Breve passeio pelo Janeiro dos Espetáculos – parte 1

Teatro de Santa Isabel lotado, foto da segunda sessão de O Avesso do Claustro. Foto: Pedro Portugal

Teatro de Santa Isabel lotado, foto da segunda sessão de O Avesso do Claustro. Foto: Pedro Portugal

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Na sua fala para o programa do Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, o produtor Paulo de Castro confessa que quase não acreditavam (o trio de realizadores: ele, Paula de Renor e Carla Valença) que a edição deste ano iria mesmo acontecer, diante das dificuldades cada vez mais desafiadoras. Conseguiram. E mexeu com a cidade do Recife neste primeiro mês do ano de 2017.

Em termos de público, a 23ª edição foi um sucesso. Somadas as plateias das produções de teatro adulto e infantil, dança, leituras dramáticas e shows musicais do Recife e Caruaru chegou-se a 15 mil pessoas. É um número muito bom. Janeiro de Grandes Espetáculos ocorreu entre os dias 12 a 29 de janeiro, numa realização da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe).

É um programa consolidado e isso talvez seja um problema. O mundo gira muito rápido. Novos paradigmas das artes do espetáculo ocupam os espaços e não dá para ficar preso às glórias do passado. O Janeiro precisa de ousadias.

O JGE já cumpriu durante muitos anos a função retrospectiva de montagens pernambucanas do ano anterior, numa posição de ampliar o fôlego dessas encenações. Entraram as estreias como aposta durante o trajeto, mais peças nacionais e algumas atrações internacionais. A música chegou com seu irresistível encanto e ficou.

Algumas coisas foram se esvaindo ao longo dos anos. Na sua atuação pela valorização das criações pernambucanas e o erguimento de pontes de circulação, o Janeiro trouxe curadores. Isso possibilitou que algumas peças participassem de festivais brasileiros importantes. O Palco Brasil, um acordo entre a Apacepe e a prefeitura do Recife facilitou o deslocamento de companhias de teatro e dança para festivais nacionais, o que já não acontece. Também não há mais espaço para reflexão crítica no festival, como as conversas com os críticos.

As crises financeiras e políticas, a falta de um pensamento de curadoria mais definido, as opções pela ideia de que em time que está ganhando não se mexe, as opções adotadas e o Janeiro perdeu ano a ano algumas dessas coisas.

Numa conversa que tive com os três coordenadores – Paula de Renor, Carla Valença e Paulo de Castro – ficou bem claro de que a ideia de que no Janeiro “cabe tudo”, defendida por Paulo de Castro, não era pactuada pelas duas outras produtoras. O resultado foi espelhado na programação do Janeiro.

Houve uma série de desconexões entre as atrações e desníveis de qualidade. Como então cumprir o papel da arte de sacolejar as pessoas e tirá-las do estado de comodidade? O Janeiro cometeu erros? Muitos. Talvez seja a hora desse festival se reinventar.

Quem sabe não seja um assunto para ser discutido numa reunião de avaliação entre os dirigentes/gestores/equipe e os artistas e produtores da cidade que funcionam como parceiros da empreitada, como faz questão de destacar Paula de Renor?!

Na sua coluna dessa sexta-feira no jornal Folha de São Paulo, o professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) Vladimir Safatle chama para a necessidade de pensar, de forma indissociável, crítica social e crítica cultural, que foi característica da tradição do pensamento crítico do século 20. E que : “A produção cultural deveria ser analisada a partir da emancipação social que ela seria capaz de gerar”. Para que surjam novos circuitos de afetos. Coisas pra pensar sobre o papeis da cultura nesses tempos de autoritarismos e de líderes protofascistas.

Sebastião Alves, Sebá, homenageado do JGE. Foto: Viviane Santos / Divulgação

Sebastião Alves, Sebá, homenageado do JGE. Foto: Viviane Santos / Divulgação

Dito isso, vamos flanar pela memória desse primeiro mês de 2017, enquanto Saturno não chega. O contato amoroso com uns, o atrito com outros, também foi uma época de aprendizado acelerado. E no meio disso o encontro com apaixonados por essa arte tão da presença, tão do aqui/agora, sua dedicação e sacrifício também me tocaram. E foi possível nesse percurso forjar escutas outras, deslocar algumas e exercitar o respeito que é um tirocínio constante.

Meu passeio esbarra com o artista Sebastião Alves, Sebá, homenageado do festival. Em síntese, um guerreiro. Ele começou a trabalhar ainda adolescente em sua cidade Sertânia, como assistente de obra, mudou-se para Caruaru onde encarou várias funções. Foi-se embora para o Rio de Janeiro, em 1974, na busca de reconhecimento na arte e ganhar uma grana para comprar uma casa para a mãe. Na cidade maravilhosa labutou na construção do metrô. E voltou sem alcançar seu objetivo.

Em Caruaru, enveredou pelas artes cênicas e participou de montagens como Solte o Boi na Rua(1979), de Vital Santos, com o Grupo de Teatro Ivan Brandão; O Auto das Sete Luas de Barro, do Grupo Feira de Teatro Popular e outras que se seguiram.

Venceu um câncer e outras doenças e, aos 60 anos (completados no dia 20), se diz um sobrevivente. É mais: um emblema. Um mestre de mamulengo que mantém o espaço Teatro Garagem Mamusebá, nas dependências de sua casa, e o Teatro Oficina Mamusebá, que fica ao lado da estação ferroviária de Caruaru.

Aquele garoto que que sonhava ser ator de cinema – inspirado pelos filmes bangue-bangue, mas planejava ser do time dos mocinhos – foi a inspiração de Vital Santos para montar a peça Olha pro Céu, Meu Amor, que abriu o Janeiro no Teatro de Santa Isabel.

Olah pro Céu Meu Amor em apresentação no Teatro de Santa Isabel. Foto: Divulgação

Olah pro Céu Meu Amor em apresentação no Teatro de Santa Isabel. Foto: Divulgação

Olha Pro Ceu Meu Amor é um espetáculo político de Vital Santos e que guarda os aspectos de sua criação original, de protesto contra a desigualdade social, a condição dos nordestinos que seguem para o Sudeste no intuito de melhorar de vida. O espetáculo estreou em 1980 e não foi atualizado em sua dramaturgia ou direção. Então é um retrato de uma época que traz reflexos ao Brasil até hoje. Mas a montagem desconsidera as mudanças reais ocorridas nos 16 anos do governo Lula /Dilma, como o retrocesso protagonizado pelo atual governo.

Baseada na vida do protagonista, o musical emocionou a plateia que compareceu ao Teatro de Santa Isabel, na sua estreia. Sebá representando ele mesmo e o elenco dividido entre pessoas da família do protagonista que ficaram no interior de Pernambuco e figuras do trabalho, em posições subalternas ou de chefia.

Os desenhos coreográficos, as falas engraçadas e terríveis de exclusão, o acalentar de sonhos, as músicas prosseguem a mostrar a potência desse espetáculo Olha pro Céu Meu amor.

h(EU)stória - o tempo em transe com Júnior Aguiar e Márcio Fecher

h(EU)stória – o tempo em transe com Júnior Aguiar e Márcio Fecher

h(EU)stória – o tempo em transe parte das cartas do cineasta Glauber Rocha para o poeta Jomard Muniz de Britto e o ex-governador Miguel Arraes, mote para falar de pressões. O esmagamento político e público sobre o cineasta é mostrado em surtos criativos, depressões e a vida arrancada. Coisas que a desumanidade faz com eficiência atualmente nas redes sociais. Glauber Rocha combatia com sua arte as barbáries sofridas em seu país. As repercussões danosas atravessaram seu corpo e atingiram seu espírito. Isso Junior Aguiar e Marcio Fecher defendem no primeiro espetáculo da Trilogia vermelha.

Outros espetáculos também investem no teor político com maior ou menor densidade. O Mascate, a Pé Rapada e os Forasteiros, com texto e atuação de Diógenes D. Lima usa do humor e da galhofa para fazer crítica à falta de políticas do Recife e de Olinda. Nessa montagem de teatro de objetos, as duas cidades são homem e mulher explorados por forasteiros, como Portugal e Holanda, e corrompidos pela ganância e cobiça.

Numa outra chave crítica, a dança Microclima, com Iara Campos, focaliza as consequências das decisões desastrosas sobre as grandes cidades. No Recife, o que vai da política pública para o corpo da população, que sofre na pele com o calor insuportável, o trânsito caótico e a especulação imobiliária. Distopia.

A Mulher Monstro pega um conto atualíssimo de Caio Fernando Abreu, escrito na ditadura militar, para falar das contradições gritantes, das intolerâncias e do ódio que a sociedade brasileira ostenta. Sozinho no palco, José Neto Barbosa imita figuras públicas e as que se escondem por trás de perfis no facebook.

Enchente faz pensar sobre isolamentos forjados pelos piores sentimentos que envolvem o poder do mundo capitalista. Os desastres humanos migratórios e econômicos.

Grito, que estreou no festival, expõe o medo da violência nas ruas do Recife em uma coreografia forte assinada por Lilli Rocha. E a cumplicidade feminina para encontrar um lugar de superação.

Stella Maris Saldanha e Germano Haiut. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Stella Maris Saldanha e Germano Haiut. Foto: Pedro Portugal / Divulgação

Com todas as sete sessões esgotadas, Terror e miséria no Terceiro Reich – O delator registra a volta do ator Germano Haiut aos palcos. Nos últimos 30 anos, fez cinema, televisão. Na peça – adaptação de um trecho da obra escrita pelo poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com direção de José Francisco Filho – Haiut divide a cena com Stella Maris Saldanha e interpretam um casal alemão de classe média que vive o medo da traição dentro da própria casa. Eu aplaudo a volta de Germano Haiut.

A participação estrangeira não trouxe o brilho esperado. O Comuna Teatro de Pesquisa (Lisboa/Portugal), que veio com três montagens, incluindo a peça Do Desassossego (baseado no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares e Fernando Pessoa) mostrou-se um grupo conservador nos seus procedimentos cênicos, sem diálogos mais estreitos com as pulsações do teatro contemporâneo, por exemplo.

Esse Janeiro de Grandes Espetáculos é muito grande e não vou dar conta de falar sobre todas os questões neste post. Hoje temos a festa do Prêmio Apacepe de Teatro e Dança, quando serão entregues às estatuetas aos melhores do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos – Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco, segundo a comissão formada por Breno Fittipaldi, Jorge de Paula e Rita Marize (Teatro Adulto); Ana Elizabeth Japiá, Márcia Cruz e Samuel Santos (Teatro Para Crianças); Dielson Pessôa, Nadja Maria e Viviane Ferreira (Dança). A Coordenação/Produção de Corpo de Júri ficou com Augusta Ferraz.

A festa dançante segue no Bar Apolo 17 (Rua do Apolo, 170) com o DJ Sangue no Olho (Giordano Bruno).

Teremos concordâncias e discordâncias com os resultados. Estranho a ausência do nome de Germano Haiut como indicado para Melhor Ator. Também chama a atenção a indicação única de Melhor Atriz e a não indicação para Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Ator Revelação e Melhor Atriz Revelação, por exemplo.

Mas como pontuei em post anterior, os resultados dependem de quem faz os julgamentos e nenhuma verdade é absoluta.

Esse Janeiro vai ter repercussão.

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