O Encosto é mais cruel na vida real

Jr. Sampaio em O Churrasco. Foto: Joao Guilherme de Paula

Júnior Sampaio em O Churrasco. Foto: João Guilherme de Paula

O ator Júnior Sampaio entra em cena visivelmente nervoso e reforça esse palpite com a confissão de que está preocupado com o fenômeno teatral daquela noite. Pede a um espectador para segurar sua garrafinha d’água, a outro para acompanhar o texto e servir de ponto (caso ele erre alguma parte) e ao terceiro para guardar uma banana prata que ele trouxe para comer depois da sessão, já que é uma fruta com muito potássio. Já envolveu e tornou cúmplice a plateia com esse procedimento, que foi milimetricamente estudado.

Inteligente e esperto esse salgueirense radicado em Portugal. Na peça O Churrasco, ele interpreta um insólito churrasqueiro que diz que seu destino é aguardar a chegada da carne para matar a fome da humanidade. Mas a figura não leva em consideração os vegetarianos.

O espetáculo foi apresentado nos dias 13 e 14 deste mês, no Teatro Marco Camarotti (SESC Santo Amaro), no Recife, e faz mais uma sessão nesta sexta-feira em Caruaru, no Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru), dentro do 23ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Pretensioso esse personagem, que oscila entra a arrogância e a modéstia. E que projeta no mundo variações do seu próprio umbigo. Mas será que não somos feitos dessa matéria? Só nos conectamos e reconhecemos frações de nós mesmos? Assunto para matutar. Desejamos nos relacionar de forma plena com o outro? O teatro pode ser um bom lugar dessa dessa troca subjetiva.

As “almas sentadas” acompanham o embate do Churrasqueiro com seu Encosto. A peleja é entre Auxivites, que garante que é um ser humano mesmo com o nome que carrega, e o Encosto, que nasceu em 20 de abril de 1889. “Vocês já sabem quem é este Encosto? Sabem ou não sabem? Se não sabe, estudem!”, provoca o personagem.

Com o palco limpo, apenas um tapete no chão e poucos objetos, as mudanças de clima são pontuadas pela luz, que também materializa a fogueira. O ator está vestido de uma bermuda e uma camiseta de marca, uma marca que grita em algum momento dentro desse discurso crítico.

Enquanto aguarda o carga de carne que encomendou, o Churrasqueiro discorre sobre variados assuntos. De sua origem de filho do cornudo com a vaca. “O meu pai, o cornudo, morreu queimado, deve ser isso que resolvi ser churrasqueiro”. Passando por reflexões sobre democracia, capitalismo, pobreza, opinião alheia, direito de ter filho.

Mas também define o Encosto: “Eu penso que nenhuma criatura neste mundo tem o direito de fazer o que tu fizeste. Deve ser por isso que tu não consegues reencarnar. Alma penada! Eu sei que todos merecem o perdão, mas eu não sou Cristo, apesar de ter dito que era, sou apenas um cristão discreto”.

O tom é de deboche, há ironias estendidas nas frases e intenções. Nada é demasiadamente denso. Mas instiga o espectador a explorar, e se deixar abalar das convicções arraigadas.

As balizas “cristãs” do que se entende por carne versus espírito avançam por caminhos que remetem para o mundo real ameaçado pela cobiça e pela concentração de riquezas nas mãos de poucos. Uma criatura pode num acesso de fúria fazer voar o nosso belo planeta, expõem as manchetes dos jornais do mundo inteiro, de forma velada ou nem tanto. “Que todas as fúrias do céu caiam sobre a raça dos poderosos! Que rolem as cabeças dos ditadores e dos delatores diante dos meus pés”, pontua Auxivites a certa altura.

Júnior Sampaio em O Churrasco. Foto: CMV / Divulgação

Cena despojada da montagem do português de Salgueiro.         Foto: CMV / Divulgação

Em O Churrasco, a literatura dramática atua como principal elemento organizador da encenação. Mas a alocução construída clama por ser chocalhada pelos possíveis coautores da escritura teatral, o público. O autor/ intérprete convoca a plateia a produzir significações e exercer sua liberdade para não aceitar os sentidos unívocos captados à primeira camada.

A arte de Júnior Sampaio trabalha com pequenos mecanismos contra a alienação. Sua dramaturgia formada por três dezenas de peças não descarta o divertimento, nem a ludicidade, mas persegue o essencial de uma apreciação do mundo e da crítica ao humano.

As frases de efeito do texto, as alusões a conceitos de pecado e perdão funcionam como trampolim para outras transgressões. Com sotaque português e alma que eletriza, Sampaio ficcionaliza suas demandas artísticas para tratar da vida.

O ator fisga em pequenos gestos, detalhes, coreografias corporais a sua fome de palco. E dispara em palavras as urgências políticas para nos assustar com o contemporâneo. “Todos nós temos uma ambiguidade”, vomita lá o Churrasqueiro. Para depois considerar: “Nem todo ser humano é humano”. Temo chegar a concordar com essa conclusão do filho da vaca com o cornudo. Enquanto aprecio o sobrevoo que esse intérprete cativante faz sobre os aspectos da prática da cena contemporânea na companhia de figuras como Samuel Beckett e Eugène Ionesco.

FICHA TÉCNICA
Texto, músicas, encenação e vivência cênica: Júnior Sampaio
Supervisão cênica, cenografia e pintura cenográfica:Leonardo Brício
Desenho de luz:Leonardo Brício e Júnior Sampaio
Técnicos de luz:Luciana Raposo e João Guilherme de Paula

SERVIÇO
O Churrasco – ENTREtanto TEATRO (Valongo/Portugal)
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal (SESC Caruaru)
Quando: Dia 20 de janeiro de 2017 (sexta-feira), às 20h
Quanto: R$: 10,00 (Inteira) e 5,00 (Meia)
Classificação etária: a partir dos 12 anos
Duração:50 min.
Classificação etária:a partir dos 12 anos

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