Concerto poético

Dinho Lima e Flor

“Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o Sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá”

A Rádio Caldeirão fez ontem, no Teatro Marco Camarotti, no bairro de Santo Amaro, uma conexão São Paulo -Recife – Assaré. E saiu levando nesse caminho a poesia, a experiência, as histórias, o lirismo que não têm região geográfica; que têm raiz, mas não amarras: tanto que podem ser transmitidos a partir do teatro. Foi isso que fez a Cia do Tijolo com o espetáculo Concerto de Ispinho e fulô, uma homenagem ao poeta cearense Patativa do Assaré. Transformou cena em poesia, dor e amor em cantoria, vivências pessoais em universais.

O objetivo aqui não era apresentar uma biografia, mas colocar o público em contato com uma obra, com o universo do Sertão, com a crítica social ferrenha feita por um homem que nunca deixou o seu lugar de origem. Para isso, elementos vão se cruzando.

Primeiro, decidiram pelo musical, o que parece inevitável quando, por exemplo, Karen Menati, uma das atrizes, começa a cantar lindamente. Depois, saíram reunindo peças como num quebra-cabeças: uma rádio que toca as músicas e celebra o poeta; um grupo de atores que saí de São Paulo em busca de um encontro com Patativa; a visão do estrangeiro na terra que não é sua; uma massacre de civis que não foi registrado nos livros de história; a celebração; a “sem-vergonhice” faceira e encantadora.

“Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do Sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem”

“Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem”.

A montagem parece que mostra a que veio realmente, capturando de vez o público, a partir da viagem que o grupo de atores faz de São Paulo até Assaré – de carro, numa divertida solução cênica. Quando chegam, o primeiro impulso é colocar aquele homem num pedestal; quando percebem – e a montagem é sincera e acerta nisso -, que é muito mais fácil dialogar quando se olha de igual para igual. O embate entre os atores Dinho Lima Flor, que faz o Patativa, e Rodrigo Mercadante, o ator que queria conhecer o poeta, é um dos momentos mais bonitos e desafiantes do espetáculo. Quando a poesia modernista de Drummond, Bilac, conversa com a poesia simples, mas profunda, com métrica e rima, do Sertão cearense.

Espetáculo foi exibido no Teatro Marco Carmarotti, no Recife

A companhia consegue também, na própria encenação, dissolver a questão sobre se seriam capazes – já que vindos de vários lugares do país – de falar de uma coisa que não viveram. Percebe-se que era uma dúvida mesmo do grupo, que foi levada e resolvida em cena, durante o processo de montagem. Não precisavam ter vivido a seca que deixa o chão esturricado; aliás, o que é seca para cada um de nós? É dessa forma que teatro, invenção, a discussão sobre o fazer teatral, e vida real são costurados. É assim que uma das atrizes conta que é de Maringá; e que todos lá vivem na “zona”, já que não existe bairro, e sim, zona; que já fazia teatro quando morava lá e que participou de uma pesquisa para perguntar qual a programação cultural preferida na cidade. A resposta foi “churrasco”! Ou Dinho Lima Flor fala de Tacaimbó, no interior de Pernambuco, da sua praça… e convida todos a cantarem: “Só deixo o meu Cariri, no último pau de arara”.

“Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí”.

A celebração ganha cheiro, gosto. Que pode ser de cachaça, cajuína ou café. Mas teatro sem conflito, não é teatro! E ainda faltava resgatar o massacre do Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que vivia como uma espécie de Canudos, tendo a frente o beato José Lourenço, e foi aniquilado no governo de Getúlio Vargas, num ataque aéreo contra civis inocentes. Essas histórias vão se amalgamando à montagem, numa parede feita de vários tijolinhos que têm na perspicácia da direção de Rogério Tarifa, no talento de elenco e músicos, o seu cimento. Conseguindo levar ao palco poesia de maneira fluida, mas profunda; fazer rir as senhoras “coqueluxe”; ou cantar junto o poema e a canção.

Cenografia, iluminação e figurino compõem esse concerto de maneira acertada, às vezes numa balburdia completa; outras na ordem focada necessária ao embate de palavras. O elenco da montagem é formado por Dinho Lima Flor, Lílian de Lima, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti e Thaís Pimpão; já o grupo de músicos – numa trilha que tem Patativa, mas também Gonzagão, Jackson do Pandeiro e ainda composições próprias, numa seleção que privilegia sempre a poesia – é composto por Jonathan Silva, Aloísio Oliver e Maurício Damasceno.

“Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu Sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá”.

(Trechos de Cante lá, que eu canto cá, de Patativa do Assaré)

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2 pensou em “Concerto poético

  1. Rodrigo Dourado

    Bom texto, Pollyana! Eu confesso que o espetáculo me incomodou várias vezes por achar que ele escorregava no estereótipo, no clichê. Especialmente quando eles tematizam a questão do olhar, deixandro entrever um certo etnocentrismo. Aquele pedido de desculpas e de licença – que acontece no meio do espetáculo – para falar do Nordeste me soou tão mal. Embora eu entenda a importância de trazer a inquietação para a cena. No final das contas, meu sentimento ao sair do espetáculo era super ambíguo. Ao mesmo tempo que eu gosto muito do trabalho, não deixo de enxergar nele uma série de lugares-comuns. Tentando aprofundar um pouco: acho que a questão é como eles se apropriam dos estereótipos e dos simbolos canônicos do Nordeste. Não é um apropriação vertical, de um ‘outro’ autoritário que tenta dizer a nós mesmos quem somos ou como somos. É uma apropriação horizontal, que tenta se reconhecer em nós, se aproximar de nós, se familiarizar conosco. Uma apropriação que tenta promover um encontro de margens, da margen de quem faz teatro no Brasil, da margem que é o Nordeste, da margem que é o Brasil. E os estereótipos – embora incomodem a mim – são ferramentas possíveis para promover essa aproximação e acessar esse patrimônio comum que – bem o mal – é o pouco que nós temos. Não sei se me fiz claro, mas é isso. bjs

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  2. Dinho Lima Flor

    Querida Pollyana, esse texto me deixa muito feliz por você ter apontado as questões relevantes da peça; esse espetáculo foi feito com muita dedicação e olhos muito apurados, exatamente porque tínhamos medo de cairmos num lugar comum, água que não irrigaria nossa terra, queríamos fazer um processo que nos pertencesse e que fosse gerado de dentro pra fora, e o Patativa e a sua poesia ou literatura dialoga com esse processo, mostrando um Brasil profundo de dores seculares; ele não esconde essas feridas e deixa claro seu lado, mas também trafega pelas as alegrias de seu povo, verso e reverso de uma mesma moeda. O espetáculo por onde tem passado deixa marcas de uma reflexão acerca do sujeito consciente para operar as mudanças e viver uma dignidade em vida. Tentamos trazer para essa travessia de duas horas um jorro de poesia, exatamente como enxergamos o poeta Patativa. Tentamos dialogar através de nossos depoimentos de nossas vidas para exatamente se aproximar da militância do Sr Poeta que teve sua passagem aqui na terra não somente pela a poesia, mas pelo os seus depoimentos acerca da terra e do homem.
    Abraços e muitas felicidades e a Cia do tijolo deseja fortemente voltar para essa terra tão amada e sobretudo por esse que vos escreve, Pernambucano pelo os quatro costados.
    Dinho Lima Flor

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