O preço de uma traição

Duas mulheres em preto e branco foi apresentada no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Pollyanna Diniz

Duas mulheres em preto e branco foi apresentada no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Pollyanna Diniz

Quer dor mais profunda do que a da traição? De saber que o elo da confiança foi rompido? Buscamos as supostas verdades, queremos saber os porquês. Letícia é uma mulher que passa por esse momento; mas tem não só um acerto de contas com a ‘traidora’, a amiga Sandra, companheira desde o tempo de faculdade. Ela revive épocas, sentimentos, caminha pela memória, vai e volta numa construção que tem muitas referências e fragmentos.

Em Retratos Imorais, livro que traz 22 contos, Ronaldo Correia de Brito faz um mergulho na narração e na memória. Desse universo, as atrizes Paula de Renor e Sandra Possani decidiram levar ao palco o conto Duas mulheres em preto e branco, com a história da amizade de Letícia e Sandra. A montagem estreou ano passado no Porto Alegre Em Cena, fez temporada no Recife e participou de dois festivais: do Recife do Teatro Nacional e do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Quando o livro Retratos Imorais foi lançado, em 2010, Thiago Corrêa, jornalista, mestrando em Literatura, e na época crítico literário do Diario de Pernambuco, escreveu:

“Nem todos os contos parecem consolidados em Retratos Imorais. Duas mulheres em preto e branco, Rainha sem coroa e Romeiros com sacos plásticos surgem ainda disformes, verdes, com referências demais e passagens que se desprendem do contexto, soando como o rangido causado por parafusos frouxos. No entanto, apesar do estranhamento causado por essas histórias, vale ressaltar que elas representam o espírito do escritor em tentar se renovar enquanto linguagem, colocando-se à prova através de experimentalismos (seja na tentativa de reproduzir um discurso histérico ou por associações políticas que fogem ao personagem). E isso ocorre justo no momento em que qualquer escritor corre o risco de se acomodar na mesmice, por ficar em evidência pela conquista de um prêmio importante, do porte do São Paulo de Literatura, vencido por ele em 2009, com Galiléia”.

Concordo com as ponderações de Thiago na sua crítica. Em Duas mulheres… há referências a uma época, ao cinema, à literatura, ao próprio teatro. Todas explícitas demais; para mim, ao invés de agregarem, causam a sensação no espectador de “pedantismo” – de que estão ali muito mais para trazer certo empoderamento à obra. Essa impressão não se estabelece de forma definitiva ou ao longo de toda a montagem, mas paira sim em alguns momentos do discurso. Se fosse só a relação, o acerto de contas, o olho no olho entre Sandra e Letícia, talvez a peça nos tocasse muito mais.

A transposição do texto para o palco, sem adaptações, foi certamente um dos desafios para o diretor Moacir Chaves. A opção pelas quebras e alternâncias entre o teatro narrativo e o embate entre as duas atrizes nos leva a um espaço de envolvimento e sedução. É um ritmo intenso de energia que se estabelece entre as intérpretes e que consegue se manter efetivamente até o fim do espetáculo.

Tanto Paula de Renor quanto Sandra Possani se entregaram a essas personagens com um amor e uma dedicação que ficam muito visíveis no palco. Estão em cena inteiras e sem muitas disparidades nas encenações. Mas ainda tem muito a crescer. A opção pela linguagem cinematográfica em alguns momentos, acabou trazendo também a supercialidade.

Vi duas vezes a montagem – durante a temporada e no Janeiro. E lembro que, da primeira vez, as atrizes estavam mais soltas, mesmo diante das marcações do diretor. Provavelmente resultado de um tempo sem encenar a montagem. Mas é uma dupla que se faz muito verossímel. Enxergamos esse conflito de forma real e próxima e ao mesmo tempo as alterações pelas quais passam as personagens ao longo do espetáculo, seja voltando no tempo ou tomando consciência da “esperança da ruptura”, da qual nos fala Moacir Chaves no programa do espetáculo.

A cenografia de Fernando Mello da Costa é bonita, coerente e útil, e integra organicamente a encenação. A luz de Aurélio de Simoni também agrega e acentua momentos plasticamente belos na montagem – são elementos criativos que realmente se somam à obra, assim como a trilha de Tomás Brandão e Miguel Mendes. A cenografia e a sonoplastia, aliás, foram os dois prêmios que a montagem levou no Janeiro de Grandes Espetáculos.

Sandra Possani

Sandra Possani

Paula de Renor

Paula de Renor

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3 pensou em “O preço de uma traição

  1. Ronaldo Correia de Brito

    Prezada Polyana,
    vejo com enorme alegria o desconforto que Duas mulheres em preto em branco causa desde seu lançamento no livro “Retratos imorais”. Os leitores se dividem entre os apaixonados radicais e os que odeiam o conto. Isso prova a força do mesmo, a capacidade de causar transtorno. Não tentarei desculpar nenhum ponto de vista desfavorável ao mesmo, mas apenas dizer um pouco como se deu a construção desse texto que me consumiu tempo e paciência. O primeiro propósito era o de criar duas personagens histéricas. Isso significava construir um discurso histérico. De um ponto de vista estritamente psicanalítico, o discurso histérico se caracteriza pelo excesso verborrágico e vazio, pelo lixo das palavras, aquilo que o cenógrafo representou tão bem na cena. Se o leitor não cair na cilada da leitura aparente, ele descobrirá no excesso de citações a defesa das personagens para não entrarem nelas mesmas. A maneira mais fácil de se distanciar do âmago das questões dolorosas, dos pontos de conflitos, é falar sobre o nada. E é o que elas fazem, enchendo os diálogos de abobrinhas e miolo de pote. Por exemplo, no auge da dor, ao invés de Letícia falar sobre o que ela sente, ela prefere discorrer sobre o acidente nuclear de Chernobyl. Sandra, para explicar as transformações ocorridas em Letícia depois que soube a notícia da traição, dá uma pequena aula sobre o deslocamento de placas tectônicas na formação dos tsunamis. A mais pura histeria. Você é bem aguda quando percebe esse tom de esnobismo, a perda de tempo com caramiolas, afastando as duas personagens do âmago delas mesmas, de um embate mais profundo. O esnobismo não é do autor, ele é propositalmente criado para Letícia e Sandra. De vez em quando o entulho das palavras vazias se remove e as duas se mostram nas suas humanidades e desgraças. E novamente mais entulho, mais lixo de palavras e citações. Isso era bem característico da época, quando a censura obrigava as pessoas a falarem através de símbolos e disfarces. As citações de filmes – que não acho excessivas – também faziam parte desse tempo em que o cinema representava uma das poucas vias de liberdade.
    Conheço bem a resenha do meu querido Thiago Corrêa e concordo com o ponto de vista de que o escritor é tentado a repetir-se, sobretudo após o sucesso. Isso está longe de acontecer comigo. “Retratos imorais” é uma experiência radical, uma aposta em formas novas de narrar. Com outras coisas da resenha dele eu discordo, mas bato palmas para o livre exercício da crítica. Como bato palmas para você e Ivana que tocam com tanto respeito e seriedade esse blog tão importante para nossa cidade e Brasil afora.
    O abraço amigo de Ronaldo Correia de Brito.

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  2. Paula de Renor

    Pollyana, muito legal sua crítica e a percepção da diferença de interpretação nas duas vezes em que assistiu. Concordo. Sua contribuição nos debates do JGE junto com Fernando Limoeiro foi tb muito proveitoso para todos os espetáculos.
    Muito bom tb Ronaldo ter feito esses comentários e esclarecimentos sobre o texto. É muito importante isso tudo que ele explica, principalmente para tirar um pouco essa ideia do pedantismo das citações do autor .
    AH, como é bom poder discutir texto com o autor próximo!!
    Bj

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  3. Andréa

    Muito boa crítica, Pollyana! Vi no sábado passado “Duas mulheres…” no teatro Eva Hertz e gostei acima de minhas expectativas. Tudo o que sabia a respeito da peça era sua origem na literatura do Ronaldo Correia. Costumo ler as críticas sempre após ver a(s) peça(s) e, como aquelas de qualidade, nos ajudam a refletir melhor e a nomear aquelas impressões que reverberam difusas em nosso interior. De quebra, e reforçando o trabalho sério e bem realizado por este blog, o comentário do próprio Ronaldo alargou ainda mais as possibilidades de apreciação da peça. Assim, já estou com vontade de revê-la !!!! Grande abraço!

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