Arquivo mensais:maio 2013

Nem todo irmão é Caim

Tatto Medinni é Mariano. Fotos: Ivana Moura

Tatto Medinni é Mariano. Fotos: Ivana Moura

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Não gostava muito do título da peça: Mariano, irmão meu. Sei que relações conflituosas e/ou de proteção de uma das partes mobilizam sentimentos nobres. E neste mundo de contatos escorregadios e contratos descartáveis um pouco de segurança parece um oásis. Não sei se pelo que o título entrega ou pelo que ele esconde. Mas ontem o espetáculo estreou, no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, dentro do Festival Palco Giratório e o título se diluiu, ganhou outro sentido. A montagem é do grupo Engenho de Teatro, que já encenou quatro peças antes, todas com alguma ligação com uma poética da imagem e do verbo autoral.

No caso, Alexsandro Souto Maior assina o texto e também está no palco, no papel de Damião, o irmão mais velho. O irmão do título da encenação é interpretado do Tatto Medinni, um garoto com problemas cognitivos. A terceira figura dessa trama é a atriz Ana Cláudia Wanguestel, que faz a sóbria tia Augusta, e mais dois personagens de ligação (atendente de um serviço de seleção de cargo de trabalho e enfermeira de um posto médico).

Encenação é assinada por Eron Villar e direção de arte por Java Araújo

Encenação é assinada por Eron Villar e direção de arte por Java Araújo

Os dois irmãos foram abandonados pela mãe quando Mariano nasceu. O mais novo é quem mais sofre com essa ausência e até mesmo pelo desconhecimento do rosto da mãe. Para minorar a dor do caçula, o mais velho adaptou um trecho do Apocalipse para a vida deles, (que ela fugiu de um dragão com sete cabeças e dez chifres) para justificar a lacuna materna.

Afeto e dependência. Essas duas coisas se misturam na vida da dupla. A sobrevivência é fruto da caridade alheia. O mais novo depende do mais velho, e não tem consciência disso. O mais velho é dependente do mais novo e tem consciência disso. Ambos têm a vida paralisada. Mariano espera todos os dias no cais pela volta da mãe. Que não vem.

A direção de Eron Villar aproveita bem os traçados espaciais e as mudanças de localização. As portas do cenário se transformam em outros objetos, manipuladas pelos próprios atores. Eron também imprime um andamento, um tempo que abre frestas para tocar os sentimentos do espectador.

Ana Cláudia Wanguestel interpreta Tia Augusta

Ana Cláudia Wanguestel interpreta Tia Augusta

A iluminação (também de Eron Villar) é de grande encanto plástico. Não há alegria na peça. O que existe é o sofrimento de dois seres, ligados pela genética e pelo amor. Cru é o tratamento, da temática aos diálogos. Mas não são rudes.

Eles habitam um lugar e um tempo não especificados. Seus trajes e algumas falas dizem de sua pobreza, da carência em todos os sentidos.

No início o autor pensou em escrever sobre a relação de Van Gogh e seu irmão Theo. Talvez eles existam em partículas do texto. O grupo fala que se inspira na estética e na linguagem do escritor Guimarães Rosa. Boas pegadas.

Damião (Alexsandro Souto Maior) cuida do irmão menor

Damião (Alexsandro Souto Maior) cuida do irmão menor

Mariano, irmão meu conta com música ao vivo, de uma trilha que foi composta especialmente para o espetáculo. Isso garante um enriquecimento do todo.

A peça precisa de alguns ajustes, detalhes, reforço. Mas o diretor vai continuar a mexer na sua cria. A mão do diretor parece firme, mas não dura.

As interpretações vão crescer. Mas vale destacar o desempenho de Tatto Medinni como o louquinho, meio ingênuo, totalmente perdido e com um grande sentimento em desassossego. É um papel difícil, e qualquer um corre o risco de cair no clichê já divulgado pela televisão. Medinni leva a dor do seu personagem para o corpo, com um tique ao andar, um tique na cabeça. A voz, o gesto, a respiração, se harmonizam com a proposta para o personagem.

Apesar de conhecer tão bem o papel que escreveu, Alexsandro Souto Maior pode dar mais ao seu Damião. Algo que mexa com as tripas. E que essa agonia que sente, associada à culpa da invenção da história do dragão estejam vibrando na pele.

A tia de Ana Cláudia é pesada, solene cheia de vazios. Falta-lhe nuances.

É um espetáculo que deve crescer com a temporada. Mariano, irmão meu entra em cartaz no Teatro Marco Camarotti, às quartas e quintas, de 5 a 27 de junho.

Montagem estreou no Palco Giratório e agora fica em cartaz no Marco Camarotti

Montagem estreou no Palco Giratório

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A dança contemporânea pode ser uma piada

Espetáculo do Dimenti goza com a cara de todo mundo. Fotos: Ivana Moura

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Parafraseando o Ultraje a Rigor: ridículos, a “gente somos” ridículos. É o que diz o espetáculo Tombé. Somos todos, de alguma forma, risíveis? Pelo menos é o que a Dimenti, de Salvador, levanta em sua montagem com uma profusão de clichês da dança e outros elementos que joga no centro da mangação praticamente todos os mortais. Eles acreditam que a ironia e o veneno destilados unem as criaturas. Os próprios são alvos do escracho. E a partir daí não poupam ninguém. Nem mesmo a professora que ensinou as primeiras piruetas. Ela aparece mais obsoleta do que nunca a incentivar: “preencham os espaços vazios!”. E pede para que cada um procure uma energia coletiva e busque seu animal interior.

É meus caros, a dança contemporânea foi transformada em comédia nos corpos dos integrantes do Dimenti. A apresentação ocorreu no Teatro Apolo, dentro do Palco Giratório.

Tombé se contorce em exercícios metalinguísticos, ataca hierarquias nas relações entre bailarinos e seus mestres. Gênero e etnia não escapam à avalanche de deboche. Nesse processo criativo coletivo colaborativo a trupe caçoa de procedimentos para alcançar as destrezas corporais; embaralha dança, teatro e performance; e reforça o caráter mutante das obras.

A língua dos integrantes do grupo é afiada e repleta de ironia

Tombé tira proveito do nonsense daquelas bizarras sessões de DR no trabalho ou em um grupo de estudo ou na perda de controle de um deles. Mas na base da mangação estão conceituações sobre dança contemporânea, formação e outras técnicas, chaves e frases de efeito do mundo acadêmico sobre a arte e seus teóricos.

As tensões de poder ganham alta voltagem, e, podem ser reconhecidas entre outros sujeitos de qualquer empresa ou juntamento de pessoas.Eles falam mais do que dançam e tudo é meio exagerado, desengonçado ou disforme. E os estereótipos pululam.

A companhia de bailarinos-criadores-estudiosos convoca os filósofos franceses pós-estruturalistas numa sátira ao universo pedagógico, zomba da aprendizagem na dança. Enquanto executa ações simultâneas, muitas com citação paródica, a tropa evidencia as rachaduras nos estereótipos e carnavaliza as tradições.

Trupe defende que qualquer pessoa se identifica com algo da peça

Provoca derrisão com o grotesco do caso.

A plateia protagoniza ondas de risos contagiantes. E eu resisti à descarga coletiva por um bom tempo, mas em algum momento esse humor cáustico me pegou também.

Entre piruetas, ironias, um dos bailarinos fala: “Eu não sabia que a vida se reduzia a isso!”, frase que a única mulher da encenação, que é fanha na peça, também vai repetir para fechar o espetáculo.

Eles utilizam “tags” que são tiros certeiros. Mas correm o risco de virar piada interna do mundo da dança. É uma montagem que resvala para o exagero e equalizar esse humor é o desafio de cada sessão.

Ficha técnica:
Criação e performance: Eduardo Gomes, Fábio Osório Monteiro, Jorge Alencar, Neto Machado e Rúbia Romani
Direção coreográfica: Jorge Alencar
Tema musical original: Osvaldo Ferraz e Tiago Rocha
Projeto de luz: Márcio Nonato
Direção de produção: Ellen Mello
Produtor assistente: Fábio Osório Monteiro

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As vidas do artista popular

O miolo da estória parte do bumba-meu-boi para discutir a sociedade brasileira. Fotos: Ivana Moura

O miolo da estória parte do bumba-meu-boi para discutir a sociedade brasileira. Fotos: Ivana Moura

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Conhecemos bem os versos “O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao Brazil”, interpretados por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo. Querelas do Brasil, composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc, acusa a elite econômica do país de sufocar a cultura popular. A canção é de 1978. E alguma coisa mudou. Mas não o suficiente para fazer de nossos bricantes cidadãos plenos.

Ainda assim, o Brasil é um país repleto de inteligências e sensibilidades desconhecidas. E esse ocultamento reflete uma democracia imperfeita. Um espetáculo da Santa Ignorância Cia. de Artes (São Luís – MA) expõe, por um lado, o talento da trupe e, descendo ao âmbito da ficção, esquadrinha os sentimentos de um desses excluídos pelo modo voraz de produção capitalista.

A peça O miolo da estória tira do anonimato um brincante de bumba-meu-boi do Maranhão. E faz questão de frisar que a representação da ingenuidade não lhe cai bem. O artista popular é um ser crítico e que percebe o que ocorre no mundo. Sabe da exploração e da mais-valia, do cinismo dos políticos, do sensacionalismo de uma imprensa descompromissada com questões da justiça social. E principalmente não quer ser mais massa de manobra.

Então, O miolo da estória– com texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia de Lauande Aires – se desdobra num arco crítico desse mundão que Deus nos deu.

Lauande Aires assina texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia

Lauande Aires assina texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia

No solo, o intérprete mostra a história de João Miolo, um trabalhador da construção civil e brincante do bumba. Ele é aquela figura que fica embaixo do boi, mas na realidade ele quer ser cantador, para ser visto e reconhecido. Sua tentativa de mudar de papel é rejeitada pelo dono da brincadeira. E o operário se sente explorado no trabalho e no folguedo.

O teatro evidencia sua função política e toca em pontos cruciais para se ter uma vida digna. A visibilidade é uma condição humana de sobrevivência simbólica e psíquica, cultural, social e política. Esse homem rústico constrói com suas mãos calejadas os edifícios das cidades (prédios que ele não vai morar). Esse homem humilde faz bailar um boi colorido que é o motivo da festa, mas só os seus pés aparecem.

O operário e brincante João Miolo é invisível e não tem voz. Seu pleito é maior do que ser cantador da boiada. E querer ser visto é atitude sintonizada com a contemporaneidade, dominada pela indústria cultural.

Como pedreiro, ele tem consciência da temporalidade do seu “emprego”. Como brincante, chega à conclusão de que o dono do brinquedo negocia apresentações em troca de votos. O apoio que chega e uma verba maior só aparece quando eles são enxergados como eleitor, quando favorecem determinado político.

Se o Teatro Marco Camarotti tivesse um pé direito mais alto, a cena da bicicleta ficaria ainda mais bonita

Se o Teatro Marco Camarotti tivesse um pé direito mais alto, a cena da bicicleta ficaria ainda mais bonita

Nosso personagem fica revoltado e resolve não sair da boiada daquele ano. Mas isso lhe custa em ressentimento e ao tentar afogar suas mágoas na bebida, vai trabalhar embriado e termina ferindo o pé. Nesse ponto o espetáculo revela a origem religiosa dessas manifestações da cultura popular e que muitas vezes perdem seus elos para virar atração para turistas.

E Miolo fica doente. Com o pé infectado, não pode nem trabalhar e nem brincar. Se volta para o santo de sua devoção – São Pedro – e faz uma promessa para não perder a perna.

De uma só tacada o autor expõe uma sociedade desigual e excludente, o risco da brincadeira virar número para manipulação política e a ruptura com a religião e o ritual, que está na origem de muitos desses folguedos.

Peça ressignifica elementos da construção civil

Peça ressignifica elementos da construção civil

É uma realidade crua apresentada pela Santa Ignorância Cia. de Artes. O espaço de atuação é uma circunferência de 4 x 4 metros, arrodeada de maracás e seis caixotes de madeira. No chão, o couro de um pandeirão. Dentro do círculo estão uma escada de madeira, onde estão pendurados capacetes, enxada, pá, pandeiros. Mais à esquerda um conjunto de latas e um par de botas. Mais à direita um carro de mão pendurado com uma imagem de São Pedro.

Esses elementos são ressignificados ao longo da peça. A escada é a casa. Duas peneiras de areia e um pá formam uma bicicleta. O carro de mão pode ser o boizinho. Esse cenário é dinâmico e o ator parece fazer mágica desses elementos quando desloca suas funções. Do alto, na bicicleta, ele critica a mobilidade urbana, o egoísmo dos motoristas. E depois a imprensa sanguessuga.

A autoria da peça pulsa durante todo o espetáculo. A performance de Lauande Aires é para ser aplaudida. Ele canta, dança, utiliza um linguajar simples a partir de cinco personagens. O próprio João Miolo, Nêgo Chico, Cazumba, Amo do Boi e Curandeiro. Há uma coreografia perfeita do gestual do ator e o jogo que faz com todos os elementos.

O personagem deseja sair da invisibilidade e ter voz

O personagem deseja sair da invisibilidade e ter voz

Em resumo: é um espetáculo forte, com ideias e execução bem articuladas para criticar a sociedade, mostrar o fosso simbólico da exclusão social, o desespero e a precariedade das condições de vida de determinadas categoria de trabalhadores. A religião entra com suas sanções e salvações. A crueldade do capitalismo é ressaltada. E é cobrada da mídia uma atuação que condiga com sua dimensão de espera pública. E, principalmente, que todo ser humano deseja e merece ser reconhecido e iluminado.

Ficha técnica
Texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia: Lauande Aires
Iluminação: Eliomar Cardoso e Júlio Cesar da Hora (Jarrão)
Operação de luz: Jarrão
Operação de sonoplastia: Rosa Ewerton
Treinamento de brincante e auxiliar de palco: Léo Alves
Consultoria artística: Antônio Freire, Léo Alves, Manoel Freitas e César Boaes

*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.

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Dança contemporânea na festa da Conceição

Grupo Experimental faz duas sessões de Conceição. Foto: Sobrado 423

Grupo Experimental faz duas sessões de Conceição. Foto: Sobrado 423

Foi na festa de Nossa Senhora da Conceição, realizada no dia 8 de dezembro, que o Experimental – um dos principais grupos de dança contemporânea de Pernambuco – mergulhou para criar o espetáculo Conceição. A coreografia será apresentada em duas sessões, neste sábado e domingo, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Bairro do Recife).

Mônica Lira e seu grupo tomaram como ponto de partida a religião e, principalmente, a fé do povo que acompanha a festa do Morro, no bairro de Casa Amarela, no Recife. Durante dois anos, os bailarinos acompanharam a celebração: viram de perto o que levava as pessoas a vestir azul e branco, subir a ladeira de joelhos e pagar as mais impensáveis promessas.

Relacionaram então fé, sincretismo, identidade e feminino para criar o espetáculo, estreado em 2007. Em 2010, o grupo foi selecionado pelo Palco Giratório e circulou o país inteiro – passaram por 42 cidades.

Depois dessas duas sessões no Recife, o grupo segue para uma nova empreitada. Desta vez, com o apoio do Funcultura, vão circular pela América do Sul – Bolívia, Argentina e Chile. Serão 11 apresentações e oito oficinas/workshops.

Ficha técnica:

Direção, concepção e coreografia: Mônica Lira
Bailarinos-criadores: Lili Rocha, Jaunária Finizola, Jennyfer Caldas, Mônica Lira, Patrícia Pina Cruz, Rafaella Trindade, Daniel Silva, Everton Gomes, Ramon Milanez
Trilha sonora original: Tomas Alves Souza
Criação e operação de iluminação: Alberto Trindade
Desenho de Cenografia: Marcondes Lima
Confecção de cenografia: Coletivo Pardieiro
Figurinos: Marcondes Lima e Maria Agrelli

Serviço:
Conceição (Grupo Experimental)
Quando: sábado (25) e domingo (26), às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)

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Porque tradição e reinvenção não se opõem*

Tu sois de onde?, solo do grupo Peleja. Foto: Renata Pires

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

*Valmir Santos
jornalista, crítico, pesquisador, curador

O ator-dançarino Lineu Gabriel, do Grupo Peleja, reflete sobre as formas e conteúdos que o mobilizaram na criação de Tu sois de onde?. É seu primeiro trabalho solo, tendo convidado para a direção a atriz Ana Cristina Colla, do Grupo Lume (SP).

A obra estreou em novembro de 2012, passou pelo Janeiro de Grandes Espetáculos e participa do Festival Palco Giratório Recife em sessão única nesta quinta-feira (23), às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho, seguida de bate-papo mediado por Leandro Regueira.

Ao buscar conexões com sua subjetividade, Lineu, que estudou em Campinas (SP) – graduado em antropologia e mestre em artes pela mesma instituição, a Unicamp –, foi prospectar o campo fértil, complexo e sofisticado das manifestações tradicionais da Zona da Mata Norte de Pernambuco.

Tu sois de onde? é atravessado pela questão da identidade a partir das corporeidades e sonoridades do maracatu de baque solto, resultado de residência artística apoiada pelo Funcultura e realizada entre 2011 e 2012 no município de Condado, junto aos artistas populares do Leão de Ouro, sobretudo os cabeças de lança.

A seguir, a íntegra das questões enviadas pelo Jornal Ponte Giratória, publicação semanal que circula durante o Palco Giratório (a versão impressa foi editada no formato de reportagem).

Confiram aqui o Jornal Ponte Giratória.

ENTREVISTA // Lineu Gabriel

Jornal Ponte Giratória – O solo Tu sois de onde? sugere conteúdos em torno da identidade e do depoimento pessoal. É desafio para o intérprete-criador tocar raízes sem ensimesmar-se numa época, a nossa, em que a figura do eu é ostensiva?

Lineu Gabriel – Antes de responder objetivamente sua pergunta, creio que seja válido abordar brevemente o processo criativo do espetáculo. O solo surgiu de necessidades pessoais, todo o repertório do Grupo Peleja é autoral, ou seja, nossas criações sempre partem (ao menos até aqui) da necessidade de suprir anseios como artistas. No caso das criações solo eu acredito que elas precisam encontrar conexões com a subjetividade do criador, ao contrário, a obra fica sem estofo, sem força.

Outro ponto que tem de ser considerado é que este é meu primeiro trabalho solo, então, além do tema em si, existia uma necessidade de estar sozinho em cena para tratar de algumas deficiências que sinto em relação a minha formação. Assim, o solo também é um lugar para que eu possa me desenvolver enquanto artista em um nível muito diferenciado do que acontece em uma criação coletiva.

Bom, dito isto, eu acho que é, sim, um desafio o não ensimesmamento. Aliás, diante do que acredito que seja a função social do artista: sempre foi um desafio, uma doação. A contemporaneidade em que vivemos é sim marcada pelo o que você chamou de “figura ostensiva do eu”, porém, paradoxalmente minha formação como artista me leva a encarar a questão sob outro ângulo: a obra é muito maior do que a pessoa, ou seja, eu estou ali no palco apenas em função de algo maior, que pretende, através de mim, tocar as pessoas. Trato de questões que são minhas, mas ao mesmo tempo já existiam quando nasci, de modo que essas questões me atravessam, podendo reverberar (ou não) no público. Meu espetáculo parte do desejo de compartilhar questões universais por meio de uma costura de fragmentos (e reinvenções destes fragmentos, já que estamos falando de arte) de minha história pessoal, afetiva.

Entendo quando menciona a “ostensividade”, mas tenho certeza de que, apesar de ser um solo, o espetáculo parte de outras necessidades… Na realidade, é preciso confessar que, apesar da escolha profissional, sou tímido, não gosto de me expor.

Lineu Gabriel

Lineu Gabriel

JPG – Como você percebe o diálogo com a tradição popular sem abdicar do rigor da invenção artística ou sucumbir ao lugar-comum?

Lineu – A abordagem que realizo das expressões artísticas tradicionais não é superficial, assim, é impossível não relacionar tradição com reinvenção, atualização. Ou seja, essas expressões artísticas são extremamente dinâmicas, são reinventadas, atualizadas cada vez em que seus atores a realizam. Até ouso dizer que em muitos casos o “rigor da invenção” é muito mais latente neste “lugar” do que no teatro ou na dança contemporânea. Eu acredito muito no potencial artístico das expressões tradicionais, acho que ainda é possível encontrar nelas uma força que nem sempre vemos em criações que seguem caminhos mais formais. Acho uma pena que ainda hoje exista uma prerrogativa de que estas manifestações são “menores”, menos importantes que as demais… Aí entramos em outro ponto de sua pergunta: o “lugar-comum” em que se encontram as criações que abordam o “popular”.

Existe uma coisa que acho que é fundamental para que possamos compreender o “popular” de forma mais generosa: precisamos derrubar esta classificação que divide o “popular” e o “contemporâneo”. É uma questão complexa para a qual ainda sinto que tenho muito para desenvolver. Porém, na minha interpretação o que vejo nas manifestações que tive a oportunidade de conhecer de perto é que elas são extremamente contemporâneas. Se ousarmos questionar esta classificação parcial e hierarquizada onde o popular encontra-se em desvantagem, vamos encontrar muitos pontos de diálogo, ou seja, existem muitas contribuições que um lado tem para ofertar ao outro (isto insistindo neste equívoco de separar em dois lados, dois lugares).

Sobre a questão do “lugar-comum”, não acredito que exista risco do Tu sois de onde? somar a isto. Não digo isso por vaidade ou prepotência, mas apenas por que existe um caminho trilhado. Existe uma pesquisa de nove anos, que passou por momentos diferentes, uma pesquisa que envolve vivência, convivência, laços afetivos. No meu caso o “popular” não é um tema, ele entra como ferramenta. Como conteúdo que faz parte de minha formação.

Atualmente, quando brinco carnaval com caboclo de lança (no Maracatu de Baque Solto Estrela de Ouro de Condado), não me preocupo com o que vou fazer com aquilo tudo… Eu simplesmente sou mais um ali brincando, vivenciando esta contradição que é brincar carnaval. Assim, todas essas informações ficam gravadas em mim e podem, ou não, ser acessadas quando entro em um processo criativo. São vivências que fazem parte de mim, mesmo não sendo originalmente daquele contexto.

JPG – A assimilação das técnicas de treinamento de ator no Lume, dada sua convivência e estudos na Unicamp, foram reprocessadas aqui, no Recife ou na Zona da Marta Norte, como um terceiro caminho, de singularidade própria?

Lineu – O trabalho do Lume leva a esta singularidade por si só. Na minha interpretação o foco do que eles edificaram é justamente este empoderamento do artista em relação às suas possibilidades criativas. O que me encanta nesta metodologia (ou no que consegui acessar do que eles desenvolvem) é justamente esta conexão com a subjetividade. Como disse anteriormente, não como um processo egocêntrico (sim, existe certo risco de cair nisto também), mas como uma exploração sistematizada da subjetividade.

Acho que a vinda para Recife, dentro de minha história, inclui muitas coisas. A distância da família, do primeiro “lar” é carregada de processos.

Profissionalmente foi também o momento de aprender a me situar e me posicionar diante de outros profissionais. Acho que este deslocamento nos obriga a organizar nosso discurso, nossa prática. Eu vivenciei muitas crises (e com certeza outras virão) até começar a traçar um esboço de meu caminho profissional dentro das artes.

Voltando a sua pergunta, eu acho que tanto a convivência em Recife como na Zona da Mata Norte tem peso igual para este processo de formação profissional. São lugares diferentes de certo ponto de vista, pois o diálogo com os artistas acontecem de modo muito distinto em cada um desses lugares. Porém, busco respostas para minhas inquietações transitando nesses lugares. Acredito muito no fluxo, no deslocamento. Portanto, acho que o que realmente ressignifica meu fazer artístico é transitar entre lugares diferentes. Talvez seja esta uma das poucas heranças que permaneceram de minha formação em antropologia, a capacidade de enxergar a beleza na diferença.

Serviço:
Tu sois de onde?, grupo Peleja (PE)
Quando: Quinta-feira (23), às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada)

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O grupo Peleja apresenta ainda, dentro do Palco Giratório, Gaiola de moscas. Já escrevemos sobre o espetáculo, que participou da Mostra Capiba ano passado. Leiam e confiram o trabalho. As Yolandas indicam!

Serviço:
Gaiola de moscas, grupo Peleja (PE)
Quando: Sexta-feira (24), às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada)

Gaiola de moscas. Foto: Pollyanna Diniz

Gaiola de moscas. Foto: Pollyanna Diniz

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