Saudades de Milaré

Sebastião Milaré em foto de Bob Souza

Sebastião Milaré em foto de Bob Souza

Dizer que o teatro brasileiro está de luto é pouco para traduzir a falta que Sebastiao Milaré já faz.

O crítico, dramaturgo e pesquisador teatral paulista migrou para outra dimensão nessa quinta-feira. Ele foi internado na segunda-feira, dia 7, no Hospital Cruz Azul, no bairro do Cambuci, em São Paulo para tratamento de um câncer no intestino.

O enterro será no Cemitério Jardim da Colina, em São Bernardo do Campo.

Ele coordenava um projeto hercúleo Teatro e Circunstância, do SESC-TV, de São Paulo. Para a série Milaré entrevistou mais de 100 grupos de teatro, de Belém a Porto Alegre, delineando a produção teatral contemporânea, a partir da década de 1970.

Especialista na obra cênica de Antunes Filho, escreveu três livrossobre o encenador: Antunes Filho e a dimensão utópica (Perspectiva), Hierofania – o teatro segundo Antunes Filho (Edições Sesc) e Antunes Filho – poeta em cena (Edições Sesc), este último com posto a paritr das fotografias de Emidio Luisi. Milaré também publicou A Batalha da Quimera — Renato Viana e o Modernismo Cênico Brasileiro.

Esse homem gentil e bem-humorado, intelectual incansável, definia o teatro como “encontro com o sagrado”.

Milaré participou do 15º Festival Recife do teatro Nacional, em 2012. Em maio de 2013 foi publicado trechos da entrevista feita por Pollyanna Diniz. Segue na íntegra:

ENTREVISTA // SEBASTIÃO MILARÉ

De que forma você conheceu o teatro?
O teatro se aproximou de mim e me dominou quando criança ainda. Minha família mudou de São José do Rio Preto para São Paulo quando eu tinha dez anos de idade. Mas antes disso, lembro que eu ia ao circo, adorava! E em São Paulo sempre fui ao teatro, frequentava grupos amadores. Não era uma coisa de família. Muito pelo contrário, era só eu mesmo.

E com o tempo você começou a fazer direção de espetáculos?
É. Vem dessa história de começar bem jovem a fazer teatro de amadores. Eu dirigia, gostava disso. E depois comecei com um grupo que não era mais tão amador, mas era bem experimental, isso nos anos 1960: chamava Teatro Experimental de Jovens. E também dirigi um grupo criado dentro do Sesc. Tinha uma unidade do Sesc em São Paulo na Rua do Carmo que tinha um teatro de arena e eu fiquei dirigindo um grupo dentro desse teatro por alguns anos: o grupo Tarefa. E isso nos anos 1960 ainda. Era uma fase muito dura quando eu me profissionalizei mesmo, era muito difícil fazer teatro naquela época, por conta da censura. E eu já estava no jornalismo, então comecei como crítico de cinema na Folha da Tarde. E fui convidado para trabalhar na revista Artes, que naquela época acho que era a única publicação brasileira sobre artes mesmo, sobre todas as linguagens. Terminei me envolvendo com outras linguagens: sempre gostei muito de artes plásticas, fiz cobertura de Bienais, e também teatro. Então eu escrevia tanto sobre artes plásticas, quanto sobre cinema e teatro. Mas comecei a desenvolver um trabalho de crítica de teatro e me interessei muito pela parte teórica. Então fui abandonando a criação. Comecei a achar que a minha praia era teoria; não era a criação. Gosto de ver a criação alheia, de acompanhar todo o processo criativo, mas eu mesmo me colocar como criador já era uma coisa que não estava me interessando muito.

Como veio a aproximação com Antunes Filho. Quando você viu uma peça dele pela primeira vez?
É inesquecível. Eu tinha 16 anos quando fui ver, em 1962, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), a montagem que ele fez de Yerma, de Garcia Lorca. Eu não conhecia nem ele, nem o texto. Claro, ia ver muitas coisas, muita comédia, mas eu não conhecia realmente as figuras do teatro. Quando eu vi aquela Yerma, para mim o teatro começou a significar alguma coisa de extraordinário. Era uma revelação muito grande. No dia seguinte, comprei as obras completas de Garcia Lorca, comecei a ler tudo e a acompanhar o que Antunes fazia. Eu o admirava muito, que era bem jovem também. Depois, em 1965, ele foi convidado pelo Alfredo Mesquita para ser o professor de interpretação do terceiro ano da EAD (Escola de Arte Dramática da USP), que era o responsável pela encenação do final do curso. E ele optou por fazer A falecida, do Nelson Rodrigues. Eu tinha vários amigos dentro da EAD. Então eu freqüentava muito aquele espaço e de certa maneira acompanhei a montagem. E foi aí que tive os meus primeiros contatos rápidos com Antunes. Só bem mais tarde, quando eu já estava na revista Artes, foi quando comecei a fazer matérias bastante extensas sobre o teatro dele. Antunes sempre gostou também das coisas que eu escrevia. Nós já tínhamos um respeito mútuo profissional. Eu me lembro quando ele estava fazendo Peer Gynt em 1971; e era o grande espetáculo daquele ano. Pedi uma entrevista para o Antunes. Marcamos o dia e quando cheguei ao teatro, o Antunes, aquele jeitão dele, me pegou pelo braço: “vem cá, vem cá”, me levou para uma sala. E para a minha surpresa numa mesa estavam nomes como Maria Bonome, que era a figurinista da peça, Laonte Klawa, que era cenógrafo, Stênio Garcia, que fazia Peer Gynt, Jonas Bloch, Ariclê Perez. E Antunes me disse: a entrevista tem que ser com todos, porque todos são criadores do espetáculo.

Isso em 1971 era uma visão bastante avançada?

Com certeza. E era realmente o reflexo do que ele fazia, que hoje é uma coisa muito comum, de criar a peça através de workshop e tudo mais. Antunes foi o primeiro que fez laboratório no teatro brasileiro, em 1964, com Vereda da Salvação. Então a partir de Peer Gynt a minha relação com Antunes ficou mais próxima, mas também era uma fase difícil, o Antunes trabalhava muito por contrato, não conseguia manter uma linha de trabalho dele. Isso até 1976, 1977, quando começou a fazer Macunaíma. A partir de Macunaíma passei a acompanhar sistematicamente e estar muito junto do Antunes.

E daí para o primeiro livro – Antunes Filho e a Dimensão Utópica – qual foi o caminho?

Esse primeiro livro foi muito engraçado. Porque eu escrevi muitos artigos sobre o Antunes. Quando o Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) já estava instituído dentro do Sesc, quando ele tinha esse lugar que possibilitava a continuidade do trabalho, fiz um ensaio muito grande sobre o CPT. E percebi que o Antunes estava realmente trabalhando algo que era método para ator. Ele dizia que não. E eu me interessei muito e falei para o Ulysses Cruz, que era assistente dele, que estava pensando em escrever um livro, porque só as matérias não eram suficientes. Mas Ulysses disse que eu não falasse nada para ele, porque Antunes tinha medo: “ele acha que escrever um livro sobre ele é anunciar a morte”. Mas eu não podia fazer uma biografia não autorizada! Fiz um projeto do que eu pretendia e mostrei ao Antunes. E ele fechou comigo imediatamente e ainda me disse que eu não precisava nem fazer pesquisa em arquivos, em jornais, porque ele tinha tudo, todos os recortes que eu precisasse. E daí comecei a acompanhar sistematicamente o trabalho de ensaios no CPT, a montagem toda de A hora e a vez de Augusto Matraga (1986) Isso para eu ir realmente me assegurando de como era o trabalho dele; porque eu sabia, mas de uma maneira um pouco distanciada, e eu precisava estar no olho do furacão. Os processos do Antunes são sempre demorados. E o meu processo foi demorado exatamente acompanhando o ritmo dele. Tive um apoio muito grande de pessoas que me deram entrevistas, depoimentos sobre o Antunes maravilhosos, como Osmar Rodrigues Cruz, que foi parceiro dele logo no início, Décio de Almeida Prado. E fiz Antunes Filho e a dimensão utópica, que foi o primeiro livro, que trata dele até Macunaíma (1978).

Mas por que até Macunaíma?

Porque como eu estava dentro do CPT vendo o que estava acontecendo ali, cada vez mais ia ficando claro – e aí o Antunes já começou a admitir sim – que ele estava constituindo um método, mas estava muito no início, embora já desse resultado em cena. E sabia que tinha que fazer um livro especificamente sobre o CPT e sobre o processo criativo do Antunes lá dentro. Já no prefácio, na introdução do primeiro livro, prometo o segundo livro – que aí avança no aspecto da obra dele a partir de Macunaíma, já dentro do CPT e dentro do grupo Macunaíma. Era um projeto já desde aquela época, mas eu não sabia que ia demorar tanto! A elaboração do livro tinha que acompanhar o ritmo do Antunes e o processo dele lá dentro do CPT. Eu só poderia dar por terminado um livro sobre o método quando ele desse por concluída também a sistematização que ele estava fazendo. Por isso levou quase 20 anos!

Para Antunes o ator é a peça fundamental.

Antunes deixa claro que para fazer teatro você pode dispensar cenário, luz, figurino. Pode dispensar até o texto. Mas sem o ator não tem teatro. Na realidade, Antunes fez no Brasil a mesma coisa que outros da geração dele fora do Brasil. E estou falando de Grotowski, de Eugenio Barba. Antunes fazia um trabalho muito sintonizado com tudo isso. Sempre briguei muito com essa história: “ah, o Antunes está fazendo Grotowski”. Não está fazendo Grotowski! Ele está bebendo nas mesmas fontes, porque é da mesma geração, tem a mesma inquietação, o mesmo espírito do tempo está dominando ele. Desde o início da carreira dele, Antunes sempre lutou para que o ator brasileiro tivesse alguns meios de criação muito adequados à cultura do ator brasileiro, ao físico, ao corpo do ator brasileiro. Mas isso desde os anos 1950, quando ele fez Anne Frank; depois quando ele faz Vereda da salvação em 1964, que surgem os laboratórios, algo extremamente controverso, polêmico. Tinha gente de teatro que dizia que o Antunes estava fazendo uma coisa de destruir o teatro, que era uma loucura. Mas o que ele estava fazendo era o que Grotowski fazia, cada um na sua realidade. Depois de um tempo é que, de repente, começam todos eles a ficarem internacionais e aí vamos tendo notícia de cada um. Desde que se instituiu realmente o CPT, que já tem 30 anos, o número de atores que já passaram por lá, que se inscrevem, que passaram pelo CPTZINHO, é um número imenso. E grande parte desses atores estão aí no teatro, constituíram uma carreira e trazem essa herança do Antunes. E dessa maneira as ideias dele vão “contaminando” o teatro brasileiro e o ponto de vista que se tem hoje do ator já é muito diferente do que há 30 ou 40 anos.

Quem é o ator para Antunes Filho?

Antes de tudo, o ator em que lutar muito para resolver todos os bloqueios, tanto no físico quanto no espírito. O ator tem, para o corpo, uma carga extraordinária de exercícios, até que seu corpo fique completamente destravado e obedeça a um comando qualquer que você dê. O corpo não pode ter tensões desnecessárias. Ombros duros, por exemplo, isso acaba com a respiração. Quando o ator consegue chegar a um estado de relaxamento ativo, consegue ter domínio da respiração. E quando há domínio da respiração, ele consegue tudo. Porque, para Antunes, ator é respiração. E, por outro lado, a questão do intelecto, da psique, do espírito. O ator tem que ser desbloqueado. Temos muitas travas culturais, muitos condicionamentos. As pessoas são todas muito carregadas de preconceitos. O ator não pode ter isso; é a mesma coisa de travas no corpo; a trava de um pensamento condicionado a certas manias, certos preconceitos. Acaba com a possibilidade de criação. Então para isso é muita leitura, conversa e um permanente trabalho de autoconhecimento. O processo do Antunes está atrelado sempre ao processo de individuação, como prega o Jung. Porque o ator tem que questionar sempre a postura dele frente ao que ele faz. Ele vai trabalhar com o outro, que é o personagem, então ele não pode ter uma ideia preconcebida do outro. Ele tem que começar a examinar o outro, as razões do outro e buscar primeiro uma identificação. Esse é o princípio. Mas eu não posso me identificar com um personagem colocando as minhas coisas, como diria Antunes Filho, “seus problemas de Édipo, seus problemas com o pai, com a mãe” no personagem. O ator não pode projetar as coisas dele no personagem e sim trazer as coisas do personagem para ele e sentir como ele reagiria dentro disso. É sempre um processo de autoconhecimento que ele vai desenvolvendo.

Neste sentido, como você encara as muitas montagens contemporâneas que levam à cena o ator como personagem de si mesmo?

É diferente você pegar a biografia de uma pessoa, a vida, analisar, ter as suas conclusões e criar em cima disso; ainda que seja uma pessoa atual, viva e tudo mais. Agora quando o ator se coloca ele mesmo em cena, é meio complicado. Porque ele não tem um distanciamento do outro. Não sei te citar exemplos nem de uma coisa positiva, nem de uma coisa negativa nesse sentido. Só acho que é algo que está se fazendo hoje, mas que temos que examinar com cuidado, pensar quais caminhos o ator vai tomar nesta criação. Um pintor pode fazer um autorretrato, mas ele tem uma distância, ele está noutro suporte. O ator não tem outro suporte, o suporte dele é o próprio corpo, a própria cabeça. É uma coisa meio complicada. Eu acho que sempre que se coloca um ator que está se expondo em cena, usando seu próprio material pessoal para uma criação, acho que entra mais na psicanálise do que na verdadeira criação artística, pelo menos por enquanto. Acho que é uma coisa mais terapêutica do que realmente uma criação. Agora, não é inválido. Acho que as pessoas que estão trabalhando nessa linha tem um desafio pela frente, que é o de superar uma série de problemas que existem nesse conceito e de encontrar meios expressivos que tornem isso uma coisa artisticamente válida. Mas é muito atual.

Voltando a falar em Antunes, quais os paralelos entre Nelson Rodrigues e Antunes, e como foi a relação entre os dois?

Quando falamos em Nelson Rodrigues estamos falando do maior poeta dramático de Língua Portuguesa desde Gil Vicente. Acho que Nelson está à altura dos grandes clássicos. Está à altura de Ibsen, de Shakespeare. Não tem diferença. O que Shakespeare fez foi contar aquele seu momento, aquela sua realidade e construir toda uma visão de mundo a partir daquela realidade. Nelson fez a mesma coisa e num nível poético de extraordinária beleza, de força e vigor. A relação do Antunes com o Nelson foi muito importante para os dois e transformadora. Porque quando o Antunes fez, em 1981, Nelson Rodrigues – O eterno retorno mudou a visão de todo mundo em relação a Nelson Rodrigues. Infelizmente Nelson não chegou a ver o espetáculo: morreu seis meses da estreia. Mas a assistente do Antunes na época, a Leonor Chaves, que é uma grande amiga minha, ia para o Rio e era recebida pelo Nelson para consultá-lo sobre questões e era recebida com a maior afetividade e muito feliz por Antunes estar fazendo aquele trabalho. Uma pena que ele tenha morrido antes. Acho que ele ficaria surpreso quando visse aquela obra, que era uma coisa surpreendente mesmo. E mudou a visão que se tinha do Nelson Rodrigues. A partir daí Nelson começa a ser realmente considerado um gênio e é repudiada aquela ideia que se fazia antes de um autor pornográfico, de comédia de costumes. Nelson é um patrimônio nosso, do Brasil, e da humanidade. Uma das maiores referências do teatro no século 20 e onde ele é descoberto, é louvado. Acho que o Antunes tem uma familiaridade com a obra do Nelson que possibilitou ele fazer, por exemplo, A falecida Vapt-Vupt, que estreou aqui no Recife, em um mês e meio e como possibilitou fazer agora Toda nudez será castigada em menos de dois meses. Eles estão muito próximos.

O teatro é um processo histórico. Mas mesmo sem o distanciamento geralmente exigido, você consegue delimitar em que momento estamos e que caminhos vamos trilhar?

Acho que o teatro brasileiro tem uma maturidade e uma vitalidade. Estou falando de teatro brasileiro mesmo, de Norte a Sul. Não estou falando de eixo Rio-São Paulo. O que se percebe é que existem projetos artísticos audaciosos muitas vezes e uma preocupação e uma consciência dos criadores – sejam eles diretores, dramaturgos, atores. Uma consciência muito grande de que para chegar a realizar aquela ideia, ele tem que se preparar intelectualmente, pesquisar muito, a cabeça dele tem que estar abrindo para novos horizontes. Assim como ele tem que trabalhar o corpo, para que o corpo responda e corresponda àquela ideia. E isso você percebe em muitos grupos de teatro do Brasil inteiro e muitos conseguem realizar obras que são surpreendentes. Agora… se está assim, e se assim continua, o futuro a Deus pertence!

Mas o caminho passa pelo teatro de grupo?

Por enquanto, na realidade que estamos vivendo hoje, passa sim. Acho que o teatro de grupo possibilita a continuidade de uma pesquisa. Então tem grupos, por exemplo, que não tem o diretor, que contratam os diretores. Mas eles têm uma ideia, uma proposta estética que quem chega acompanha. Cito, por exemplo, o Teatro de Anônimo, do Rio de Janeiro, que funciona assim. Se o diretor tem uma ideia e os atores têm outra, fica a ideia do ator! Porque a continuidade do trabalho está neles. E acho que isso é importante. O grupo possibilita ter essa continuidade do trabalho e a criação artística é um processo contínuo. O produtor contrata, o diretor, o ator que tem o physique du rôle para aquele papel num sei das quantas. E está fazendo a reprodução de um teatro antigo, de uma ideia antiga de teatro, que termina nela mesma. O teatro de grupo possibilita a continuidade, todos estarem dentro de um projeto, e trabalhando por aquilo. E esse projeto pode ir se transformando; pode começar de uma maneira e virar outra coisa lá na frente, mas dentro de um esforço conjunto. O teatro é sempre uma arte coletiva. O teatro não é uma coisa isolada, fragmentada, mas é um esforço coletivo de criação. E esse coletivo tem necessariamente que estar junto dentro de uma ideia: do que é uma obra de arte, o que é uma peça de teatro, como o que é uma escultura.

Como você enxerga especificamente o teatro feito no Recife?

Isso tudo que eu estou falando do teatro brasileiro, encontramos aqui, em João Pessoa, Porto Alegre, Brasília. O que vejo é que Recife tem uma tradição de teatro que tem que ser respeitada. E isso é batalha. Acho sacanagem contar a história do teatro moderno brasileiro sem apontar Recife: ficar naquela história – Os comediantes, depois o TBC. Acho que tem que entrar o Gente Nossa como processo histórico, Valdemar, o Teatro de Amadores de Pernambuco, Hermilo Borba Filho. Hermilo não estava importando o que estava acontecendo em São Paulo. É claro que estava dialogando com aquilo sim, mas estava correspondendo a uma realidade daqui. Especialmente Hermilo, ele vai trazer muito essa consciência: nós temos uma realidade e temos que trabalhar e transformar essa realidade em códigos artísticos dentro do teatro. Isso tudo é o processo de modernização e Recife participou de maneira muito intensa, com figuras muito importantes. O que percebo hoje é que esse vigor, essa herança do passado está trazendo frutos hoje. No panorama do que eu conheço, isso passa pela Companhia Teatro de Seraphim, que pega essa herança dessa modernização, tanto do Teatro de Amadores quanto do Hermilo, com as contradições todas implícitas nessas linhas e vai trazer para o Seraphim outra coisa, que já se transforma noutros grupos. Acho que um dos grupos mais recentes, por exemplo, é o Magiluth. Acho o Magiluth um grupo de uma capacidade de percepção teatral muito grande, de propostas teatrais. Quando eles fazem Um torto, Aquilo que meu olhar guardou para você são experiências cênicas importantes. E eles têm a coragem de fazer Gregório com aquela capacidade artesanal, mostrando que eles sabem realmente fazer teatro sim. Pegam Uma viúva, porém honesta; tem a inteligência de pegar uma obra de Nelson Rodrigues que permite isso e fazem como se fosse uma extensão do Nelson Rodrigues. Eles têm as mesmas condições do Nelson Rodrigues porque são da mesma terra, têm as mesmas heranças culturais da região. Tenho muita admiração pelo povo todo que está fazendo teatro no Recife, que sempre me surpreende. Vejo um teatro muito vital e que tem raízes, tem tradição, não é uma coisa que está acontecendo por acaso.

Neste panorama nacional, em que situação está a crítica, principalmente com a diminuição dos espaços formais?

Senti isso na carne. Há décadas me recuso a fazer crítica na imprensa diária, estar na redação fazendo crítica. Vamos voltar ao Viúva, porém honesta. Acho perfeito o que o Nelson Rodrigues faz. Tem uma tradição na imprensa brasileira que vem lá dos anos 1910, 1920. Naquela época o crítico para entrar no teatro tem que ter uma casaca. “Ah, quem trouxe uma casaca? Então hoje você é o crítico do dia”. Não mudou tanto. Porque muitos críticos são eleitos pelo editor porque acham que “o carinha” leva jeito, quando a crítica é uma coisa muito séria. Ou então vamos publicar só críticas de espetáculos que tem estrelas de televisão. Acho que é uma visão tão falha… e por isso a imprensa está tão mal das pernas, enchendo o saco por assinatura. Os espaços estão cada vez menores ou inexistentes. Em São Paulo, vejo que tem um movimento teatral de periferia, de grupos de importância extraordinária na periferia que não tem espaço nenhum na imprensa. Ou algumas vezes, o Grupo Clariô, por exemplo, que faz um trabalho extraordinário. Hospital da gente é uma obra antológica. Eles ganharam páginas inteiras nos jornais, porque a sede deles, que é junto de uma favela, num local sujeito a enchentes, sofreu algumas enchentes. E não pelo trabalho extraordinário que eles fizeram em cima do texto do Marcelino Freire. Por outro lado, existe um pensamento crítico no Brasil hoje? Existe. Tem muita gente escrevendo, fazendo críticas importantes, pensando o teatro no campo da teoria, de uma maneira muito séria. Mas essas pessoas raramente aparecem na imprensa diária. Elas estão publicando livros, fazendo ensaios, artigos que você vê em revistas de vez em quando. Então existe sim um pensamento crítico acompanhando tudo isso. Não estamos numa terra de ninguém. Mas as pessoas quando falam de crítica já pensam naquela coluninha que sai no jornal.

Qual o seu processo quando vai escrever uma crítica?

Sempre procuro amadurecer muito as ideias. Quando é para uma publicação que eu tenha tempo, trabalho muito, volto muitas vezes àquilo, me questiono. Mas quando faço críticas em festivais, por exemplo, que é uma coisa mais rápida, o que procuro sempre é perceber no espetáculo o que há de positivo. Isso que me interessa. E sempre há alguma coisa positiva. Porque aí acho que você está dialogando com os criadores de uma maneira mais honesta, mais justa e você está dando ao espectador, ao leitor, a ideia de que, ainda que seja um espetáculo com problemas, mas você pode prestar atenção em algo, um caminho, um viés, revela um pensamento mais consistente daquele criador. Essa é uma função importante da crítica.

Você acompanha a crítica teatral na internet?

Eu realmente não observo tanto, por causa de tempo. Procuro me atualizar e verificar o que as pessoas estão fazendo, pensando, mas não com um acompanhamento sistemático. Até porque é muita coisa. Acho que na internet você encontra alguns trabalhos críticos que, às vezes, não têm espaço na imprensa tradicional. Porque a internet rompe um pouco com as exigências editoriais, então permite que o crítico tenha um raciocínio um pouco mais dilatado. Mas o que percebo é que a grande maioria escreve ainda como se estivesse escrevendo para um jornal diário; estão dentro dos mesmos conceitos, das mesmas preocupações editoriais, que interferem no pensamento crítico. A internet é um campo que possibilita uma democratização e isso traz também o aparecimento de um mundo de coisa ruim, mas também de coisas de excelente nível. A internet está possibilitando que as pessoas se pronunciem. Quando eu fiz o Anta profana (www.anaprofana.com.br), foi por uma insistência de um sobrinho meu, o Alexandre Werneck, que fez o site. E eu achei legal quando a ideia maturou. Mas a minha preocupação primeira é que eu estava com muito trabalho de pesquisa e eu tinha que colocar na roda. Acho que o pesquisador vai acumulando muita coisa e eu tinha que dar acesso a outras pessoas a esse material. E para isso o Anta profana, antes de ser a divulgação de um pensamento crítico, era a distribuição do conhecimento de um pesquisador. Mas já tem dois anos que estou com muita dificuldade de atualizar, por conta do trabalho. Mas vou retomar. Anta profana é minha casa e eu sou uma anta, porém não sagrada, profana.

Queria falar um pouco sobre a Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo, que completou uma década ano passado, e a importância dessa experiência para o resto do país. Você presidiu a comissão que escolhia os projetos contemplados algumas vezes, não é isso?

A Lei de Fomento estabeleceu um modelo de apoio. Foi resultado de um movimento da categoria que foi o Arte Contra a Barbárie, um movimento realmente muito importante e que desembocou num momento favorável, que foi quando a Marta Suplicy foi eleita prefeita de São Paulo. Então alguns vereadores acolheram a proposta da categoria, apresentaram projeto de lei e depois a prefeita aprovou, sem alterar o projeto de lei que tinha sido feito pela categoria. Acho que a Lei de Fomento inova de uma maneira extraordinária porque não é destinada à montagem de espetáculo. Toda lei de incentivo está sempre pensando em montagem. E a Lei de Fomento não é para isso, mas para a continuidade de trabalho de grupo. Possibilitar que um coletivo possa desenvolver seu trabalho de pesquisa sem essa opressão de colocar algo logo em cena, buscar patrocinadores. Você tem que ter esse tempo para estudo, um espaço que possibilite isso. Acho que é um desdobramento legal, por exemplo, que a Petrobras está fazendo, também promovendo a manutenção de grupo. Muitos grupos no Brasil estão conseguindo desenvolver seus trabalhos. Dentro da própria categoria, por outro lado sempre tem aqueles que não são contemplados ou os que nem mandam projetos: “essa comissão é um compadrio”. A lei não impede que um grupo seja contemplado várias vezes e até em sequência. Se um grupo apresenta um projeto e demonstra que está trabalhando, que está realizando, precisa ganhar de novo para continuar. O espírito da lei sempre foi esse. Então dentro da classe surgia essa história de compadrio, que realmente, nunca existiu. As nove vezes que eu presidi a comissão, as reuniões sempre foram aguerridas. Cada projeto votado é discutido exaustivamente. E outra coisa é dentro do próprio governo. Alguns acham que a prestação de contas tinha que ser como a da Lei Rouanet, que sacrifica os grupos. Felizmente, criou-se logo no início a continuidade do Arte Contra a Barbárie. Então os grupos se reúnem. Por exemplo, a secretaria colocou um edital e tem alguma coisa que fere o espírito da Lei de Fomento, imediatamente tem uma manifestação pública e por duas vezes a secretaria já teve que cancelar o edital e refazer. Isso é importante. São Paulo tem um movimento teatral hoje muito forte, com grupos que surgiram nos anos 1990 e tem uma expressão bastante grande e a possibilidade da existência desses grupos está ligada à Lei de Fomento. Acho que é um modelo que poderia ser aplicado nacionalmente.

Uma discussão recorrente: como formar plateia no Brasil?

O teatro é o ator antes de tudo, mas sem a plateia o ator não existe, é aquele bobo que está falando sozinho. Ele tem que ter o interlocutor. Mas é complicado formar plateia. Eu dou um exemplo claro. Os grupos de periferia de São Paulo. Tem vários grupos de um nível extraordinário: a Brava, Dolores Boca Aberta, Clariô. São grupos de um trabalho estético de importância muito grande. E o trabalho estético deles nasce do convívio deles com a comunidade onde atuam. Eles não estão na coisa paternalista: “ah, coitadinhos, nunca viram teatro”. Não é isso. A atitude é: esta era uma realidade que nos interessa como matéria prima para a nossa criação e não para fazer discursos panfletários, nada disso. Porque o drama humano está ali e isso é o que interessa. Mas tenho que conhecer profundamente esse drama humano para conseguir transformá-lo em códigos artísticos em cena. Esses grupos todos, quando eu vou para a periferia para ver um trabalho deles, embora você não precise ir para a periferia, porque muitos deles estão nos festivais, a receptividade daquele público para as obras é uma coisa extraordinária. Não lhes falta público jamais e um público cúmplice. São códigos que eles criaram. Não é uma coisa fácil, que você vê na televisão. Não! É uma obra de arte que eles estão criando ali! Mas tem um diálogo maravilhoso e aquele público está completamente entregue a eles. Essa é a formação de plateia que vejo, esse diálogo. Não é criar evento. Acho que o que esses grupos estão fazendo – estou falando da periferia porque é mais óbvio, mas outros estão fazendo isso, como o Teatro da Vertigem -, é resgatar para o teatro a sua condição ritualística. É um ritual. E o ritual envolve o que está celebrando e quem está participando: a plateia. Quando o teatro interessa realmente àquele público aí o teatro se torna uma coisa sagrada, aí acontece um encontro do homem como o divino. Isso é formação de público. Eu lembro de uma experiência que tive há muito tempo, aqui no Cabo de Santo Agostinho. Fiquei impressionado com o teatro, não só de rua, mas de palco também. E como uma parte da plateia, molecada mesmo, entrava na cena. E aí é que está: não tem uma educação burguesa, quer participar também, então fala, mas dialoga. E eu achava aquilo lindo, não me incomodava. Depois, sim, vamos educando a plateia. Mas esse jogar-se lá dentro é tão fundamental! Aí se cria a plateia. Não é aquela plateia que vai ver espetáculo e depois come pizza. Essa plateia não me interessa. Como não me interessa quem faz teatro para isso. Acho que teatro é uma coisa muito mais séria. Aquelas ‘comediazinhas’…você ri, ri, depois vai comer pizza. E esquece. Não leva nada daquilo. O teatro tem que imprimir na alma do espectador alguma coisa muito importante.

Quais os seus próximos projetos?

Estou completamente envolvido na série Teatro e circunstância. Nós ficamos cinco meses rodando pelo Brasil e tomando depoimentos. Entrevistei mais de cem grupos. Do Brasil inteiro, ou pelo menos de Belém a Porto Alegre. Tem alguns vazios: eu não podia ir para Manaus, por exemplo, para Mato Grosso, porque era muito dispendioso. Então tive que me concentrar: o Nordeste inteiro, Minas Gerais, Rio de Janeiro, os estados de Sul. Entrevistei mais de 100 grupos e ainda intelectuais, pessoas envolvidas com o teatro. É um material de pesquisa extraordinário, como acho que ninguém tem. E isso me traz uma responsabilidade. Porque terminando de construir os roteiros da série – 28 roteiros, de uma hora cada um, vou fazer um livro. Estou feliz porque é um painel como nunca houve. No final das contas, são 55 programas de uma hora cada. E o que pretendo fazer, o projeto que vou me dedicar inteiramente é escrever um livro sobre o teatro brasileiro contemporâneo. Esse teatro que realmente existe e não aquele que as pessoas imaginam que exista e que fica restrito a determinadas áreas e nada mais. Tem coisas surpreendentes nesse país. Trabalhos, pessoas pensando teatro nos lugares onde você nem suspeitava.

O que é o teatro para você?

O teatro para mim é uma religião. Acho que o teatro é sim um espaço sagrado. É sempre um ritual. Acho legal, por exemplo, quando o Amir Haddad defende a ideia da arte pública. A arte pública não é uma arte feita pelo governo. É uma arte feita pelo cidadão e para o cidadão. E acho que o teatro é realmente isso. O teatro tem que ser uma arte pública. Quando o artista vai para a cena, ele tem que estar carregado dessa responsabilidade social, o ato político de você estar se dirigindo ao outro. Em primeiro lugar isso, essa responsabilidade na comunicação e quando ela se efetiva de uma maneira generosa, bonita, bela, porque quando você está fazendo arte você tem que buscar a estética, você chega ao ritual e ao que é o teatro. É uma coisa sagrada. É o divino de cada um. Quando você supera todas as suas coisas mesquinhas, imediatas, e tudo mais e passa para outro plano da realidade, um plano superior. É aí que o teatro tem que esta

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