnica:
Práticas Desejantes
Idealização e performance: Andrezza Alves e Daniele Avila Small
Pesquisa, levantamento do material, criação do repositório, dramaturgia e curadoria: Ana Paula Sá, Andrezza Alves, Daniele Avila Small e Geraldo Monteiro
Mediação dos encontros e produção: Ana Paula Sá, Andrezza Alves e Daniele Avila Small
Edição, plataforma digital, gerenciamento e compartilhamento de conteúdos: Geraldo Monteiro
Identidade visual: Analice Croccia
Fotografia: Guto Muniz – Foco in Cena

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A arte possível depois do fim do mundo

Estudo nº1: Morte e Vida, processo do grupo Magiluth, emblemático em tempos de pandemia. Foto: Vitor Pessoa

Tinham acabado de se mudar para uma casa nova. Estavam submersos no movimento de criação. A vida corria como sempre corre, havia muitas coisas de ordens diversas para dar conta. De repente, sem que ninguém se apercebesse com propriedade dos avisos que vinham de outros lugares, depois de um carnaval intenso, pararam. Foram parados. Seguindo as recomendações de quem junta lé com cré, o grupo Magiluth obedece à quarentena por conta dessa pandemia que nos assola. Inseridos numa realidade ampla, complexa e cruel de desemparo às artes no país, os pernambucanos estão preocupados com a sobrevivência como grupo e como indivíduos.

A primeira estratégia de resistência à crise foi articulada rapidamente. Como estavam em pleno processo de criação de um novo trabalho, intitulado Estudo nº1: Morte e Vida, inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto, com direção de Rodrigo Mercadante, jogaram na internet os materiais produzidos e venderam ingressos antecipados para a temporada de estreia. Giordano Castro, ator e dramaturgo do grupo, diz que “apelamos para o carinho que o público tem com o Magiluth, como um voto de credibilidade. Fizemos uma venda de ingressos antecipada sem saber ainda qual será a data de estreia. (…) Não conseguiu sanar a situação, mas no ajudou no mês de abril”.

A situação do grupo é mais crítica porque, em janeiro, a companhia inaugurou o Casarão Magiluth, um espaço cultural na Rua da Glória, na Boa Vista, bairro central da cidade do Recife. Além de servir de terreira para a trupe, a ideia é que o local abrigue eventos, espetáculos, shows, performances, lançamento de livros, cursos e o que mais a imaginação possa permitir. O Casarão de número 465 está revestido de memórias e histórias. De 1993 a 2014, funcionou lá o Espaço Inácia Rapôso Meira, tocado na base da perseverança e da dedicação pela atriz Socorro Rapôso, que interpretou Nossa Senhora na primeira montagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, em 1956. Ela também integrou o elenco de outra montagem da peça, que ficou em cartaz por quase 20 anos. Devido a um aneurisma que a mantém acamada há anos, Socorro se afastou das atividades do espaço.

Casarão na Rua da Glória foi inaugurado em janeiro. Foto: Estúdio Orra

O Magiluth investiu todo o caixa do grupo na empreitada. “Tudo que tínhamos entrou no Casarão.  Foram R$ 76 mil gastos.  E agora é viver dia após dia e esperar as notícias”, conta o ator Mário Sérgio Cabral. “Fizemos um acordo com a proprietária para paralisar o aluguel e conseguimos pagar as contas no dia 5 de abril. Quando chegar 5 de maio, não sabemos como será nossa vida”, complementa.

“A verdade é que acende uma luz que vai além da vermelha. Víamos o Casarão como uma carta na manga. Entendendo que a política desse governo Bolsonaro para a cultura e para o teatro é muito deficitária, a gente sabia que, em algum momento, iríamos sofrer com esses cortes, cortes de orçamento para festivais, com o corte de orçamento para incentivo à Cultura, com a perseguição que o Governo faz ao Sesc. Sabíamos que, em algum momento, essa corda ia apertar no pescoço. A carta na manga era o Casarão. Aí fomos pegos pela pandemia. Toda a sociedade. É um balde de água fria”, explica Giordano Castro.

Sem que haja uma disputa por prioridades – já que garantir a vida é a maior delas neste momento – os atores pedem atenção dos governos, nos âmbitos do município e do estado para, por exemplo, desburocratizar pagamentos de cachês, inclusive de grandes eventos como o carnaval, e de projetos, como aqueles aprovados pelo Funcultura. “Temos projetos aprovados no Funcultura que ainda não recebemos. Um deles é o projeto de Miró, que é do Funcultura 2017/2018 que ainda não foi pago. Já foi lançado outro edital, premiado outro e esse ainda não foi pago. Isso ajudaria muito o Magiluth a conseguir mais um tempo de vida, conseguir viver de uma forma mais segura dentro dessa quarentena”, explica Giordano. “É difícil não ter um diálogo dentro da Fundarpe para saber: e aí? Como é que é? Quando vem? Uma coisa era presencial, chegar lá no espaço, bater na porta das pessoas e falar. Mas agora você não sabe com quem falar. Onde estão essas pessoas? Quem pode resolver?”, pondera.

Asmáticos, Giordano e Mário Sérgio são considerados grupo de risco para a Covid-19. “Sim, tenho medo. De 1 a 10, com certeza 10. Sou asmático e medroso”, diz Mário Sérgio. Giordano, pai do bebê Gabo, de poucos meses, também sente medo. “Eu tenho muito medo de morrer. Tenho muito medo de que as pessoas ao meu redor morram, que os meus companheiros adoeçam. E eu tenho minha família, meu filho que acabou de nascer, quero curti-lo, quero viver totalmente”.

Há também a ausência da relação mais próxima com o público, o sentimento difícil de saber que pessoas que acompanham o trabalho podem ser afetadas. “Um dos espetáculos mais potentes, que para a gente é muito feliz fazer é Aquilo que o meu olhar guardou para você. Um espetáculo que a gente traz o público todo para o palco, que estamos muitos próximos, nos tocamos, conversamos. É triste não poder fazer o trabalho que a gente gosta de fazer, mas sabemos que é fundamental parar, para que a gente mantenha a vida”, complementa.

Aquilo que o meu olhar guardou para você

Além de esperar pelos “pulos de olhos fechados nas piscinas”, como diz um trecho da dramaturgia de Aquilo, o público pode aguardar – pelo que foi postado nas redes sociais – um trabalho contundente de viés social. Depois de Apenas o fim do mundo, um texto muito voltado às relações humanas, o grupo encara a realidade das migrações, se questiona o que é ser nordestino, pensa sobre a fome, o direito à terra, as desigualdades, a ruína de um sistema capitalista. Realidades que estão ainda mais brutais, escancaradas por uma pandemia. Quando o futuro se fizer presente, certamente o que vivemos nesse tempo também estará no palco do Magiluth, no Casarão da Rua da Glória e em quaisquer outros tablados possíveis.

Resposta da Fundarpe – O Satisfeita, Yolanda? conversou com a assessoria de imprensa da Fundarpe para entender a demora na liberação do projeto sobre Miró, aprovado no Funcultura Geral 2017/2018. “O referido projeto (…) apresentou problema de documentação, o que fez com que o proponente ficasse inadimplente. O mesmo solicitou ao Funcultura uma prorrogação do prazo de entrega da documentação necessária ao empenho, para resolver a situação, mas apenas no final do ano de 2019 a documentação foi regularizada. Já não havia orçamento para empenhar o projeto, condição necessária para seu pagamento. O projeto segue em análise porém, as prioridades de pagamento são para os projetos do ano vigente. Os projetos aprovados nos editais anunciados no final de 2019 receberão os recursos tão logo a Fundarpe receba autorização de pagamento da Secretaria da Fazenda estadual”, diz a nota da Fundarpe.

Com relação ao atendimento aos artistas neste período de pandemia, “enquanto durar o isolamento social, o Funcultura está com a sua Unidade de Atendimento ao Produtor Cultural funcionando com atendimento eletrônico através do e-mail: atendimentosic@fundarpe.pe.gov.br, e telefônico pelos números (81) 9.8327.0979 e (81) 3184.3026, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h, e das 13h às 17h”.

Houve ainda a reabertura do prazo para inscrição/renovação do Cadastro de Produtor Cultural (CPD) até o dia 17 de abril. “O CPC é necessário para apresentação de projetos para os editais Geral, Música e Microprojeto, que também tiveram suas inscrições prorrogadas. O envio da documentação está sendo exclusivamente através do e-mail: cpc.funcultura@gmail.com”.

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